Um hotel muito louco (Tony Richardson, 1985)

The Hotel New Hampshire (1985), obra dirigida pelo cineasta britânico Tony Richardson, é uma adaptação do best-seller homônimo concebido pelo escritor e roteirista estadunidense John Irving. É fundamental pontuar esta informação como primeira do texto em vista das características singulares de Irving na sua prática de escritor. Estas se devem principalmente pela sua fixação em assuntos, situações, estereótipos e localidades “chave” que permearão diversas de suas obras. Com o auxílio desta informação podemos compreender a gama extensa de conflitos psicológicos e eventos históricos abordados ao longo de uma hora e quarenta minutos de filme na película aqui discutida. A tabela abaixo, contendo roteiros e obras adaptadas de Irving, nos auxilia a visualizar os temas mais recorrentes em sua escrita:

(retirado de http://en.wikipedia.org/wiki/John_Irving)

Título

Nova Inglaterra

Prostitutas

Luta/
Briga

Viena

Ursos

Morte Acidental

Pais ausentes

“Variações sexuais”

Setting Free the Bears

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The Water-Method Man

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adultério

The 158-Pound Marriage

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swinging, ménage à trois, adultério

The World According to Garp

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assexualismo, estrupo, pedofilia, transsexualismo, swinging, adultério

The Hotel New Hampshire

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estupro, relação entre homem mais novo/mulher mais velha, incesto, homossexualismo, cenas de lesbianismo

The Cider House Rules

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lesbianismo, adultério, estupro, incesto

A Prayer for Owen Meany

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assexualismo, desejos incestuosos

A Son of the Circus

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transsexualismo, homossexualismo

A Widow for One Year

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relação entre homem mais novo/mulher mais velha, estupro

The Fourth Hand

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Until I Find You

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relação entre homem mais novo/mulher mais velha, lesbianismo

Para The Hotel New Hampshire John Irving reservou um turbilhão de informações que permearam o “individuo pós-segunda guerra mundial” estadunidense:

–          Segunda Guerra Mundial;
–         Comunismo;
–         Anti-semitismo;
–         Terrorismo;
–         Poder negro;
–         Casamento inter-racial;
–         Métodos contraceptivos;
–         Homossexualismo (para ambos os gêneros);
–         Estupro;
–         Iniciação sexual;
–         Prostituição;
–         Suicídio infantil;
–         Incesto entre irmãos;
–         Estrutura estadunidense de ensino colegial .

Tamanha a extensão da lista que chega a ser natural questionarmos a possibilidade de um diretor conduzir tantas informações com a devida qualidade em um período de tempo tão limitado. No entanto Tony Richardson nos apresenta com brilhantismo todos estes assuntos (e tantos outros), através da vida de cada integrante da extensa família Berry. Para tal feito acostuma-nos logo ao início do filme com o ritmo insano que nos habituaremos ver até o desfecho da película.

Também nos primeiros minutos da obra concluímos que o protagonista da película não é um personagem, mas sim a família Berry, sendo esta uma extensão de um universo ainda maior como a “típica família norte-americana dos anos sessenta” ou mesmo uma alegoria dos diversos conflitos psicológicos (principalmente de ordem sexual) que o individuo humano está sujeito a vivenciar. Visando alcançar toda esta gama de assuntos os personagens são apresentados em situações singulares ou em conjunto, possibilitando ao espectador conhecer as características de cada membro da família e até criar afinidade ou antipatia pelas idéias apresentadas por um membro ou outro.

Os integrantes da família Berry são os pais Win (Beau Bridges) e sua esposa (Lisa Banes) e os filhos John (Rob Lowe), Frank (Paul McCrane), Frannie (Jodie Foster), Lilly (Jennifer Dundas) e Egg (Seth Green). Soma-se ainda a família o cachorro Sorrow (o primeiro a falecer, com uma morte absurda) e o pai de Win Berry (o segundo, com uma morte ainda mais absurda). Junto a este notável elenco há ainda Nastassja Kinski (como a “mulher-urso”, tendo atuado em Paris, Texas um ano antes) e Dorsey Wright (que apresenta em sua curta filmografia os aclamados Hair e Warriors).

Mas apesar da família Berry protagonizar a película é notável uma maior densidade na caracterização de alguns membros específicos tais como John, Frank, Frannie e Lilly. O filme conduz a evolução psicológica destas personagens ao longo dos anos, evidenciando junto à narrativa a tomada de ações a muito desejadas por estas, anteriormente reprimidas (tal como o incesto entre John e Frannie, o homossexualismo de Frank e o suicídio da ainda jovem Lilly). Nenhuma destas ações passa sem o devido cuidado de Tony Richardson em pontuar as imagens necessárias ao entendimento do público dos “porquês” destas situações (atitude fundamental tratando-se de uma narrativa tão complexa e tão passível de desentendimento ou elucubrações vagas, o que em momento algum é a intenção do diretor). Sendo assim, por mais difícil que seja o enredo, há a satisfação de se ver pontuado todos os elementos levantados por Irving em seu romance, com genialidade principalmente no que se refere ao uso do sarcasmo e do absurdo para retratar estas ações.

Como recurso fundamental para ampliar estes dois últimos fatores mencionados há méritos para a trilha sonora. Nos momentos mais gritantes o nonsense é ampliado com a música circense (também denominada dixieland) acompanhando o evento até seu desfecho. Com esta ferramenta chega a ser cômica situações obviamente trágicas, o humor negro ganha pontos e torna-se um dos maiores trunfos da obra (principalmente por sua concepção ter como base a correlação de uma bem trabalhada imagem com um uso inteligente do som, não meramente como fundo coadjuvante do desenrolar das ações). Não diferente da música a imagem também apresenta seqüências bem elaboradas para transmitir a mensagem proposta. Para tal há uso do fast motion quando necessário, ampliando o tom satírico de algumas cenas, assim como a câmera na mão em plano-sequência em situações mais tensas como uma briga de irmãos logo no começo do filme. Por fim, soma-se ao grupo a montagem, também muito bem trabalhada, sendo a responsável pela consolidação do clímax nos diversos turning points vivenciados pela família Berry.

A plenitude destes elementos (imagem, som e suas respectivas montagens) é a responsável por possibilitar a concretização da linearidade da narrativa, ou seja, de dar o amparo necessário a complexidade do enredo em questão. No entanto não se pode deixar de mencionar o trabalho desempenhado pela direção e dos atores. Tony Richardson teve como produto final de seu trabalho uma tragicomédia muito rica, que apresenta momentos extremos em diversas situações do filme, sem torná-lo algo demasiado cansativo, forçado ou totalmente inverossímil. Para quem assiste a obra é possível identificar-se com os personagens, com os lugares apresentados, com as idéias levantadas. Isto é fruto de um trabalho cuidadoso em utilizar o mínimo do tempo com o máximo de aproveitamento. E neste quesito soma-se grande mérito aos atores, cada um em singular pela suas respectivas atuações representando brilhantemente as diversas alegorias de personalidade, na figura de cada papel: o individuo homossexual, o incestuoso, o desejoso pelo suicídio em vista de sua não adaptação, o sonhador, o que sofre preconceito por sua cor, o covarde que vive ileso graças ao sistema e até mesmo o que se camufla na figura de um urso para não ser exposto e julgado pela sociedade.

Todas estas alegorias somam-se para ilustrar ricamente uma parcela do que é o homem, do que é possível em nossa existência. Por isso não é difícil fazer um paralelo da película à uma tragédia grega, com ambientação moderna, humor britânico e rica em nonsense. Temáticas universais como o amor, a morte e amizade são trazidas ao fim do filme para o público com a presença de todos os personagens que permearam a obra, mesmo os que faleceram ao longo desta. E neste único momento o inverossímil se faz presente por completo, e, no entanto, boa parte dos sentimentos humanos estão lá, representados na figura de cada ator, de cada individuo, como que tentando dar sentido a imensidão absurda do qual participamos dia-a-dia em nosso cotidiano, para nos mostrar que no fim foi apenas uma peça teatral, com os atores retomando o palco para despedirem-se do público.

Pedro Marcondes é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Vídeos:

Trailer do filme
Jodie Foster e Nastassja Kinski

Bibliografia:

Sítio do filme no IMDB/
Sítio do filme no Wikipédia
Sítio do filme noBook Reporter
Millarch

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