Arbitrariedade e opressão

Sexta-feira, 2/8/1968

Depois de realizar “São Paulo SA”, onde revelou sua tendência para o realismo quase documental, Luís Sérgio Person foi a Minas Gerais e filmou “O Caso dos Irmãos Naves”. Neste seu segundo filme em longa-metragem, temos a preocupação documental formulada com um rigor muito maior. As ações, os personagens, todos os momentos da fita são baseados (e procuram se manter estritamente fiéis) nos fatos ocorridos em Minas na cidade de Araguari, em meados da década de trinta. Para isso, todo um trabalho de pesquisa foi efetuado, através de consulta aos documentos existentes, aos autos do processo lavrado e através de informações obtidas no local. Coletou-se o máximo possível de dados a respeito dos irmãos Naves (na fita interpretados por Juca de Oliveira e Raul Cortês) e do encaminhamento do processo judicial, que culminou com a condenação dos dois, por roubo e assassinato. Com base nestes dados, foi elaborado o roteiro do filme, cujo tom documental, noticioso, é patente. A presença de atores, a dramaticidade, podem nos dar uma aparência de ficção, mas, na verdade, estamos diante de uma realidade reconstituída. Toda a reconstituição deste tipo, por mais exata que seja na narração dos fatos (como neste caso), envolve a interferência de quem narra, isto é, do autor. A seleção dos acontecimentos, a forma de apresentá-los, o tratamento em termos de imagem e som, constituem mais uma interpretação do que, propriamente, uma simples informação. E Person não quis apenas informar, procurou dar uma dimensão maior ao ocorrido, tomando-o como ponto de apoio concreto e indiscutível, para a colocação de alguns problemas relativos à opressão. Não foi por acaso que o filme foi feito, nem por curiosidade. Antes de tudo, é fruto da nossa realidade de hoje, muito semelhante à que a fita apresenta, em alguns aspectos. Em ambas emergem a arbitrariedade e a opressão policial como formas de justiça, como elementos de solução das questões colocadas a um poder instalado pela força. A lei, a estrutura jurídica, desnuda-se na sua esterilidade, na sua burocracia e na sua retórica falseadora e mentirosa. Não tem possibilidade de resistir às pressões que sofre, sua única função é institucionalizar a violência dos que dominam. Esta violência surge na tela com contornos bem precisos, bem identificada. Não é gratuita nem se exerce por poderes misteriosos como em alguns filmes recentes. A insistência da sua presença foge ao espetacular, foge daquilo que nos é dado segundo uma sucessão planejada para controlar nossas emoções. Pelo contrário, nos incomoda, nos inquieta. E por isso mesmo, provoca a reflexão. Essa reflexão tão necessária e tão dificultada nos dias de hoje.

Ismail Xavier

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