Lucas de Castro Murari*
Resumo
Análise histórica e estética de uma das principais vanguardas europeias do século XX, o Expressionismo. Procura-se entender a genealogia e suas principais características. A partir do processo de migração de alguns técnicos e realizadores, busca-se explicitar o desdobramento desse movimento na indústria de cinema hollywoodiana.
GÊNESE DO EXPRESSIONISMO
O início do século XX na Alemanha foi um período bastante fecundo e ativo, nos mais diversos meios. Apenas três décadas após sua difícil unificação por Otto von Bismarck, este novo estado passou primeiramente por uma grande ascensão econômica, principalmente no campo industrial. Com a consolidação do país e um crescimento nacionalista cada vez mais perceptivo, a Alemanha entrou na Primeira Guerra Mundial como potência com objetivos imperialistas e, ao término desta, estava completamente arrasada. Como ressalta Lotte Eisner: “Os anos que seguem a Primeira Guerra Mundial são uma época singular na Alemanha: o espírito germânico se recompõe com dificuldade do desmoronamento do sonho imperialista; os mais intransigentes tentam se recobrar com um movimento de revolta, mas este é imediatamente sufocado.” (EISNER, 1985, p.17)
Partindo deste ambiente, a arte na Alemanha se desenvolve durante algum tempo de maneira dispersa. Esta situação reflete o estado de espírito da nação em si. Se em um primeiro momento os artistas buscam uma corrente para se guiar, é revisitando e modernizando o Romantismo importante movimento com gênese na Alemanha que os artistas do início do século XX irão se pautar. O expressionismo surge então como reflexão do inconsciente alemão, revelando a miséria e destruição que tanto os afligiam. Este tipo de manifestação psicológica pós Primeira Guerra se desenvolve primeiramente na pintura e, aos poucos, dilui perante outras artes. O historiador da arte Wolf-Dieter Dube diz sobre os primórdios do movimento:
Atribui-se uma grande variedade de fontes à origem da palavra “Expressionismo”, o que não surpreende, dada a tentação jornalística de a utilizar como oposto da palavra “Impressionismo”. Segundo alguns, o termo seria surgido quando o pintor Julien-Auguste Hervé expôs alguns estudos da natureza, em estilo acadêmico-realista. (DUBE,1976,p.19)
É importante ressaltar que o Expressionismo é bastante diversificado. Esta heterogeneidade se deve ao contexto em que ele surgiu. O início do século XX foi um período propenso ao surgimento e legitimação das mais distintas correntes artísticas, isto em toda a Europa. Algumas das importantes vanguardas culturais do continente são: Fauvismo, Futurismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo e claro, Expressionismo.
Umas das primeiras teorizações sobre o movimento alemão é a monografia de Paul Fechter. Esta deixa claro o alto grau de inventividade e rivalidade entre as nações, exemplificando um período ímpar da história da arte. “Fechter procurou classificar o Expressionismo como um movimento alemão contrário ao impressionismo e paralelo ao cubismo na França ou ao futurismo na Itália. Referia-se concretamente à avant-garde alemã.” (1976,p.21)
EXPRESSIONISMO NO CINEMA
Não demorou muito para estas influências atingirem o cinema, arte bastante nova e a ainda em pleno desenvolvimento estético e tecnológico. Se o terreno estava propício ao campo da inovação, os cineastas germânicos utilizaram o estilo da pintura vanguardista para compor suas imagens. As deformações e estilizações pictóricas que sintetizavam a crise social e espiritual que assolava a Alemanha foram traduzidas na animização do cenário fílmico, criando um ambiente específico para a exploração de argumentos fúnebres.
Aliando os novos meios de representações visuais com uma economia propícia a ampliação, a Alemanha pós Primeira Guerra conseguiu consolidar a única vanguarda cinematográfica de caráter industrial. Ulrich Gregor esclarecem sobre o sucesso financeiro nesta década:
(…) causa motivada pela desvalorização do marco possibilitou a oferta de filmes no exterior a preços praticamente sem concorrência, e por outro lado, tirou dos produtores estrangeiros a vontade de exportarem para a Alemanha. Nesse período, a soma recolhida na Suíça por uma fita alemã era suficiente para amortizar os custos de sua produção. Esta situação privilegiada animou uma grande quantidade de especuladores a entrar no “negócio” do cinema. E algumas poderosas companhias lançaram na época os fundamentos de sua hegemonia. (ULRICH,1975,p.9)
O Expressionismo Alemão no cinema é conhecido como uma vanguarda, no entanto, ao contrário de outras escolas calcadas na experimentação de uma narrativa anticomercial e contra os padrões convencionais clássicos estabelecidos por D. W. Griffith, o Expressionismo busca uma reconfiguração estética para o público consumidor do produto industrial. Aquilo que difere uma obra como O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, D. W. Griffith, 1915) de O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, Rober Wiene, 1919), é a enunciação visual. Ambos os filmes são realizados em cima dos cânones do cinema clássico que, de uma forma ou de outra, predominam até hoje. O grande diferencial é a forma pela qual o filme alemão trabalha a plasticidade da imagem, utilizando o cenário para expressar a dramaticidade e, com isso, incorporando o espaço na ação de forma altamente funcional e diegética. Reiterando isto, o alemão Hugo Münsterberg é um dos primeiros a refletir sobre uma teoria geral do cinema e faz uma consideração no calor da hora (1916) sobre o estilo Expressionista:
O Efeito gerado pelo ambiente pode e deve ser muito explorado na arte dramática. Todos os elementos cênicos deveriam estar em harmonia com as emoções fundamentais da peça; aliás, não são poucos os atos cujo sucesso se deve à coerência da impressão emocional decorrente de uma ambientação perfeita, que reflete as paixões da mente. Do palco ao estilo de Reinhardt com seus efeitos estéticos de cor e forma – ao melodrama barato – com luz azul e música suave na cena final – a cenografia conta a estória da emoção íntima. Mas é na arte cinematográfica que se abrem as melhores perspectivas de utilização desses recursos expressivos adicionais que emanam do ambiente, dos elementos cênicos, das linhas, das formas e dos movimentos. (XAVIER, 1991, p.49)
Em suma, o expressionismo trabalha fenômenos interiores através de representações exteriores. Essa dualidade reforça o caráter psicológico tanto dos personagens, como do espectador. A dupla identificação da mise-en-scène com o público recorre a uma das principais características deste movimento: os temas macabros e insólitos. Isto permite uma relação do argumento com a narrativa, estabelecendo uma estética paradoxal. A carnificina da Primeira Guerra ofereceu material necessário para os artistas expressionistas fundamentarem suas criações. As atrocidades praticadas causaram um impacto na mente alemã, relegando um viés pessimista em grande parte destas manifestações artísticas. Lotte Eisner entende que: “Para a alma torturada da Alemanha de então, tais filmes, repletos de evocações fúnebres, de horrores, de uma atmosfera de pesadelo, pareciam o reflexo de sua imagem desfigurada e agiam como uma espécie de redenção espiritual.” (EISNER, 1985, p.25)
O cinema alemão era predominantemente calcado no fantasmagórico e focava este universo do absurdo através da estilização visual. Vale ressaltar que o Expressionismo prossegue tendências do subjetivismo, vertente comum no Romantismo, sua principal influência. Os personagens de ambas correntes são criados em cima de crises, cada um à sua maneira, mas sempre beirando o catastrófico. O sombrio permeia o psicológico do personagem expressionista, da mesma forma que atua na arquitetura da cena – ressaltando sua visão interior.
Os objetos inseridos nos cenários dos filmes expressionistas trazem sempre um contexto com denotação simbólica, possibilitando uma lógica de interpretação e significação. Alguns elementos são bem comuns em boa parte da extensa filmografia expressionista. Merecem destaque: sombra, olheira, espelho, escada e casas. Estas matérias essenciais aos filmes são utilizadas como conceitos, decorando os ambientes e criando uma dramatização da atmosfesra através de seus usos aliados a diegese. A fotografia trabalha o contraste entre o claro-escuro, acentuando os valores propostos.
FILMES EXPRESSIONISTAS
Uma das primeiras manifestações de caráter expressionista no cinema, fortemente influenciada pela pintura feita à época e pela escola cinematográfica dinamarquesa é O Estudantes de Praga (Der Student Von Prag, 1913), dirigido pelo alemão Paul Wegener e pelo dinamarquês Stellan Rye. O filme narra a história de um estudante atormentado pela sua imagem, simbolizado por dois elementos recorrentes ao estilo: o reflexo do espelho e sua própria sombra. Já nesta fita, o cenário serve como ingerência narrativa, atuando como personagem determinante dos eixos diegéticos. O clima fantástico proposto enaltece as qualidades imagéticas, ainda mais em cima de dois símbolos que reforçam o duo. Eisner esclarece sobre o filme de Wegener e Rye: “Com O Estudande de Praga, os alemães compreendem imediatamente que o cinema pode se tornar o médium por excelência de sua angústia romântica, permitindo reproduzir o clima fantástico das visões vagas que se esfumam na profundidade infinita da tela, espaço irreal que escapa ao tempo.” (1985, p.40)
Esta obra precursora sintetiza todas as características que serão aprofundadas e exploradas no filme-chave do Expressionismo – O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1919), dirigido por Robert Wiene, produzido por Erich Pommer e roteirizado por Carl Mayer. Estes três nomes são fundamentais para uma compreensão da estética em voga. Mayer roteirizou inúmeras fitas da escola, principalmente para o cineasta F. W. Murnau. Erich Pommer é o principal produtor do Expressionismo. Ele alcançou a direção da UFA¹ e foi responsável pela consolidação de um caráter industrial à vanguarda. Pommer participou de vários filmes de diversos realizadores, mas sua parceira mais próspera foi com Fritz Lang. O cineasta Robert Wiene atuou como maestro de uma orquestra perante a equipe de O Gabinete do Doutor Caligari.
O aspecto técnico é determinante na vanguarda expressionista. A sensibilidade é condicionada e os aspectos fílmicos necessitam de uma sintonia para se estabelecerem. A obra máxima do movimento se passa na cidade de Holstenwall e é contada através do artifício do flashback. O filme é sobre uma atração encenada pelo Doutor Caligari e seu parceiro Cesare. Ambos realizam um espetáculo de sonambulismo em uma feira, prevendo acontecimentos para a plateia. A grande questão é a antecipação da morte de interessados, alardeando a pequena vila. Descobre-se com o decorrer do filme que o doutor é o diretor de um asilo próximo e que Cesare é uma experiência cientifica psíquica. O Gabinete do Doutor Caligari é a exacerbação de todas as características expressionistas. É um tratado sobre a utilização do cenário em prol do filme, possibilitando a integração dos atores com o vestuário, com a maquiagem e com a interpretação anti-naturalista. Os cenários pintados a mão exploraram a decoração, a iluminação e a arquitetura dos ambientes. As deformações radicais determinadas na obra de Wiene alcançam o emocional do público, transformando-o em um dos primeiros filmes de terror da história do cinema, causando espanto e admiração na plateia². A partir desta obra, o cinema alemão passa por um filtro caligarista e se renova diluindo os moldes em diversos cineastas, cada uma a sua maneira.
EXPRESSIONISMO AMERICANO – CICLO DE MONSTROS
O Expressionismo Alemão é uma vanguarda de cunho industrial que obteve êxito comercial na maioria de suas produções. Isto possibilitou projetos cada vez mais ambiciosos, chegando ao cume de Pommer gerir sob a direção de Fritz Lang – Metrópolis (Metropolis, 1927). O pesquisador português Eduardo Geada explica:
Erich Pommer, então administrador da UFA, anuncia a realização da película até então mais dispendiosa produzida na Europa, com a participação financeira de duas companhias americanas, a Paramount e a Metro-Goldwyn-Mayer. As filmagens de Metropolis decorreram entre Março de 1925 e Outubro de 1926. Com quase dois milhões de marcos gastos só em despesas de salários para as equipes técnicas e artísticas, a UFA encontrava-se à beira da falência em 10 de Janeiro de 1927, data da estréia do filme em Berlim. (GEADA, 1998, p.174)
Com o bom resultado atingido no decorrer dos anos, a Indústria Hollywoodiana percebe e começa a agir frente ao concorrente alemão, contratando aos poucos diretores, roteiristas, produtores, atores, técnicos e cenógrafos germânicos. Esta emigração em massa, a partir de meados dos anos 1920, vai influenciar ambas as cinematografias. Um importante nome da vanguarda alemã como F.W. Murnau vai para os Estados Unidos em 1926 e realiza, sob a égide hollywoodiana, duas obras-primas da história do cinema – Aurora (Sunrise, 1927) e Tabu (1931). Porém, se a intromissão americana remarcou posições do mercado mundial, a ascensão do nazismo decretou de vez o término do expressionismo e do estilo que havia sido cultivado por Wiene, Murnau, Lang, entre outros. Adolf Hitler e Joseph Goebbels, seu Ministro da Cultura e da Propaganda, transformaram o cinema nacional em um veículo de propaganda do Terceiro Reich. Muitos profissionais da indústria cinematográfica alemã eram contra esta imposição e tomaram medidas, como o autoexílio de Fritz Lang. Com o fortalecimento do nazismo e o cerco aos judeus, aqueles que ainda não haviam tomado uma atitude precisaram agir, não por medidas estéticas, mas por imposições religiosas e políticas. Billy Wilder, judeu, polonês com carreira cinematográfica na Alemanha e um dos que aderiram ao êxodo, relembra em sua biografia escrita por Charlotte Chandler um bom exemplo de como andava a situação no país:
Peter Lorre era o ator preferido de Goebbels, em Berlim. Goebbels disse-lhe isso. Os dois estavam juntos num elevador, e Goebbels disse-lhe de um modo bastante amigável que talvez fosse bom para sua carreira que ele viajasse pelo exterior por um tempo. O nome verdadeiro de Lorre era Löwenstein, e ele era judeu. Era um cara inteligente, e entendeu o recado. Teve sorte que Goebbels gostasse dele. Poucas pessoas receberam aquele tipo de alerta pessoal de Herr Goebbels. (CHANDLER, 2003, p.88)
Fato é a contribuição técnica e artística dos alemães na Indústria Norte-Americana. Esta ascendência é tanto narrativa como estilística. O Expressionismo se pautou no horror como base de seus enredos. Os personagens eram monstros, vampiros, robôs, sonâmbulos, entre outros tipos sempre atormentados e irreais. Já no início da década de 1930, ao menos dois realizadores farão obras e constituirão suas filmografias em temas fortemente influenciados pela escola alemã. James Whale filma duas fitas sobre o personagem Frankstein, baseado no livro de Mary Shelley – Frankstein (1931) e A Noiva de Frankenstein (Bride of Frankenstein, 1935). São duas apropriações que em termos de composição, maquiagem, figuração e caracterização do protagonista monstro, explicitam uma influência do estilo germânico. Contudo, algumas cenas deixam claro o embate entre os dois feitios. É impensável que um filme expressionista utilize a natureza como paisagem. Esta é sempre suprimida ou deformada ao extremo. No primeiro Frankstein, por exemplo, encontramos várias cenas no campo, no lago e nas ruas. A paisagem natural ganha espaço nessa diluição no cinema hollywoodiano, em detrimento aos estúdios com função claustrofóbica, como em O Gabinete do Doutor Caligari.
Outro artista que permeava o grotesco em suas obras é Tod Browning. Em Drácula (1931), o cineasta cria a imagem iconográfica do personagem de Bram Stoker. Apenas alguns anos antes, F.W. Murnau havia adaptado este livro, mas sem possuir os direitos autorais. Com isso, o cineasta expressionista alterou nomes e o próprio título da obra para Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror (Nosferatu – Eine Symphonie des Grauens, 1922) e é considerado por muitos como um dos mais estupendos filmes do movimento. Lotte Eisner, grande admiradora do cinema de Murnau afirma: “Em Friedrich Wilhelm Murnau, o maior diretor que os alemães jamais tiveram a visão cinematográfica nunca é resultado apenas da tentativa de estilização do cenário. Ele criou imagens mais estupendas, mais arrebatadoras da tela alemã. (EISNER, 1985, p.72)”
Outro admirador do cineasta e do filme em si era o teórico Bela Balazs que alcunhou seus filmes de “sopros glaciais do além”. Embora com menos de uma década de diferença, a Universal Pictures resolveu produzir um filme sobre a mesma persona. Tod Browning já era familiarizado com o universo do absurdo e personagens bizarros. Um filme anterior como O Monstro do Circo (The Unknown, 1927) já trata do insólito. Em sua adaptação de Bram Stoker, o ator Bela Lugosi eterniza o personagem em interpretação marcante. É nítida uma estética do exagero, contrastando a fotografia dentro de parâmetros de chiaroscuro e conduzindo o protagonista para uma interpretação excessiva³. O cinegrafista alemão Karl Freund foi o responsável pela fotografia do filme e grande parte das cenas também foram comandadas por ele. Browning teve problemas com a produção, pois não considerava esta uma obra pessoal e ficou afastado em períodos de realização. O técnico europeu auxiliou na execução de diversas fitas clássicas, entre elas: A Última Gargalhada (The Last Laugh, F.W. Murnau, 1924), Metrópolis (Metropolis, 1927) e O Golem (Der Golem – Wie er in die Welt kam, Carl Boese e Paul Wegener, 1920). A iluminação e o visual de Drácula são dignos dos melhores filmes deste estilo e Freund trabalhou os mesmos contrastes e sombras da vanguarda que o formou.
Se Drácula lida com uma preponderação visual de cunho expressionista, no filme Monstros (Freaks, 1932) do mesmo Tod Browning, o diretor subverte a utilização de personagens esquisitos e cria uma obra singular sobre uma trupe de seres deformados e com problemas físicos de um circo de atrações bizarras. No entanto, aqui, os tipos são utilizados no sentido oposto do expressionismo, criando uma catarse pelos seres oprimidos e especiais.
Artistas como Karl Freund, Fritz Lang, Peter Lorre, Robert Siodmak, Michael Curtiz, Erich Pommer, Billy Wilder, Ewald André Dupont, Paul Leni, entre outros profissionais, impulsionaram a indústria cinematográfica hollywoodiana. Estes são todos europeus, alemães e judeus, na sua maioria. Entretanto, muitos deles perderam a autonomia de criação obtida na UFA, passando por censuras e regras que limitavam suas grandes capacidades individuais. Sobre isso, o crítico Peter Buchka relata:
Já uma vez, nos anos 20, diretores alemães como Lubitsch e Murnau tinham ajudado o cinema hollywoodiano, que patinava no estilo esparramado do slapstick, a tirar o pé da lama, projetando sobre ele, para satisfação principalmente do publico burguês, as luzes da cultura européia; e não foi pouco importante a brecha que abriram para os inúmeros imigrantes da Alemanha de Hitler, que alguns anos depois, afluíram para Hollywood em busca de emprego. Mas justamente porque estavam necessitados, foram logo engolidos pela indústria, perdendo com isso o estilo pessoal. (BUCHKA, 1987, p.16)
Se as restrições impuseram limitações, os filmes inspirados e auxiliados pelos europeus criaram um verdadeiro gênero dentro do mercado americano. A Universal foi à principal produtora destes e obteve sucesso em muitas de suas apostas, principalmente durante as décadas de 1930 e 1940. A repulsa dos personagens alemães e horror que os acentuavam se transfiguraram em ousadias temáticas dentro do cinema feito nos Estados Unidos, trabalhando o emocional do espectador. Além das filmografias de Tod Browning e James Whale, vale destacar dentro do ciclo de monstros da Universal Pictures: a versão espanhola de Drácula (Dracula, 1931), dirigida por George Melford; O Crime da Rua Morgue (Murders in the Rue Morgue, 1932); de Robert Florey; A Múmia (The Mummy, 1932), de Karl Freund; O Gato Preto (The Black Cat, 1934), de Edgar G. Ulmer; O Corvo (The Raven, 1935), de Lew Landers; A Mão da Múmia (The Mummy’s Hand, 1940), de Christy Cabanne e O Túmulo da Múmia (The Mummy’s Tomb, 1942), de Harold Young. Os dois principais personagens explorados pela empresa foram a Múmia e o Drácula, cada um recebendo vários desdobramentos distintos. Alguns atores foram responsáveis pela consagração do gênero de monstros na Universal: Vincent Price, Béla Lugosi, Boris Karloff e Lon Chaney são os principais, sempre com interpretações marcantes, acentuadas e com uma persona bem caracterizada, tanto em sentido físico, como psicológico.
FILME-NOIR
A priori, a influência expressionista foi mais temática no cinema americano. Todavia, nos anos 1940, o estilo visual contrastado e sombrio derivado da vanguarda atinge o cinema americano, reconfigurando as imagens em termos estéticos. Além dessa alteração imagética, os argumentos dos filmes também mudaram, inspirados basicamente em três escritores de romances policiais da época: Dashiell Hamett, Raymond Chandler e James Cain. Vale lembrar que os Estados Unidos sofreram uma grande crise econômica em 1929 e adentraram a II Guerra Mundial em 1941. Assim como o imaginário alemão estava dilacerado no período pós I Guerra, a moral estadunidense também sofreu abalos durante as décadas de 1930 e 1940. Um dos reflexos foram os assuntos da literatura de ficção feita à época – violência, sexo, investigação, ganância, traições e homicídios surgem fortemente nas obras. A 7ª arte, com sua capacidade ímpar de se apropriar de elementos hodiernos, parte então para um novo modo de realização, constituindo aquilo que ficou conhecido posteriormente como filme noir. O roteirista e cineasta Paul Schrader foi categórico na sistematização deste estilo e listou quatro elementos culturais que o determinaram:
(…) o pessimismo provocado pela guerra e pelas dificuldades de adaptação à nova ordem econômica dela resultante; a impressão documental e realista aperfeiçoada pela rodagem dos filmes nas ruas e em cenários naturais; a influência da composição plástica e fotográfica do expressionismo alemão, devida aos inúmeros cineastas vindos da Europa; a tradição do romance hard-boiled, que forneceu os ambientes, os conflitos, os personagens e a tipologia do enredo. (GEADA, 1998, p.310)
Assim como o ciclo de monstros possui divergências drásticas com a vanguarda industrial europeia, o filme noir também se difere em vários procedimentos. O expressionismo trata do horror, de personagens fantásticos em périplos aterrorizantes. No estilo noir, os argumentos lidam com suspense, com personagens humanos em narrativas sobre crimes. Outro fator é o realismo, que se apoia em cenários naturais e interpretações convincentes na indústria americana. Já em Nosferatu, Uma Sinfonia do Horror, por exemplo, é imposta uma atuação mínima, antinaturalista e expressiva, do ponto de vista emotivo. O naturalismo é refutado em todos os sentidos. Outro termo desigual entre eles são os objetos. Matérias casuais como espelhos e escadas servem para mover as narrativas e auxiliar na dramatização do Expressionismo; não que o ciclo noir não possua estes elementos, mas facas e vários tipos de armas são recorrentes nas histórias, sempre resolvendo ou alterando rumos de personagens, algo inexistente nos filmes alemães. Do mesmo modo é implausível o humor e cinismo nas obras germânicas, tão usuais no noir. Ambos ambientes são estilizados, criando uma atmosfera funcional ao proposto. O uso do flashback também é comum, permitindo narrativas mais elaboradas.
Esta marca de realização começa nos primeiros anos da década de 1940 e encerra seu período de glória no fim dos anos 1950. Alguns diretores são importantes para sua consagração: o alemão Fritz Lang realizou diversos filmes em Hollywood que dialogam com o estilo, entre eles Quando desceram as trevas (Ministry of Fear, 1944); O segredo atrás da porta (The Secret Beyond the Door, 1948) e Os Corruptos (The big heat, 1953). John Huston é outro que ajudou a legitimá-lo com Relíquia Macabra (The Maltese Falcon, 1941); Paixões em Fúria (Key Largo, 1948) e O Segredo das Joias (The Asphalt Jungle, 1950). O austríaco Billy Wilder é responsável por um dos grandes filmes do estilo, Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944). Alfred Hitchcock ficou tão admirado por este filme que disse “Depois de Pacto de Sangue, as duas palavras mais importantes no cinema são Billy Wilder” (CHANDLER, 2003. p.128). A lista de filmes noir é grande e o impacto do estilo no cinema mundial ecoa até os dias atuais. Este estilo com clara influência expressionista remodelou os paradigmas estéticos e narrativos da indústria americana, criando um modelo que refletia os dramas da época e o imaginário do cidadão americano.
TIM BURTON
Como visto, a estética expressionista influenciou tanto a narrativa como o estilo do cinema feito nos Estados Unidos nas décadas seguintes. Esta congruência é tanto que mesmo cineastas contemporâneos da Europa (Philippe Garrel, Leos Carax) como dos Estados Unidos – Tim Burton – admitem procedimentos da vanguarda em voga. Este cineasta estadunidense é um dos que levam mais a fundo a significação dos códigos de Wiene, Lang e Murnau. Burton é um expoente de cinema de autor que trabalha para a indústria, construindo uma filmografia diferente para os padrões de Hollywood. Ele iniciou sua carreira trabalhando para Disney como animador. Foi demitido devido à incompatibilidade de narrativas fúnebres com o modelo da empresa. Os ambientes de seus filmes revisitam construções expressionistas, exagerando nos tons e recorrendo a oposições entre o claro e o escuro. Logo em seu primeiro curta-metragem realizado na Disney, a animação Vincent (1982), ele alcança projeção. O curta é sobre um garoto que sonha em ser Vincent Price, famoso ator de terror. Nesta animação, todas as características que serão desenvolvidas com o decorrer da filmografia de Burton já aparecem: a fotografia é extremamente contrastada, os ambientes são claustrofóbicos e macabros, a maquiagem e o figurino ajudam a compor a visão do personagem. O garoto que protagoniza o filme atua de maneira reservada, ou seja, mínima. O diretor opta por uma maior expressividade interior, criando uma aura característica. O filme é relatado em voz over pelo próprio Vincent Price. A narrativa exagerada reforça a dramaticidade e os dilemas do menino. Os elementos estilísticos e temáticos deste curta referenciam o Expressionismo Alemão e apresentam o cineasta que atingiria uma posição privilegiada dentro do cinema comercial estadunidense.
Em seu segundo curta-metragem, Frankenweenie (1984), o diretor também opta por uma assinatura expressionista. O filme de 29 minutos é uma releitura da história de Frankstein, no entanto, quem ganha vida é Sparky, o cachorro de uma típica família estadunidense. O cão é atropelado por um carro e o feito abala o menino que protagoniza a fita. A fotografia é extremamente trabalhada e composta. A iluminação fundamenta a vanguarda e os contornos marcam os contrastes típicos. Um bom exemplo das múltiplas inspirações do realizador. Em Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990), Burton aborda o mesmo tema. Porém, subverte as lógicas da história de Frankstein e traça um contorno sensível às características do personagem interpretado por Johnny Depp, seu ator fetiche. Seu figurino lembra muito Cesare, o sonâmbulo de O Gabinete do Doutor Caligari. A maquiagem excessiva ajuda a salientá-lo. A interpretação novamente é mínima, beirando o antinaturalismo típico de Cesare (Conrad Veidt). A oposição de dois universos díspares estabelece uma diferença nítida, focando na concepção visual dos espaços. Os escuros góticos típicos dos primeiros curtas se contrapõe com um vilarejo alegre e colorido. A modernização deste cineasta contemporâneo distingue suas referências do ponto de vista ético e moral. Tanto o cachorro de Frankenweenie, como “Edward” são benévolos, contrariando os personagens expressionistas. Tim Burton produziu uma animação baseada em um poema seu: O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, 1993), dirigido por Henry Selick. Este filme ilustra o embate entre dois mundos distintos e conflitantes – de um lado Jack, o rei da cidade do Halloween, e do outro, Papai Noel e a tradição natalina. É interessante o viés original pela qual é abordada esta comemoração. A relação simétrica entre os universos potencializa a história e cria, através de suas divergências, o uso de cores de forma inteligente e funcional. O Estranho Mundo de Jack, por mais que não seja dirigido por Tim Burton, é um de seus filmes mais pessoais, tanto que o título original possui seu próprio nome antes da chamada em inglês. Sem contar que é a obra expressionista por excelência deste realizador e todas as características da vanguarda e suas influências estão nítidas na composição dos quadros e na elaborada fotografia.
Em Batman (1989), a cidade de Gotham City é utilizada como personagem relevante da trama, conduzindo personagens entre uma arquitetura urbana típica de um clássico como Metrópolis (1927). A maioria das cenas são rodadas com fortes sombras ou em ambientes escuros. O filme é sobre o herói combatendo o crime da grande cidade e à noite representa a exorcização dos aspectos criminais. As maquiagens dos vilões e do protagonista em Batman são carregadas, trazendo aspectos pessoais através da sua figurinização. A construção do antagonista “Coringa” lembra muito a ambiguidade do “Doutor Mabuse”, personagem criado na trilogia de Fritz Lang. A sugestividade pela qual este comete seus crimes elabora um personagem complexo, cheio de manias caricatas que serão utilizadas por Jack Nicholson no filme americano.
Tim Burton se especializou na criação de universos lúdicos e habitados por personagens estranhos. Boa parte de sua filmografia é feita em cima de padrões fantásticos e irreais. Filmes como A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (Sleepy Hollow, 1999); A Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and the Chocolate Factory, 2005); Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, 2007) e Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland, 2010) lidam com medos humanos e estilizações nunca gratuitas, sempre a serviço da narrativa e da construção de personagens. Esta característica foi usurpada do Expressionismo e alcança seu apogeu com este cineasta contemporâneo.
CONCLUSÃO
O Expressionismo como movimento de vanguarda cinematográfica se estabeleceu no pós Primeira Guerra Mundial, na Alemanha. De cunho industrial e com todo um aparato operando por trás de suas estilizações, sofreu censuras e limitações impostas pela ascensão do partido nazista, no final dos anos 1920. Com isso, inúmeros técnicos, realizadores e atores emigraram para outros países, principalmente para os Estados Unidos. Dentro de outra indústria, essa mais comercial, foi possibilitado que estes artistas continuassem suas empreitadas cinematográficas e colaborassem de inúmeras maneiras. Esse legado alemão perpetua até hoje em hollywood e são muitos os herdeiros da vanguarda analisada.
¹ UFA (Universum Film Aktiengesellschaft) é a principal empresa de produção cinematográfica alemã do período mudo. Foi criada em 18 de Dezembro de 1917.
² O Gabinete do Doutor Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, 1919) obteve um grande sucesso de crítica e de público na época de seu lançamento.
³ Overacting: é o exagero dos gestos e da fala na atuação. Pode ser intencional ou não.
*Lucas de Castro Murari é graduando em Cinema em Vídeo pela Faculdade de Artes do Paraná, trabalha com pesquisa e ensino de cinema atuando nos seguintes temas: história e teoria do cinema, linguagem cinematográfica, documentarismo e pedagogia audiovisual para crianças e adolescentes.
REFERÊNCIAS
BUCHKA, Peter. Olhos não se compram. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
CHANDLER, Charlotte. Ninguém é perfeito: Billy Wilder – uma biografia pessoal. São Paulo, Editora Landscape, 2003.
DUBE, Wolf-Dieter. O Expressionismo. São Paulo, Verbo/Edusp, 1976.
GEADA, Eduardo. Os Mundos do Cinema: modelos dramáticos e narrativos no período clássico. Lisboa, Notícias Editorial, 1998.
EISNER, Lotte. A Tela Demoníaca. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
ULRICH, Gregor. História do Cinema Alemão. Salvador, Instituto Goethe, 1975.
XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro, Graal/Embrafilme, 1991.