Cinema e educação: formando espectadores para um cinema diverso

Cristina Bruzzo*

Será a escola um lugar para falar de cinema? Um caminho interessante para deslindar a questão é deter-se sobre a espinhosa relação entre as salas de aula e o cinema, e alguns obscuros períodos de conluio entre os governos autoritários e a produção e exibição de filmes educativos mundo afora. Outra possibilidade, sem tomar o aspecto histórico da questão, é interrogar o que fazer com os filmes na escola, como compatibilizá-los com os conteúdos específicos dos programas curriculares e de que forma abordá-los para não promover uma indesejada dissociação entre forma e conteúdo, entre o tema tratado e o desenvolvimento narrativo e artístico proposto por seus realizadores.

Porquanto sejam interessantes essas abordagens, talvez o ponto candente na perspectiva educativa do voltar-se para o cinema é menos presença dos filmes na escola do que a necessária constatação de que somos todos espectadores e algo deve singularizar a relação dos educadores com os filmes para marcar a diferença na maneira de estar frente a uma tela grande.

Dentre inúmeras possibilidades de tratar do assunto, a proposta aqui expressa tangencia o desenvolvimento da produção cinematográfica e suas implicações sociais e econômicas, para entender as limitações que nos atingem como espectadores de um mercado agressivo, que define uma geopolítica da cultura.

Debruçar-se sobre as características dos filmes que arrebatam multidões de espectadores e celebram unanimidades é pertinente, mas também é preciso levar em conta os embates que marcaram a constituição do cinema como indústria. Só assim entende-se a hegemonia dessa forma de fazer cinema que os estudiosos – em que pesem as controvérsias – denominam de cinema clássico e consegue-se compreender como o cinema comercial se qualificou para ocupar o lugar que hoje divide, em desvantagem é certo, com a televisão.

Seguindo a provocação de Peregil – “televisão faz as perguntas e a Internet responde” (El Pais 29/04/2001) – Canclini (2005) argumenta que atualmente a televisão ocupa posição privilegiada na cultura visual e, de certa forma, organiza o sentido cultural de uma sociedade. Embora tenha criado e difundido formas específicas de ficção, como as novelas e os seriados, a televisão não tem como prescindir dos filmes para ocupar sua grade de programação. Podemos até duvidar da longevidade dessa ordem nas formas de entretenimento, porque a rede mundial de computadores anuncia o fim do que não passar pela conexão digital, ameaçando engolir os demais meios de comunicação de massa que operam em outros suportes (jornal, rádio, televisão, cinema, discos) em pantagruélico banquete.

Por enquanto os filmes sobrevivem muito bem, apesar de tantos anúncios do fim das projeções em tela grande, e persistem alimentando desejos e sonhos que entretém parte considerável das pessoas e a maioria dos jovens que aderem sem remorso ao circuito de filmes a bom preço e qualidade barata garantidos pela proliferação de bancas de venda de filmes provenientes da chamada pirataria, além daqueles que é possível baixar no computador pessoal. Com alguma nostalgia constata-se que a fruição coletiva de um filme na sala de cinema e a experiência sensorial propiciada pela combinação de tela grande e escuridão são condições esporádicas de ver filmes e restritas cada vez mais aos templos do consumo das grandes cidades.

A história do cinema que ficou consagrada, e retroalimenta o comércio de filmes, registra a paulatina construção dessa forma de expressão como comunicação para todos, com os mitos de origem sobre sua invenção. Fala-se do nascimento do cinema, com data, pais e local de nascimento – a famosa sessão pública dos filmes dos irmãos Lumière em dezembro de 1895 – esquecendo as experiências de filmar e projetar que pipocaram em vários países na segunda metade do século XIX. Nascido, o cinema conquistou seu crescimento pela sua filiação à modernidade e urbanidade, resultado sempre do melhor da tecnologia de cada época, preferencialmente a norte-americana, é claro. O olhar do cinema comercial é sempre dessa perspectiva: conservador.

O aprimoramento da estrutura ficcional dos filmes ajudou na consolidação da indústria cinematográfica norte-americana e levou à rápida difusão de sua fórmula narrativa, levando as filmografias de outros países a afirmar as mesmas convenções de linguagem, com inevitável desvantagem em relação aos filmes de Hollywood. Inventou-se o mito do cinema como linguagem universal.

De alguma forma os filmes conformam a nossa maneira de buscar interagir com o mundo à nossa volta. A tela de cinema engendra de modo sutil nossa vivência de espectadores que interfere na observação da realidade e na tessitura de interpretações para os acontecimentos inesperados e complexos da vida, criando um incessante movimento entre as situações propostas pelos filmes e o cotidiano pessoal, quase um diálogo entre personagens e espectador. Uma invenção de linguagem de grande poder de fascinação. Não menos importante é o efeito de tempo presente obtido nos filmes e que se esparrama na vida social.

O cinema brasileiro, sempre em desvantagem em relação ao estrangeiro, passou por crises e fracassos, seguidos de momentos de adesão do público e proliferação de fórmulas de sucesso, em movimento descontínuo de euforia e falências (como a Companhia Vera Cruz). De modo geral pode-se dizer que sempre enfrentou problemas para fazer as suas produções chegarem ao público, como, em geral, todo o cinema latino-americano. Ainda que hoje alguns filmes brasileiros conquistem o gosto popular e resultem em polpudas bilheterias, um conjunto considerável tanto em número quanto em ousadia narrativa não chega às telas ou nelas permanece por poucos dias, em poucos cinemas e apenas nas cidades já favorecidas por circuitos alternativos de exibição e maior número de cinemas.

Para se ter uma ideia do que isso significa em alijamento do público do cinema produzido no país, dados de 2007 apontam que naquele ano estrearam no Brasil 326 títulos, dos quais 78 filmes nacionais, assistidos por apenas 11% das pessoas que pagaram ingressos para ir ao cinema naquele ano. Vale lembrar que houve redução no número total de espectadores dos cinemas, entretanto a arrecadação aumentou e a explicação para isso está no aumento do preço dos ingressos que também ajuda a compreender a fuga das salas. Afirma-se o padrão de investimento no luxo e conforto dos cinemas, com o decorrente afastamento do público de menor poder aquisitivo, descaracterizando as salas de cinema como espaços de diversão popular. Hoje esse papel está com o mercado de DVDs piratas, no qual predominam os filmes comerciais que já chegam ao país definidos como grandes sucessos pelo esquema de propaganda das distribuidoras do mercado globalizado.

Os cinemas nacionais perdem espaço em quase todos os países (a indústria cinematográfica indiana é conhecida exceção), embora, sem dúvida, também tenham sido favorecidos com a globalização e a decorrente circulação de produções para além das fronteiras geopolíticas tradicionais. Em que pese o fato de filmes de países distantes nos chegarem e ampliarem nossa cultura cinematográfica, trazendo outras formas de fazer cinema e outras paisagens fílmicas, as grandes distribuidoras organizam de forma hegemônica o mercado cinematográfico.

A discussão sobre as identidades nacionais num mundo globalizado e os aspectos econômicos e sociais envolvidos na sobrevivência das indústrias cinematográficas nacionais está na pauta das políticas culturais mundo afora. Os produtos audiovisuais respondem pela segunda receita de exportação dos Estados Unidos e as telas de cinema dos países de todas as latitudes confirmam essa hegemonia. Uma das causas pode ser o que apontam os estudos sobre consumo cultural em países latino-americanos: “a sintonia entre os gostos do público e os estilos do cinema estadunidense. (Canclini, 2005, p.249). Apesar do esforço artístico, cultural e político das investidas realizadas em diversas ocasiões e nações para enfrentar o êxito do cinema americano, se levamos em conta a situação da produção em toda a América Latina, apenas as realizações cinematográficas do México nos anos 50 conseguiram desbancar em seu território a hegemonia dos filmes americanos, nos outros países da região as ofensivas foram breves.

Richard Abel examinou os mecanismos empregados para manter o controle da indústria cinematográfica nos Estados Unidos nos primórdios do cinema e destaca a sistemática atuação combinada dos estúdios, da imprensa desqualificando a produção estrangeira e do governo dificultando a importação de filmes de estúdios franceses: isso permitiu engendrar a hegemonia do cinema americano (Abel, 2001). A pesquisadora da história do cinema e estudiosa da relação entre o cinema norte-americano e a modernidade, Míriam Hansen (1999), considera determinante para essa conquista a elaborada linguagem desenvolvida pelos realizadores americanos, dentre os quais Griffith, que resultou na afirmação da narrativa clássica.

O efeito foi estabelecer-se efetiva comunicação com o público diverso e fora de lugar naquele além mar desconhecido, imigrantes que encontraram nos filmes mudos o lazer barato, diversão fácil e um lugar de encontro, as salas de cinema, que atraíram uma nova audiência em massa que incorporou muitas mulheres e crianças. A rede de cinemas oferecia contraponto para as duras jornadas de trabalho e a fadiga da labuta no espaço doméstico, ajudando a configurar uma esfera pública ‘alternativa’, em contraste com a esfera pública industrial-comercial. (Hansen, 1999)

A partir dessa empatia que configurou o cinema em sua origem como um entretenimento popular para alguns consensos colaboraram para sustentar essa hegemonia. O primeiro é a afirmação do cinema como linguagem universal, de que decorre ser esse o melhor meio de narrar os acontecimentos humanos. O que se supõe ser universal é apenas uma das possibilidades de ser das linguagens audiovisuais que de tanto afirmar-se como tal, vem se tornando, de fato, universal. O cinema universalizou a maneira de registrar a realidade por oposições, inscrita no próprio processo de filmar, que alterna a imagem de cada fotograma e os intervalos pretos, intercalando luz e escuridão e o princípio binário que está na base da imagem digital. Esse esquema de oposições está presente na visão simplificada do real que sustenta a maior parte da construção ficcional cinematográfica, de forma esquemática e com base nos valores consensuais e nas formas consagradas de contar histórias que permitem encontrar aquilo que já se sabia. Também incluem uma tipologia que apóia os aspectos psicológicos e as motivações dos personagens a ocuparem o lugar principal, criando um microcosmo no enquadramento da tela que pretende desenhar um cenário de acontecimentos exemplar.

Tal conjunto aqui exposto de forma esquemática é certamente injusto para com a diversidade dos filmes, mesmo aqueles considerados como cinema comercial, mas permite compreender que essa forma narrativa acabou por neutralizar, em termos culturais, o esforço para modificar as convenções e os modos de contar histórias, realizados pelas artes modernas, literatura e teatro. (Aumont, 2006). Alguns cineastas, é bom lembrar, também ousaram na inventividade narrativa e seus filmes foram preteridos pelo cinema hollywoodiano.

As cinematografias dos diferentes lugares se expandiram de algum modo tomando como referência o modelo americano: perseguindo a sua repetição ou opondo-se a ele como as vogas de inspiração autoral ou propondo invenções e citações. Com frequência reverenciando o melhor da filmografia americana e estabelecendo com seus filmes complexas relações entre cinema comercial e de autor.

Para dimensionar o impacto cultural e educativo da distribuição globalizada dos filmes, é preciso considerar que esse movimento ao mesmo tempo em que aproxima os povos e suas produções, de forma contraditória promove padronização do diverso. Tal ocorre, na medida em que parte das realizações se conforma ao modelo comercial, exatamente para garantir a circulação. Acabamos por nos defrontar com as dificuldades para situar os efeitos da globalização no panorama cultural. Néstor Canclini procede a uma interessante análise sobre o mundo marcado pela globalização, apontando como no movimento de unificar e dividir os mercados desglobalizam, gerando maior mobilidade, que está associada à exclusão. Esse processo perverso faz com que populações majoritárias em escala transnacional tornem-se minorias étnicas quando se leva em conta a sua expressão cultural, como as populações de origem hispânica que moram nos Estados Unidos. A produção cinematográfica dos países latino-americanos tem uma presença minoritária, esmagada pela reestruturação dos mercados culturais, que transfere as decisões relativas à produção e distribuição para centros localizados fora do continente, dificultando “a comunicação dos criadores com sua própria sociedade”. (2005, p. 243-244).

Lembrar que os professores também estão na condição de espectadores significa saber que deles se esperar a afirmação e defesa de políticas culturais que garantam melhores e efetivas condições de produção e divulgação para a maior variedade possível de filmes aqui e em qualquer lugar. No mundo marcado pela globalização, lembra Canclini, é preciso “articular as batalhas pela diferença com as que se dão contra a desigualdade num mundo onde todos estamos interconectados” (2005, p.262)

Se a educação passa pela democratização do acesso a obras culturais para que os jovens possam proceder a suas escolhas entre as múltiplas e diversas produções e expressões do fazer humano, importa a qualidade do professor como espectador para o enfrentamento das políticas culturais excludentes. Interrogar-se sobre o lugar dos filmes na escola depende de saber as relações dessa instituição com a cultura e sua abertura para as investigações criativas das diversas linguagens, dentre as quais as audiovisuais. Será possível na sala de aula abrir o leque de opções, na contramão das imposições do mercado cinematográfico?

*Cristina Bruzzo possui  mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1988) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1995). Atualmente é professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do grupo de pesquisas OLHO, Laboratório de Estudos Audiovisuais.

Referências

ABEL, Richard. Os perigos da Pathé ou a americanização dos primórdios do cinema americano. . In: Charney, L.; Schwartz, V. (org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p.258-312.

AUMONT. Jacques. Le cinema et la mise-en-scène.. Armand Colin, 2006.

GARCIA CANCLINI, Néstor. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.

HANSEN, Mírian. The Mass Production of the Senses: Classical Cinema as Vernacular Modernism. Modernism/Modernity 6.2 (1999) p.59-77. The John Hopkins University Press

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