O sujeito parcial em Cisne Negro

*Jéssica Natana Agostinho

INTRODUÇÃO

A análise aqui proposta abordará, em um primeiro momento, a definição de sujeito a partir de seu posicionamento no longa de Darren Aronofsky, Cisne Negro (Black Swan, EUA, 2010). Logo após, será analisado a não onisciência desse sujeito que, não apenas acompanha a narrativa a partir das ações da protagonista Nina, interpretada por Natalie Portman, mas se relaciona com uma parte de sua personalidade confusa, visionando não os fatos realísticos, mas sim as alucinações dessa personalidade em transformação. Posteriormente, a análise tratará do sistema da sutura, tomando como base as cenas de Cisne Negro.

O SUJEITO PARCIAL EM CISNE NEGRO

Black Swan inicia-se com uma sequência em que a personagem Nina, bailarina profissional, dança em um palco pouco iluminado. O espectador é informado posteriormente, pela própria personagem – em um diálogo com sua mãe – que tal performance trata-se de um sonho, em que a bailarina interpreta o Cisne Branco, personagem do célebre balé O Lago dos Cines. O sonho é premonitório: Nina, logo mais, será uma das candidatas a interpretar tal personagem – e, também, o Cisne Negro – em um grande espetáculo a ser realizado pela companhia de dança da qual faz parte. O prólogo, tanto do filme quanto da coreografia sonhada, está dado e o feitiço é jogado: Rothbarth lança seu feitiço sobre o Cisne Branco e sobre Nina, que terá que passar por uma árdua transformação. No palco onde se passa seu sonho estão presentes a própria bailarina, o intérprete de Rothbarth e uma terceira entidade, que a tudo observa. Tal entidade é livre, móvel e ágil. Toma quaisquer posicionamentos, busca a melhor visualização e dança ao passo dos bailarinos. Ela não se identifica enquanto personagem e não pode ser vista, mas é aquela que conduz o olhar. O espectador posiciona-se no lugar dessa entidade e observa, sorrateiro, em um jogo em que não se move, mas é impelido ao movimento. Essa entidade pode ser comumente minimizada, como sendo a câmera e toda a equipe por detrás dela, mas, em termos teóricos e cinematográficos, ela é tida como sujeito.

Nesse caso específico, em que a cena se passa na atmosfera da mente de Nina, há margem para a interpretação de que o sujeito é a própria personagem a observar seu eu onírico. Entretanto, a questão não é findada. Nas cenas imediatamente seguintes o filme deixa de se passar no âmbito dos sonhos e Nina está ali, presente nas imagens, sendo observada por diversos ângulos em sua rotina matinal. Ela é literalmente seguida até o balé, em enquadramentos que evidenciam tal sensação, na qual a personagem encontra-se absolutamente de costas e a câmera movimenta-se com seu andar. Quem segue Nina?

O sujeito, absolutamente essencial para o sentido e a disposição dos acontecimentos, pode ter caráter onisciente ou não. Um sujeito onisciente presenciará acontecimentos que fogem do domínio dos personagens que conduzem a narrativa. Consequentemente, o espectador saberá mais que os próprios personagens. Mas o sujeito pode tomar outro rumo, em que ele basicamente segue os condutores da ação. Nesse caso, os mistérios e pormenores da narrativa são desvendados pelo público ao passo que se revelam para os personagens, e é neste âmbito em que Cisne Negro melhor se enquadra.

O sujeito não apenas se revela como seguidor de um personagem mas, em Cine Negro, ele acompanha apenas uma das personalidades de Nina, absorta em um profundo estado de confusão mental. A personalidade em questão é a composta por uma menina doce, amável e virginal. É o lado análogo ao Cisne Branco, presente em Nina de maneira tão marcante quanto sua postura perfeccionista e bastante rígida. Protegido e resguardado por uma mãe obcecada, o lado branco será posto a prova e o feitiço, lançado por Rothbarth durante o prólogo, começa a manifestar-se logo depois. Nina, escolhida para o papel da Rainha Cisne, que engloba tanto o Branco quanto o Negro, terá que encontrar seu lado obscuro, malicioso e sensual. Durante o processo, inquestionavelmente doloroso e autodestruidor, Nina passará por alucinações e névoas. Os mistérios e dúvidas serão entendidos por ela gradualmente e, não sendo o sujeito onisciente, o espectador fará as descobertas ao mesmo tempo em que elas se configuram para o lado Branco e alucinado da personagem.

Há vários momentos em que Nina presencia fisicamente os acontecimentos, mas sua mente os interpreta de outra maneira, criando irrealidades. O sujeito, em Cisne Negro, não acompanha os fatos físicos e orgânicos, mas sim aqueles criados mentalmente por uma das personalidades de Nina. A sequência, próxima do término do filme, em que a luta das personalidades distintas e opostas é objetivada, deixa claro esse posicionamento do sujeito.

Durante a grande estreia do espetáculo, Nina inicia sua performance como Cisne Branco com um erro evidente e constrangedor, caindo em plena coreografia. Transtornada e prestes a iniciar o próximo ato – absolutamente mais difícil, já que entra em cena sua personificação do Cisne Negro – entra em seu camarim e depara-se com Lily ocupando seu local. Lily, outra bailarina da companhia, simboliza, durante todo o longa, o lado Negro que Nina luta tanto para alcançar: forte, espontâneo e sedutor. Neste momento da narrativa, Lily está declaradamente tentando tomar o papel de Nina como Cisne Negro, julgando que a doce bailarina não será capaz de interpretá-lo. Entretanto, no próximo plano – e em vários outros – a fisionomia de Lily é substituída pela de Nina e a bailarina luta, enlouquecida, com ela mesma. A tensão da cena tem seu ápice no momento em que a doce bailarina impõe-se, “É minha vez!”, e mata a impostora, agora novamente com a fisionomia de Lily. Assustada, Nina esconde o corpo da colega e sente-se finalmente apta para personificar o Cisne Negro. A cena aqui descrita é vista totalmente pelo ponto de vista da alucinada Nina. O que vem a seguir é uma performance memorável e a revelação de que Nina não havia matado sua rival Lily, mas a si mesma. Retornando ao camarim, Nina, após visita rápida e inesperada de Lily, percebe que a luta a pouco travada havia sido contra sua única rival, ela própria, e que sua personalidade doce e rígida, análoga ao Cisne Branco, havia sido assassinada por um fragmento de espelho. O Cisne Negro estava, então, livre.

Mas como ocorreram orgânica e fisicamente aqueles fatos? De que maneira Nina quebrou o espelho de seu camarim e enfincou um pedaço pontiagudo em seu próprio abdome? Não há dúvidas de que Nina estava presente naquele pequeno cômodo e de que presenciou como tudo aconteceu. Entretanto, o sujeito não seguia apenas a personagem Nina e sim uma parte dela, imersa em toda sua complexidade.

Reflexão parecida pode ser traçada na cena em que Nina e seu alterego  Lily – o Cisne Branco e o Cisne Negro – relacionam-se sexualmente. Diferente de como se pode ser julgado, tal cena não diz respeito somente ao sexo entre duas belas mulheres, sendo, antes de tudo, dotada de grande simbologia. Antes do momento em questão, Nina já havia discordado veementemente de sua mãe em algumas oportunidades, impondo-se intensamente. Tais momentos ocorreram, entretanto, brevemente, sendo facilmente perceptíveis através, entre outros elementos, do trabalho sonoro dado à voz de Nina, tornando-a diferenciada, aproximando-a do que seria a voz do Cisne Negro que a habita. Em determinado momento, Nina contraria os conselhos de sua mãe e resolve sair com Lily. É interessante notar que Nina, em certa altura da noite, veste por cima da blusa branca (cor que está predominantemente relacionada ao lado branco da personagem) uma outra blusa, preta, que, não por acaso, pertence à Lily. Está dado o primeiro indício da integração entre as duas personagens, o que pode simbolizar, na verdade, a integração entre as duas personalidades de Nina, sendo o lado negro aquele que exercerá a dominância, a blusa que está por cima.

Após vários acontecimentos que envolvem drogas, dança e sexo, intensificando a dualidade entre a pureza casta e o experimentalismo, Nina retorna ao lar, visivelmente transtornada, acompanhada por Lily – ou, pelo menos, é isso que o sujeito nos leva a crer. Vemos ambas através de um espelho onde a parte frontal do reflexo é composta por Nina e a parte traseira por Lily. A composição é tão exata que temos a impressão de que ali está apenas Nina, mas somos surpreendidos quando Lily surge por detrás dela, acompanhada por um determinado efeito sonoro, que não se assemelha a nada do senso comum, mas que intensifica a densidade da separação das personagens. A imagem de ambas no espelho, completamente unificadas, é mais um exemplo de integração entre Nina e Lily, ou entre as duas personalidades de Nina.

A relação entre a bailarina e sua mãe chega a altos níveis de tensão, mas, diferentemente do que faria em outras oportunidades, Nina a enfrenta, sempre tendo Lily como referencial de apoio através dos olhares. Sua personalidade negra, forte e decidida, fala mais alto e exige sua privacidade básica. A integração entre as personalidades de Cisne Branco e Cisne Negro é intensa e Nina está tomada pelo poder que disto provém. Não haveria melhor metáfora para a integração que o sexo, neste caso, entre Nina (o Cisne Branco) e Lily (o Cisne Negro), chegando ao ápice do conjunto, ao orgasmo. Em certo momento do ato sexual, Nina enxerga na parceira seu próprio rosto, preconizando o que posteriormente viríamos a saber, mas que o sujeito, relacionado apenas à uma das personalidades de Nina, não nos mostra em tempo real: Lily não está presente naquele quarto. Trata-se, então, de mais uma alucinação da personagem que, na verdade, relacionava-se consigo mesma, evidenciando, mais uma vez, que ela trava uma luta interna, embora insista em exterioriza-la na figura de seu alterego. Tem-se mais um exemplo da visão parcial do sujeito em Cisne Negro.

Tratando-se de um filme comercial que privilegia uma narrativa clássica e linear, Cisne Negro não possui marcas intencionais de enunciação. O prazer completo do cinema estará dado ao passo que, além de observar a trajetória de Nina, o espectador com ela se identifica, sendo completamente absorvido pelos acontecimentos. Desse modo, o sujeito visa passar despercebido, dando mais destaque para a ação do que para si. A câmera comporta-se como um “observador imaterial e privilegiado, capaz de assumir posições e deslocamentos impossíveis a um ser humano comum” (MACHADO, 2007). Ela busca sempre o melhor ângulo para acompanhar a história e, cada mudança de ângulo ou movimento carrega em si uma multiplicidade de olhares. Tendo em mente que a configuração da cena só faz sentido perante a existência de um sujeito e que, por diversas vezes, essa configuração se altera, fica clara a existência de múltiplos sujeitos e olhares. São dignas de apreciação as tomadas em que Nina e os demais bailarinos executam o espetáculo e a câmera não se limita a olhá-los da plateia, em um ponto fixo e teatral. A câmera movimenta-se no palco, dançando com os personagens, cadenciando ao som da orquestra e mostrando ora a coxia e ora o vasto público.

Nas vésperas do grande dia de espetáculo, Nina tira medidas para a confecção de seus figurinos. O ambiente em que a costureira trabalha é composto por uma série de espelhos – assim como vários outros ambientes do filme – e Nina posiciona-se entre dois espelhos, um de frente para o outro, compondo uma imagem com perspectiva infinita. Em certo momento, um dos reflexos da bailarina executa uma ação que a própria não teria realizado, sendo que, em certo ponto, seu reflexo chega até a virar-se para encará-la. A confusão mental de Nina é evidente e a câmera é cuidadosamente posicionada e reposicionada para que toda a cena seja captada. É nesse local, “um buraco, isto é, um campo ausente” que o espectador se posicionará para observar a cena. Ou seja, toda a configuração daquele acontecimento, como já fora anteriormente citado, só faz sentido quando esse local é preenchido. “A imagem é sempre considerada incompleta, pois, se não o fosse, não haveria lugar para o espectador” (MACHADO, 2007).

Tendo essas considerações em mente, pode-se reflexionar que a sucessão de planos, em um filme, corresponde a uma sucessão de olhares e que o sujeito da visão é frequentemente reposto. A maneira como esses diversos planos e olhares se relacionarão traz a tona o sistema da sutura. Tal sistema consiste na variação entre o visível e o invisível.

Os exemplos mais comuns e de fácil visualização desse sistema encontram-se na análise do campo e contracampo. Pode-se tomar como base a cena final de Cisne Negro. Nina, no alto do palanque de onde o Cisne Branco se suicidará, olha para Rothbarth, para o Príncipe e para o público. Iniciando-se essa pequena sucessão de olhares, o plano (campo) enquadra a expressão de sofrimento – físico e psicológico – de Nina que olha e projeta-se para seu lado esquerdo, o lado direito da tela. O próximo plano (contracampo) revela aquilo que estava invisível, o objeto do olhar de Nina: Rothbarth e todo o palco a sua frente. Logo após ela destina seu olhar ao Príncipe e, no plano seguinte (volta o campo) Nina, ainda a olhar para o Príncipe, exterioriza sua dor e vira-se para a plateia. O próximo plano revela que além do público, Nina dirige seu olhar para sua mãe, visivelmente abalada e aflita. O campo e contracampo repetem-se e o plano, novamente a enquadrar Nina, mostra o ato do suicídio do espetáculo que, na realidade de Nina, já ocorrera.

A sucessão de planos, ou seja, a sucessão de olhares e readequação da posição do sujeito, é suturada de maneira que haja sentido. Essa relação de sentido é dada pela relação entre o visível e o invisível. Em um plano, Nina está visível e o invisível é aquilo que ela observa, no caso, o palco repleto de bailarinos. No próximo plano o invisível se tornará o visível e vice-versa. Há ainda reflexões que aplicam o sistema da sutura em outros planos cinematográficos, não limitando a teoria ao campo e contracampo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As teorias referentes ao sujeito e ao sistema da sutura, segundo Arlindo Machado, foram aplicadas na análise aqui desenvolvida, tendo como base o longa metragem Cisne Negro. Observou-se uma particularidade no que diz respeito ao sujeito fílmico na referida obra, tendo-se em vista sua manifestação parcial perante a personagem Nina, sendo que o sujeito revela não apenas aquilo que ela presencia fisicamente, mas sim aquilo que sua personalidade esquizofrênica toma como verdade.

O diretor Darren Aronofsky trabalha, em Cisne Negro, de maneira hábil com o sujeito e os múltiplos pontos de vista, através da não onisciência desse sujeito e da mobilidade intensa da câmera, além dos enquadramentos cuidadosamente planejados, sempre repletos de espelhos e reflexos.

*Jéssica Natana Agostinho é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Editora Geral na Revista Universitária do Audiovisual (RUA).

BIBLIOGRAFIA

MACHADO, Arlindo. “O enigma de Kane” in O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo, Paulus, 2007.

MACHADO, Arlindo. “Ubiquidade e transcendência” in O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo, Paulus, 2007.

MACHADO, Arlindo. “A janela do voyeur” in O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo, Paulus, 2007.

MACHADO, Arlindo. “O sistema da sutura” in O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo, Paulus, 2007.

FILMOGRAFIA

Cisne Negro (Black Swan, 2010), de Darren Aronofsky.

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