Festival de Cinema de Paulínia

Uma breve passagem por Paulínia: suficiente, porém, para reconhecer a coerência do Festival naquilo em que se propõe. Paulínia tem metas óbvias; quer, simplesmente, ser Hollywood. Não à toa, seu Festival tem ares megalomaníacos: as sessões da mostra competitiva são realizadas num teatro assumidamente inspirado no Kodak Theater de Los Angeles, onde são realizadas as cerimônias do Oscar, e a presença de celebridades é garantida com direito à tapete vermelho (Lázaro Ramos e Marília Gabriela ciceronearam a cerimônia de abertura, enquanto Marina Person esteve como apresentadora oficial). Enfim, há todo um glamour presente no evento, o que acaba atraindo os olhares de cineastas, jornalistas e, sobretudo, do público.

Sim, Paulínia teve público e esse fato não deve passar desapercebido. Mesmo contando com uma seleção de filmes inseridos fora do cinema mainstream nacional (ou, ao menos a maioria), houveram momentos dos dois dias em que estive no Festival, no qual os 1.350 lugares da plateia estiveram totalmente ocupados. O público presente estava preparado para algumas das obras apresentadas? Provavelmente não, algo que se refletiu, por exemplo no ótimo Moscou, de Eduardo Coutinho, que espantou parte da plateia. O que não importou, as obras estiveram acessíveis, o Festival soube se divulgar, e o resultado não podia ser outro: Paulínia teve público e isso não pode ser ignorado.

Não basta, porém, atrair público, viabilizar projeções gratuitas, e não contar com uma projeção de qualidade (e muitos festivais parecem acreditar que bastam os filmes serem projetados, seja lá como for). Paulínia tem mais um trunfo: sua excelente qualidade de projeção, seja de imagem ou som. Não à toa, houveram elogios de Coutinho e Eduardo Valente na apresentação de seus respectivos filmes: ninguém melhor do que os próprios diretores (e suas equipes) para saberem o quanto é desrespeitoso, e o quanto uma obra pode perder em termos audiovisuais quando mal projetada.

No meu lugar, de Eduardo Valente
"No meu lugar", de Eduardo Valente

Resumindo, Paulínia tem potencial. Difícil dizer como pólo cinematográfico, afinal acredito que os dois curtas locais vistos no Festival não são suficientes para assimilar o nível da produção feita na escola “Magia do Cinema“, um dos vértices do projeto de pólo proposto pela cidade (mas, no geral, antecipo que a seleção dos curtas deixou a desejar se comparada aos longas). Ainda assim, é um festival que tem metas e objetivos traçados, e que está antenado ao audiovisual que é produzido no país, estando aberto aos mais diversificados cinemas (prova disso é a presença de um documentário hermético como Moscou, ou de um filme dilatado, construído sobre tempos mortos como é No Meu Lugar, de Eduardo Valente). É, portanto, um festival atento a todos os bons cinemas, mesmo que não seja aquele que procura produzir/mimetizar. Tem, por fim, uma identidade, uma coerência, algo que, sejamos francos, muitos festivais dispensam ultimamente.

Sobre os filmes

Quarto dia de festival, terceiro das mostras competitivas. Paulínia divide sua mostra competitiva da seguinte forma: ficção, documentário, curta-metragem e curta-metragem regional, sendo que um exemplar de cada categoria é exibido por noite. Minha abertura do festival acabou sendo com um curta de documentário regional, cujo título é Quem será Katlyn?. Uma pena o desperdício que esse doc. faz de seu tema. Após uma apresentação pseudo-engraçadinha em animação do papel do homem e da mulher na sociedade, o documentário (participativo dos mais quadrados possíveis) entrevista uma série de pessoas e, entre elas, Katlyn, uma travesti que conta sua experiência e transformação. O problema é que, além de não explorar bem a personagem, o documentário também não sabe ao certo como filmá-la e o resultado acaba não sendo dos melhores: sempre que o filme tenta destacar a feminilidade de Katlyn, acaba transformando-a em vulgaridade; sempre que tenta dialogar com a Katlyn ser humano, esbarra na Katlyn travesti e não vai além disso.

Seguido ao curta veio o filme de Evaldo Mocarzel (que, acredito ser sensato constar aqui, foi meu professor por dois semestres). Sentidos à Flor da Pele é, primeiramente, um documentário honesto e isso por si só já é um mérito. É filmado com sensibilidade e percebe-se o envolvimento do filme com seus personagens (o filme surgiu de um interesse que Mocarzel tinha pelo pai de seu montador, que perdera a visão). Mas há algumas questões incômodas: a primeira delas, a edição recortada e, sobretudo, a câmera inquieta (há varios ajustes de quadro através de zooms) que o filme apresenta durante as entrevistas, algo que pode ser justificável e interessante em momentos observativos, mas acaba atrapalhando quando o foco de interesse é o personagem e a fala. A segunda, nem é verdadeiramente prejudicial ao filme, mas trata-se da repetição de Mocarzel em utilizar certos artifícios ou intervenções que façam o personagem dialogar mais diretamente com o filme: aqui, ele coloca um rapaz deficiente visual para sonorizar um plano do filme, e mais pra frente, emprega um recurso parecido à uma outra personagem. Ele já havia feito isso anteriormente: em Do Luto à Luta, fez com que um dos personagens o entrevistasse para que pudesse assim revelar o motivo desencadeante do documentário; em Jardim Ângela, deu a câmera para que um garoto morador da favela filmasse o ambiente a seu próprio modo. Sentidos à Flor da Pele não chega a se prejudicar com esse tipo de intervenção, mas certamente seus melhores momentos são mais sutis, como o momento das fotografias narradas pelo primeiro personagem, ou uma constatação feita pela última entrevistada, que declara ser impossível ser completamente autêntica em frente as câmeras. Sem querer, essa personagem delineia a fragilidade da linha que separa documentário e ficção, algo que será retomado no filme de Coutinho.

Em seguida, um curta de ficção fora da competição regional, entitulado Doce Amargo, estrelado por Débora Fallabella e Rafael Primot, que também dirige o filme: o curta mais interessante que assisti no Festival. Decupado de forma bastante simples (basicamente em closes), criando assim uma praticidade de produção e alicerçando-se basicamente sobre o roteiro (que trata de marcadores comuns a um relacionamento emergindo numa situação limite) e o trabalho dos atores.

Fechando minha primeira noite, o longa Quanto Dura o Amor?, produção de direção simples, mas bastante correta, apoiada num roteiro perneta e estereotipado tratando de um universo jovem inserido num cenário urbano, tudo com roupagem de especial da Globo. Pensando bem, só não se enquadraria na grade de especiais de fim de ano pelas cenas de beijo/sexo homossexual, que seriam vetadas pela emissora. Tem um bom trabalho do elenco, em especial da atriz protagonista Silvia Lourenço. Enfim, se houve alguma espécie de “bairrismo” no Festival, o novo longa de Roberto Moreira (de Contra Todos) foi o privilegiado, já que sua produção contou ativamente com recursos de pólo de Paulínia.

Quinta noite de Festival, segunda e última para mim. Primeiro curta: Spectaculum, de Juliano Luccas, o mesmo de Luchador, a bomba do Festival do Paraná, ano passado. Boas notícias: há uma visível melhora na direção e decupagem de Luccas, o que por muito pouco não salva o filme (a direção de arte também é bem feita). Mas, Spectaculum se entrega a uma série de clichês e sua história desmorona proporcionalmente a má atuação do ator protagonista super caricato. Não bastasse o final ruim, há uma tentativa de se reverter a situação com uma inserção documental ao fim do filme, o que só reitera o desespero de se salvar a coisa toda.

"Moscou", de Eduardo Coutinho

Moscou, de Coutinho. Documentário hermético, difícil mesmo, não à toa gerou espanto. Coutinho registra fragmentos de uma montagem da peça Três Irmãs, de Tchekcov. Não há linearidade e a câmera se alterna entre uma decupagem de documentário e ficção: ora oscila entre uma distância documental de mera observadora, ora se sente atraída pelos personagens, ora, é objeto de disputa entre eles. Coutinho desafia claramente essa fronteira. Como se não bastasse, faz um paralelo entre a construção fílmica do próprio documentário e a montagem da peça. Não se trata de um documentário fácil: é cinema que provoca e exige reação, mesmo que seja a ocorrida durante a projeção, com parte do público deixando a sala.

Após a experiência perturbadora de Moscou, houve o curta Milímetros. Uma piada, literalmente. Há uma crítica ao documentarismo vazio, mas a tal piada prevalece e sobressai, para prejuízo do filme. Por fim, o curta entrega-se ao mau gosto. Perde-se a chance de se fazer uma boa paródia sobre a estrutura documental e a saturação de um certo tipo de documentário em prol de uma piada. No fim, é só ela quem fica.

Como término do Festival de Paulínia (para mim), No Meu Lugar, de Eduardo Valente, exibido em Cannes recentemente. Há ali uma roupagem vinda do cinema argentino, semelhante a de Feliz Natal: tempos mortos, ações alongadas, coisas aparentemente irrelevantes. Há, também, três tempos narrativos que nos são revelados sem muita surpresa: dois deles têm personagens presos à inércia de uma tragédia, o terceiro, por sua vez, revela o agente causador desta. A favela é tida como espaço de uma violência intrínseca, porém latente, adormecida. Essa latência consome No Meu Lugar, sem jamais permitir que haja qualquer explosão além da vista na cena inicial. A classe média, ainda que se mantenha isolada dos demais personagens, é retratada dentro do ambiente (a favela) como poucas vezes fora anteriormente: não como um elemento estranho deslocado de seu espaço, como um outsider, mas sim como algo pertencente àquela sociedade. É como se o Rio de Janeiro se tornasse uma coisa só, sem a divisão entre morro e asfalto frequentemente representada pelo cinema nacional. Como ressalvas, apenas a duração um pouco longa e a trilha sonora que, repetitiva ao quadrado, reitera sem necessidade a ideia de ciclo que será fechado entre as três narrativas.

Alvaro André Zeini Cruz é graduando em Cinema pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP)

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