Anonymous e o Ativismo Contemporâneo nas Redes Midiáticas

Prof. Ms. Dario Mesquita[1]

André Sanches[2]

 INTRODUÇÃO

 

Outra lógica de ativismo vem moldando seu espaço nas ruas e nas redes de comunicação social. Se os movimentos sociais contemporâneos não buscam apenas questões de classe e materiais, outros caminhos de revindicação simbólicas vêm se intensificando com o advento das mídias digitais e colaborativas. Se antes os meios de comunicação eram usados mais como ferramentas estratégicas, devido das limitações técnicas, hoje elas são o centro e os meios de ações do ativismo, e isso é expresso com todas suas ambiguidades e caminhos através da imagem do grupo Anonymous.

Sem uma hierarquia estabelecida, dotado de múltiplas identidades em uma entidade constituída pelo emaranhado relações sociais e redes midiáticas. Um grupo de anônimos que se funda no ambiente digital, pelo hedonismo e as múltiplas facetas do lúdico contemporâneo, para tomar as ruas contra os poderes hegemônicos e para dar voz à muitos.

 

REDES DE MIDIÁTICAS E ATIVISMO

 

Há tempos grupos sociais vêm buscando aperfeiçoar meios de se expressar fora da esfera do sistema de comunicação hegemônico. Uma busca por expressão que atualmente vai além da busca empreitada pelo modelo clássico dos movimentos sociais, que antes eram interpretados como revolucionários e mobilizações de massa que visavam tomar o poder do Estado hegemônico (ALEXANDRE, 1998), enquanto que agora, suas ações almejam uma dimensão simbólica de diretos, representações sociais e à estima, pontos que vão além das questões econômicas e materiais (MARQUES; NOGUEIRA, 2012).  Como aborda Downing (2002, p. 57), são movimentos que visam objetivos que em grande parte independem do que o Estado pode conceder, com “objetivos que guardavam uma relação muito mais próxima com um senso de crescimento e identidade pessoais em interação com a subcultura do movimento”.

Por esse entendimento contemporâneo, os meios de comunicação se tornaram centrais como forma de articular dinâmicas socioculturais para constituir mobilizações e propagar reinvindicações. Nesse contexto, há outra noção de hierarquia e relacionamento entre as pessoas desses movimentos, que buscam estabelecer formas mais autônomas de representação, trabalhando em uma rede sistematizada a compartilhar experiências de resistência e estabelecer um diálogo fora dos conglomerados de mídias tradicionais e hegemônicos. Caminho que conduz a redes de mídias alternativas, ou radicais[3], pelo entendimento de Downing (2002), em contraponto a simples noção de alternativo, quando tudo pode ser uma alternativa a outra coisa.

O autor coloca que essas mídias servem a dois propósitos principais:

 

a) expressar verticalmente, a partir dos setores subordinados, oposição direta à estrutura de poder e seu comportamento; b) obter horizontalmente, apoio e solidariedade e construir uma rede de relações contrária às políticas públicas ou mesmo à própria sobrevivência de estrutura de poder (DOWNING, 2002, p.29).

 

Nesse sentido, o ativista atua nas fronteiras entre o engajado e o especialista, sendo ao mesmo tempo um ator das manifestações e um estrategista de comunicação para que as mobilizações se adequem apropriadamente nas redes de comunicação, propagando suas ideias e despertando o interesse público (ASSIS, 2006). Nisso, são incorporados os mais diversos modos de linguagens e meios de comunicação, que vão desde os veículos de comunicação, como impressos (zines, jornais), vídeo, rádio, internet, etc., como também o grafite, artes performáticas, música popular, e quaisquer outras atividades culturais que possibilitem experimentações estratégicas para a rede de comunicação.

De acordo com Assis (2006), além de criar uma rede de relações e de comunicação muitas, essas estratégias midiáticas acabam corroborando pra configurar uma lógica de ritmo ou textura de dramatização às ações, proporcionando características lúdicas e de participativas que fogem de uma conduta objetiva e direta, com a finalidade de despertar emoções e subverter o imaginário do público diante das experiências de mobilização. Como comenta o autor, “o caráter lúdico, bem como a dramatização e/ou a teatralização, constitui de saída uma oposição ideológica à seriedade e ao racionalismo do universo corporativo, político ou das grandes organizações internacionais.” (ASSIS, 2006, p. 51).

Em um sentido mais intensificado, o grupo Anonymous representa a conjunção de todos esses fatores que caracterizam os movimentos sociais contemporâneos. Originados de uma rede social, o 4chan.org, um ambiente pautado pelo anarquismo lúdico e apropriação da cultura pop, o grupo se tornou símbolo das atuais mobilizações sociais pelo mundo, servindo como um manto de contestação e hedonismo diante dos descontentamentos sociais e políticos. Uma força simbólica originada na própria rede social e difundida pelas ruas.

Nesse contexto, para compreender a simbiose entre rede social, ou mais especificamente, mídia social e a formação de grupos de ativismo que tomam por identidade não uma bandeira político-ideológica centrada em pensadores pré-existentes – ou extensões de grupos sociais já formados para dentro da grande rede –  mas sim uma identidade de existência anônima, torna-se necessário entender o que são essas redes sociais como o 4chan.org e qual a sua relação com a desconstrução da identidade, tal como a perversão do anonimato e a transformação da própria rede de meio em autor.

  

We Are Anonymous

 

“We are Anonymous. We are Legion. We do not forgive. We do not forget. Expect us.”

 

            Dentre a miríade de redes sociais que permeiam a internet, o 4chan.org faz uso de um formato bastante específico o qual é denominado imageboard. Inspirado em similares oriundos do Japão, sua estrutura consiste em canais temáticos, no formato de painéis, que podem variar desde a simples troca de imagens entre usuários até a discussão de cultura pop japonesa ou mesmo pornografia. Nesses painéis online qualquer pessoa pode fixar uma mensagem e dessa forma iniciar uma linha de discussão, normalmente anônima.

            Como define Fontanella (2010), existem três características primevas que diferenciam os imageboards de outras mídias sociais. Em primeiro lugar existe uma interface de uso que permite que os usuários utilizem-se apenas de texto e uma única imagem a cada postagem, dando origem a tópicos lineares organizados de maneira cronológica. Cada novo tópico é, assim, iniciado por uma nova imagem, muito embora essas não sejam necessárias em respostas a tópicos já abertos. Todas essas postagens são identificadas de maneira automática por um número único e sequencial que permite a referência a essas postagens.

            Em segundo lugar, e talvez a característica mais importante, existe a possibilidade de se postar de maneira anônima, sem necessidade de registro no website ou de fornecimento de qualquer informação que possa levar, de maneira direta, à identidade de quem efetuou determinada postagem. Muito embora existam campos que possam ser preenchidos com um nome e um e-mail, a vasta maioria o deixa em branco, de modo que o sistema os identifica automaticamente como anonymous, ou na terminologia dos próprios usuários, anons.

            E, por fim, em terceiro lugar, o sistema da imageboard é configurado para que, depois de determinado de tempo de ociosidade, os tópicos sejam apagados, efetivamente eliminando qualquer característica histórica ou de memória dessas redes, privilegiando a perpetuação apenas daqueles mais comentados, e, portanto, considerados mais relevantes dentro da comunidade.

            Sustentado por essa realidade tecnológica, o Anonymous, como representativo do grupo em superposição ao conceito do usuário anon, evoca a internalização da identidade social da comunidade dos imageboards, ou, como define Maffesoli (2006, p. 15), a concretização do desejo de um sentir comum, presente nas expressões coletivas de que tomam parte os membros de uma comunidade, os “tipos-ideais” weberianos que geram a sensação de identidade de cada membro.

            Dessa maneira, como indica Fontenella (2010), o Anonymous tem uma narrativa própria, um ator que representa a memória dos feitos da comunidade, ator esse que pode ser generoso, justo, imaturo ou cruel, de forma que reflete os antagonismos e instabilidades do agrupamento social que representa, não sendo, assim, uma identidade fechada e estática, mas mutável a ponto de agregar seus diversos membros naquilo que têm em comum.

            De forma análoga, trazendo a conceituação de intencionalidade coletiva, pode-se verificar que, enquanto identidade própria, os feitos do Anonymous, envolvem uma pluralidade de participantes de tal modo que estes atos podem ser creditados aos indivíduos como um grupo, essa dualidade representando algo maior do que um agregado das intenções e atitudes únicas de cada membro, mas ainda assim  enraizado naquilo que cada um sente que deve e pode fazer (SCHWEIKARD; SCHIMDT, 2013), exacerbando assim a horizontalidade das relações do grupo.

            Assim, através do Anonymous, o anonimato perde a característica de mero ocultamento e opção individual para converter-se em instrumento de uma comunidade em rede, permitindo e reforçando a formação de uma organização sem lideranças definidas, que, por sua vez, promovem o colapso das primeiras articulações de movimentos sociais na Internet (ANTOUN, 2008, p. 4), ganhando espaço no mesmo momento em que os grandes conglomerados do entretenimento se esforçam em colonizar todos os recônditos da rede, e atuando de maneira a implodir a ordem institucionalizada.

            Essa forma de atuação termina, enfim, por gerar uma nova vertente de movimento social, ou como afirma Feenberg (1999), uma nova resistência contra-hegemônica centrada em “micropolíticas técnicas” – calcada em subversões das funcionalidades previamente engendradas dos artefatos tecnológicos, de maneira não institucionalizada, de forma a aliar a tecnologia às necessidades rotineiras de seus agentes, findando por transformar o aparato tecnológico, controlado pela hegemonia e apropriado pelo anonimato, de mero coadjuvante digital em mais um ator de igual relevância na horizontalidade do Anonymous.

            Dessa maneira, como elucida um dos membros do grupo, “Qualquer um pode se tornar Anonymous e trabalhar em direção a um certo objetivo… Nós temos essa agenda, na qual todos concordamos, coordenamos e seguimos, mas todos andam independentemente em sua direção, sem nenhum desejo de reconhecimento. Queremos apenas fazer algo que sentimos que é importante que seja feito” (LANDERS, 2008, internet).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

É de se considerar relevancia a força que um grupo como o Anonymous vem tomando nas últimas manifestações, tomando como exemplo mais próximo da nossa realidade as mobilizações brasileiras. Além do uso já exaustivo da máscara de Guy Fawkes[4] –  principal símbolo do grupo nas ruas, é evidente as ações coordenadas de hack-ativismo sob o manto representativo desse novo anonimato.

Uma construção da identidade pela negação representativa do individualismo, tão pertinente ao ideal sociocultural impregnado fortemente no pensamento ocidental desde o século XX, com o avanço do capitalismo. Essa anulação de barreiras toma como certa um auto-reconhecimento das necessidades do grupo acima de quaisquer outras diferentes, mesmo que sejam de uma natureza mais subjetiva. A própria dramatização do grupo, em constituir um corpo e mente unificado pela rede, acaba por denotar uma unidade, mesmo que ilusória, para as revindicações assumidas. Algo que dá mais força, simbolicamente, apesar de quaisquer outras diferenças que existam internamente.

Ao final, o Anonymous traz consigo a possibilidade explorar revindicações mesmo que plurais dentro de um único grupo, sem que haja desvirtuamentos ou inconsistências. Afinal, a própria constituição em rede foge de qualquer entendimento polarizado, de opostos, de uma ordem hierárquica, seguindo para uma lógica entrelaçada, em que aglomerações de células vão se formando por similaridades. Os caminhos traçados pelos agentes acabam por se tornarem protagonista, o que torna incapaz de distinguir a rede dos atores, as ações grupais das ações individuais. O que importa, acima de tudo, é participar e colaborar para que esse sistema de comunicação expresse os sentimentos do ativismo de oposição ao pensamento hegemônico e vigente.

 

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, Jeffrey C. Ação Coletiva, Cultura e Sociedade Civil: Secularização,

atualização, inversão e deslocamento do modelo clássico dos movimentos sociais.

Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.13, n.37, 1998, p.5-31.

ANTOUN, Henrique. A Web 2.0 e o Futuro da Sociedade Cibercultural. Trabalho apresentado no NP de Tecnologias da Informação e Comunicação do XXXI Congressso da INTERCOM, Natal, 2008. In: Anais do XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. (www.tntechoracle.com) Natal, INTERCOM/UFRN, 2008.

FEENBERG, Andrew. Questioning Technology. Londres, Reino Unido: Routledge, 1999.

FONTENELLA, Fernando. Nós somos Anonymous: anonimato, trolls e a subcultura dos imageboards. Trabalho apresentado no XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Caxias do Sul, 2010.

DOWNING, John D.H. Mídia Radical, Rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. Senac, São Paulo, 2002

MAFFESOLI, Michel; O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006.

MARQUES, Ângela Salgueiro; NOGUEIRA, Erika Dias. Estratégias de visibilidade utilizadas por movimentos sociais na internet. Revista Comunicação Midiática, v.7, n.2, p.138-161, maio/ago. 2012.

LANDERS, Chris. SERIOUS BUSINESS – Anonymous Takes On Scientology (and Doesn’t Afraid of Anything). City Paper, 2 abr. 2008. Disponível em: < http://www2.citypaper.com/columns/story.asp?id=15543>. Acesso em: 15 jul. 2013.

LOVINK, Geert; GARCIA, David. O ABC da Mídia Tática: O manifesto inicial da Mídia Tática. CMI Brasil – Centro de Mídia Independente, 16 mar. 2003. Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/red/2003/03/249849.shtml>. Acessado em: 13 jul. 2013.

SCHWEIKARD, David P. and SCHMID, Hans Bernhard, “Collective Intentionality”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2013 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/sum2013/entries/collective-intentionality/>.


[1] Mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Imagem e Som (PPGIS) da Universidade Federal de São Carlos. Membro do Grupo de Estudo s sobre Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS), editor-assistente da Revista GEMInIS. Professor Assistente no Departamento de Artes e Comunicação da UFSCar.

[2] Especialista em Redes de Computadores pela Universidade Federal de São Carlos. Mestrando pelo Programa de Imagem e Som (PPGIS) da UFSCar. Membro do Grupo de Estudo s sobre Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS)

[3] Outro termo que compartilha com as mesmas ideias de Downing (2002) é o de Mídia Tática, que envolve mídias baratas do estilo “faça você mesmo”, que envolve especialmente uma estética da apropriação e textos, artefatos e espaços (LOVINK; GARCIA, 2003). Cf.: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2003/03/249849.shtml

[4] Mas não tomando exatamente como exemplo o revolucionário católico da Inglaterra, personagem real, que tinha planos de explodir o parlamento inglês tomando por protestantes, mas sim sua reinterpretação ficcional pelos quadrinhos V de Vingança, de Alan Moore, que trás uma visão própria de uma revolução anarquista em terras inglesas.

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