Singularidades de uma rapariga loura (Manoel de Oliveira, 2009)

Em alguns artistas, a velhice traz a noção de que dizer a verdade consiste, em grande parte, em livrar-se de barroquismos. Manoel de Oliveira, que em dezembro completará 102 anos, pertence a este rol: a cada filme seu, a depuração vai atingindo uma essencialidade franciscana. Depuração, porém, não significa transparência: e o sentido dos filmes bem carpidos desse português é misterioso.

Cena do filme "Singularidades de uma rapariga loura"

Num estilo essencial qualquer signo a mais, ou deslocado, é logo percebido, ganhando uma conotação simbólica. Assim é Singularidade de uma rapariga loura (Portugal, 2009): escorreito, contido, mas eivado dessas armadilhas simbólicas. Quem o assista sem conhecer o conto homônimo de Eça de Queiroz em que o filme se inspirou, terá um ganho e uma perda evidentes. Um ganho, sem dúvida, é o impacto do desfecho (desde o esplêndido Filme falado, de 2003, Oliveira não fazia um final tão impactante); a perda é que o conto nos dá um conhecimento prévio do universo moral de Luisa que nos ajuda a perceber com mais discernimento a sutileza de certas cenas.

Cena do filme "Singularidades de uma rapariga loura"

Explicitamos de saída: Manoel de Oliveira não adaptou o conto de Eça de Queiroz, se com adaptar entendemos buscar ser fiel ao original, encontrar recursos equivalentes no cinema àqueles que o prosador se valeu na arte literária. Embora correto e elegante, qualidades também evidenciáveis no cinema de Oliveira, o estilo de Eça é pródigo de recursos, abundante de adjetivos usados em contextos insólitos, mas ricos em subentendidos (“… possuía o caráter louro, como seu cabelo) e sempre irônico quanto aos comentários que, direta ou indiretamente, tece sobre a sociedade; na versão cinematográfica que Oliveira recria, ganha-se em sutileza (qualidade que o autor de O crime do Amaro nem sempre ostentou entre suas maiores) o que se perde em ironia ferina e análise social impiedosa. Mas o diferencial maior talvez seja a ambição eciana, mesmo no curto espaço de um conto, em constituir um painel social em contraste com a contenção manoelina, que se centra no drama que envolve o casal  Macário e Luisa. Em resumo,  Manoel de Oliveira não viaja ao país de Eça: traz Eça ao seu mundo.

Infidelidade? Penso que, quando se trata de recriar no cinema a obra de um grande escritor, só se é infiel quando se é subserviente à obra literária (neste sentido, perceba-se com o Brás Cubas de Júlio Bressane, mesmo sem ser uma obra-prima, é infinitamente superior à versão genuflexória de Reginaldo Farias) ou quando se exorciza do filme toda a complexidade da obra literária unicamente com fins comerciais. Naturalmente, os aficionados na prosa de Eça irão desconsiderar o mais de meio século de trajetória artística de Manoel de Oliveira e dirão que o filme é pouco eciano; já os zelosos professores de Literatura talvez considerem, com razão, que seus alunos irão achar o filme enfadonho, com sua Mis-en-scène minimalista e os atores recitando o texto, à maneira bressoniana (aliás, a atriz que interpretou a Luisa, Catarina Kelenston, é uma perfeita “modelo” bressoniana, deixando a leitura das emoções por nossa conta; já o tio de Macário me pareceu um pouco excessivo para os padrões do filme). É quase ocioso dizer que essas opiniões reticentes quanto ao filme, para o espectador sensível, que de fato gosta de cinema, não irão sequer arranhar a reputação de Manoel de Oliveira.

Cena do filme "Singularidades de uma rapariga loura"

Singularidades de uma rapariga loura, o filme, arma um expediente narrativo bastante conhecido: o protagonista, numa viagem de trem, conta, ainda angustiado, sua história de amor frustrado a uma desconhecida. Com esse expediente, Manoel de Oliveira facilita a constituição da essencialidade narrativa, desobrigando-se de colecionar imagens meramente ilustrativas. O que é inessencial, não vemos, só ouvimos; só se filma o estritamente necessário à economia estética do filme e à revelação dos traços psicológicos e morais das personagens (não é à toa, pois, que o filme só tenha 64 minutos).

A primeira cena significativa do filme – considerando que as cenas do trem servem primordialmente como muleta narrativa – é sintomática do que enunciei parágrafos acima, isto é, de como o estilo clean e contido do diretor imediatamente desloca à condição de símbolo qualquer signo aparentemente inessencial da encenação. O protagonista Macário (Ricardo Trêpa) contempla, da janela do seu escritório, a bela e misteriosa Luisa (a mão segura um leque chinês, a que o protagonista não cansa de falar em seu relato; os cabelos cobrem um dos olhos; a postura é discretamente dissimulada); nesta hora um discreto som de microfonia cede lugar ao repicar de sinos (numa celebração sacral ao amor que nasce, como bem notou o crítico Fábio Andrade); Luisa desce uma cortina translúcida mas não deixa de, através dela, trocar olhares com Macário.  O leque “chinês” (onipresente também no conto de Eça), a cortina translúcida, os sinos que repicam – eis aí armada a teia simbólica do filme, embora dificilmente percebamos a primeira vez que o vemos. Macário se apaixona por uma imagem, no sentido platônico; isto é, por um eikon, uma sombra, uma ilusão. E ele irá perseverar nessa imagem até a revelação sobre o caráter de Luisa que o desfecho mostrará. Para quem não leu o conto, ou assistiu ao filme distraidamente, a atitude de Macário poderá parecer mais dura do que de fato o foi.

Cena do filme "Singularidades de uma rapariga loura"

Uma cena sintomática quanto a um ponto basilar que tenho defendido acerca do estilo do filme – a saber, como no estilo minimalista do diretor qualquer gesto ou objeto “em excesso” ganha força simbólica – é a em que Macário decide viajar para Cabo Verde a fim de conseguir o dinheiro necessário para casar e dar uma vida digna para Luisa. Ao comunicá-la pessoalmente sobre a viagem (ela já sabia através de carta), os dois se beijam; no momento do beijo (ou sendo muito cético: no momento que presumimos que se beijaram), a câmera foca apenas as pernas de ambos (ou opção que lembra Bresson). Nesta hora, de uma maneira gritantemente forçada e artificial, Luisa levante uma das pernas. Índice do caráter dissimulado de Luisa? Referência paródica a Hollywood? Difícil, ao menos para mim, decidir. É nos pequenos gestos, nos detalhes ínfimos, que Manoel de Oliveira abre clareiras de mistérios em seu estilo clean e quase didático. Uma cena como essa, ainda que não decidamos o seu sentido preciso, nos lembra que há um corpo e que este pode reagir diante das situações de maneira natural ou de modo maquiavelicamente premeditado. Ou seja: a imagem é dubitável em sua própria constituição. Em última instância, portanto, Singularidades de uma rapariga loura é um filme sobre o caráter ambíguo da imagem, sobre o que podemos (e queremos) ver. Quantos de nós já não se apaixonou por uma mera imagem (eikon)?

Cena do filme "Singularidades de uma rapariga loura"

A impressa mundial não cansa de apresentar Manoel de Oliveira como um fenômeno exótico (positivo, mas não por isso menos exótico): um simpático velhinho centenário que faz um filme por ano! Mas producente seria indagar como o fator idade influi na economia de seus filmes. Na depuração estilística de seus últimos filmes, por exemplo. E, no caso de Singularidades, no anacronismo evidente dos valores vividos e partilhados pelos personagens. Anacronismo esse que não só corrobora a autenticidade autoral do filme (Manoel, além de dirigir, adaptou a história de Eça e participou do processo de montagem) como nos faculta um distanciamento dos personagens que afina nossa percepção dos valores que patenteiam nosso modo de vida.

Wanderson Lima é escritor e professor de literatura (UESPI). Co-edita a revista dEsEnrEdoS e mantém o blog O fazedor.

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Este post tem um comentário

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    Luisa Braga

    Acabei de ler o seu comentário ao filme de M. de Oliveira, Singularidades de 1 rapariga loira, baseado na obra homónima de Eça. Felicito-o pelo facto de o ter feito (deste lado do oceano passou quase desapercebido…), e ainda pela clareza,objectividade e ausência de preconceitos que subjazem à sua análise.

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