Lula – O Filho do Brasil (Fabio Barreto, 2010)

*Wanderson Lima

Cartaz do filme "Lula - o Filho do Brasil"

Lula, o filho do Brasil pertence voluntariamente ao que se chama de indústria do entretenimento. Sua finalidade foi faturar números, e tudo o mais veio a reboque dessa meta suprema. Ronda a suspeita – para alguns, a evidência – de que se trate de propaganda ideológica. Os detratores de Lula se refestelaram com o banquete oferecido por Fábio Barreto, aproveitando para escavar da situação insinuações incabíveis de um suposto fascismo do Ex-presidente Lula. Os patrulheiros de plantão, munidos com as armas mais secretas das hermenêuticas da suspeita*, saíram com as teorias conspiratórias mais ensandecidas. Destas, me agrada bastante, pelo seu caráter risível, a que diz que o filme foi feito para alavancar a campanha de Dilma Rousseff. Esta é a hipótese: ao deslocar-se, no filme, o foco de atenção Lula para Lindu (a mãe do protagonista), os criadores estariam produzindo – num plano “ideológico”, “inconsciente”, “estrutural profundo”, ou sei lá o quê – nossa identificação ingênua entre a mãe de Lula e Dilma. Em suma, a mensagem “subliminar” do filme seria: se o Lula é o filho do Brasil, Dilma é a mãe do filho, portanto, a mãe do Brasil. Quanta sagacidade! A meu ver, a debilidade do filme provém de outra fonte: está enraizado, resumindo ao máximo, no medo do cineasta de interpretar esse mito vivo tupiniquim.

No Inferno forjado na Divina Comédia de Dante, os pusilânimes são considerados tão indignos que nem entrar naquele recanto lúgubre podem. Pois o Fábio Barreto que fez Lula é um consumado pusilânime: esforça-se por afastar qualquer suspeita de seu filme. Tampa, dessa forma, o sol com uma peneira. Antes de a história se iniciar, faz questão de avisar que não recebeu qualquer fomento federal, estadual ou municipal. Porém, que maior “fomento” que o aval do então Presidente para realizar o filme? Barreto constrói uma “hagiografia” sem querer dar a aparência que o faz, sem a energia de assumir uma posição firme, incapaz (e não por falta competência técnica) de fazer de fato um filme ideológico. Como assim, pergunta o leitor, o filme não é uma apologia do herói Lula? Sim, sem dúvida. Mas uma apologia acovardada, que salta o político e desce ao melodrama para escamotear sua postura política. É o filme sobre um filho qualquer do Brasil, não sobre o sindicalista fundador do maior partido de esquerda das Américas. Ou seja: vende cinicamente a idéia de ser neutro, de estar representando a vida de mais um nordestino que “venceu na vida”.

Cena do filme "Lula - o Filho do Brasil

Sei que parece paradoxal a idéia de uma apologia neutra, mas insisto nela. Quero dizer com isto que Fábio Barreto busca, nas suas operações formais e no seu roteiro, um ponto cego – que jamais existiu, diga-se de passagem – a partir do qual Lula seja visto com inteira isenção. Barreto comporta-se como um historiador positivista do século XIX, acreditando ser capaz de, bem documentando e mantendo-se distante do que narra, trazer o passado tal qual aos nossos olhos. Dessa forma, Barreto abdica de um gesto indispensável à cinebiografia de qualquer figura pública de relevo: produzir uma interpretação, no sentido forte do termo. Ele nega estar produzindo um mito, sob o pretexto de apenas estar representando um mito que se auto-produziu através de um esforço honesto.

Geralmente, a busca da neutralidade via representação artística (mímesis) atende pelo nome de realismo. Algumas vezes, certamente não em todas, o termo realismo recobre um visão simplória do que toma por realidade – simplória por acreditar que o simbolismo da mímesis deixa o real passar tal qual, sem qualquer filtro. Em cinema, a apologia do realismo, isto é, de uma representação límpida do real, depende de um paradoxo: a negação da natureza fílmica do filme. Negar que o filme é um filme, evitar que expedientes formais e metalingüísticos cortem a ilusão de realidade que a imagem em movimento emana, são estratégias usadas desde longa data por um tipo de cinema que quer descer ao mais puro grau de entretenimento, evitando o ruído inconveniente das reflexões. O problema é que este cinema que quer ser pura verdade é o mais puramente convencional, o mais preso à gramática fílmica convencional, verdadeiros baú de clichês que se vendem em troca de emoção barata. Pois bem: Lula, o filho do Brasil que ser este filme de representação límpida, sem ruído e, por isso, acolhe sem o menor pudor tudo o que é convenção; sendo um filme “realista”, ao mesmo tempo é um filme extramente insincero, incapaz de gerar emoção autêntica. Por trás de cada arroubo emotivo, de cada drama encenado, sentimos a mão pesada do artifício batido, do truque que nos quer fazer bobalhões. Trata-se de uma obra que justifica a assertiva de que erros éticos geram erros estéticos.

Cena do filme "Lula - o Filho do Brasil"

Fábio Barreto, não interpretando fortemente a figura do Lula, preferiu vestir seu personagem com um arquétipo bastante conhecido: o do herói. Não nego que haja lances heróicos na vida de Lula, mas há um limite para o exagero, e a visão simplista de Barreto não soube ver qualquer limite. No filme, cada ato da vida de Lula, desde pequeno, é o sinal de uma predestinação; cada dificuldade que enfrenta, uma prova que o levará a um patamar superior. Como Héracles, Lula vai, de trabalho em trabalho, ganhando um halo sobre-humano. Esvai-se, nesta operação, toda a complexidade da figura; qualquer ambigüidade moral é eliminada a machadada. O que sobra é uma criatura achatada, previsível, que faz dos demais personagens figuras mais apagadas ainda, meras escadas à disposição do herói que, sabemos, triunfará. A escada mais segura para o personagem Lula galgar o triunfo é sem dúvida a mãe, Lindu; nela temos o arquétipo mariano da doação total ao filho e a mais reta previsibilidade.

Não nos cabe cobrar do cineasta fidelidade da ficção à realidade, e não estamos aqui fazendo isto. Ao heroicizar a personagem, o problema não adveio do fato de o cineasta está exagerando as verdades, ou mesmo mentindo. O problema é como esta operação exime o cineasta de interpretar a complexa figura que apresenta. Do ponto de vista da arquitetura do filme, esta opção é desastrosa: obriga Barreto a submeter-se à lógica do crescimento do herói (cada ação filmada deve acumular mais um dado para a manifestação do caráter excepcional, heróico, do protagonista), mesmo quando esta não é coerente com a economia formal do filme e prejudicial à verossimilhança do enredo. A este respeito, o filme oferece muitos exemplos; ficarei com dois bem simples. O pequeno Lula assiste aos meninos jogar bola; vê-se, pelo destaque com que aparece na encenação, que ele é diferente. Chega o pai de Lula, agressivo, proibindo-o de jogar, dando-lhe safanões e dizendo que o direito dele é apenas trabalhar. O menino corre rumo a casa sob os cascudos do pai; a mãe o protege. O pai, então, garrafa de cachaça na boca, repete: “Tem que brincar não, tem que trabalhar”. Esta encenação dá-se no melhor estilo melodramático; afinal, o coitadinho comia mal, morava mal e tinha um pai sem afeto, alcoólatra e violento. Porém… bonzinho que era, e guiado pelos sábios conselhos de uma mãe alquebrada mas humilde e temente a Deus, o menino haveria de “vencer na vida”. Praticamente todos os episódios apresentam o mesmo didatismo irritante. Não dá para não fazer menção ao prólogo do filme. O pai vai para São Paulo ganhar a vida, deixando a família, com sua escadinha de filhos, no sertão pernambucano; na saída, se despede do cachorro, beija-o inclusive, mas mal levanta os olhos para ver os seis filhos. Vejam que crápula: beija o cão, mas mal olha para os filhos. (É o caso de se perguntar: um filme que começa com uma caricatura tão pesada poderia deixar de ser tão esquemático?). Passos adiante de sua casa, espera-lhe outra mulher, grávida; ele joga uma pedra no cachorro que ainda o segue (até ao amado cão ele fere sem dó ou piedade!); a grávida, que sequer foi cumprimentada, segue-o, caminhando com dificuldade num terreno pedregoso. É um grande crápula mesmo: vai com outra, mas esta também é tratada sem o menor afeto. Destaque-se ainda o gosto iconográfico para lá de suspeito da cena.

Cena do filme "Lula - o Filho do Brasil"

Há um argumento forte contra muito do que eu disse, e esse argumento foi por mim mesmo aludido no começo deste texto. Em palavras ligeiramente distintas, disse – o que não é nenhuma novidade – que se tratava de um filme sem grandes intenções artísticas e autorais, um mero produto de consumo ligeiro. Então, adianta chutar cachorro morto? Adianta escavar num ponto onde, de antemão, sabemos que não vai jorrar nada? Digo que sim, e aponto a razão: Lula, o filho do Brasil é o filme que vai nos representar no Oscar.

*(Nota do Redator): Termo consagrado pelo filósofo Paul Ricouer. Designa especialmente os modelos de interpretação consagrados por Marx, Freud e Nietzsche, que negam a possibilidade de a interpretação ser uma restauração do sentido: consideram-na, antes, um gesto de desmistificação, de denúncia de forças externas à consciência ,  que a iludem.

**(Nota do Editor) : O texto foi escrito antes da lista official dos filmes concorrentes ao melhor filme estrangeiro, porém de qualquer forma, fala sobre o filme que foi indicado pelos especialistas Brasileiros para concorrer, portanto tem seu espaço nesta edição.

*Wanderson Lima é escritor e professor universitário (Uespi). Co-edita a revista dEsEnrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog O fazedor (http://blogdowandersonlima.blogspot.com/), onde escreve sobre cinema e literatura

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