Roberto Acioli de Oliveira*
“Eu repito essas palavras incessantemente, ‘visual, visualmente, vista, olho’”
Germaine Dulac
(MOUNSEF, D. 2003: 45)
É estranhamente recorrente que muitos cineastas do tempo do cinema mudo sejam conhecidos apenas por um ou dois de seus filmes. A francesa Germaine Dulac (1882-1942) é um desses casos; pouco se fala dela para além de seu filme impressionista A Sorridente Madame Beudet (La Souriante Madame Beudet, 1923) e o surrealista A Concha e o Clérigo (La Coquille et le Clergyman, 1927). Dulac começou a trabalhar com cinema durante a Primeira Guerra Mundial, seu interesse pelo ponto de vista feminino será transposto para a tela principalmente através de técnicas experimentais. Apesar do boicote que sua carreira sofreu por parte dos seus pares masculinos, ela amava o cinema a ponto de ajudar Henri Langlois a esconder filmes durante a Segunda Guerra Mundial, para que não fossem destruídos na França ocupada pelos nazistas (BICKERTON, E. 2009: 9).
Em 1920, Ricciotto Canudo, futurista e crítico de arte, fundou em Paris o primeiro cineclube a abrir suas portas na França, o Clube dos Amigos da Sétima Arte. Uma iniciativa rapidamente copiada por muitos outros críticos e cineastas, incluindo Germaine Dulac. Na França daquela época, a distinção entre entretenimento popular e filme de arte ainda estava sendo construída e os cineclubes independentes (muitos de propriedade ou associados a cineastas de vanguarda) incluíam obras experimentais (especialmente dos proprietários e associados) – um procedimento diametralmente oposto ao que ocorria nos Estados Unidos, onde os cinemas pertenciam às produtoras dos filmes que passavam neles (Idem: 3).
Seus primeiros trabalhos reconhecidos são o seriado Alma dos Loucos (Ame des Fous, 1917) e A Festa Espanhola (La Fête Espagnole, 1919), seguidos pelo drama psicológico A Morte do Sol (La Mort du Soleil, 1922) e pelas muitas tomadas com câmera subjetiva em A Sorridente Madame Beudet. Com Alma de Artista (Ame d’Artiste, 1925) Dulac apresenta um drama tradicional, antes de retornar para a fantasia surrealista de A Concha e o Clérigo. De acordo com o poeta, ator, diretor de teatro e escritor Antonin Artaud (1896-1948), que elaborou o roteiro, não se conta uma história, mas sim uma série de estados mentais derivados uns dos outros que se sucedem, sem necessidade de reproduzir uma sequência lógica de eventos. Seu objetivo era expulsar o pensamento racional a partir de “verdadeiras situações psíquicas” (FINLER, J. 1997: 89).
Dulac Surrealista
Isabelle Marinone explica que a partir de 1924 o cinema surrealista rompe com qualquer forma de roteiro e narração (MARINONE, I. 2009: 128). Fernand Léger declara taxativamente sua fórmula em 1925: “O erro pictural é o assunto, o erro do cinema é o roteiro; liberado desse peso negativo, o cinema pode tornar-se um gigantesco microscópio das coisas nunca vistas e nunca sentidas”. Artaud, por sua vez, afirmava que “o cinema pressupõe a inversão total de valores, uma subversão completa da ótica, da perspectiva, da lógica”. Os filmes de Man Ray, Hans Richter e Léger, particularmente, realizam essa ruptura com o roteiro e a narração ao apresentar objetos filmados como assuntos completos.
“(…) Essa fórmula de Léger, que se tornou clássica, ilustra a nova relação com o cinema, desprendida desde então de qualquer representação tradicional. Os objetos mais comuns metamorfoseiam-se, o filme faz com que passem de um valor usual a um valor puramente plástico, proposta que se manifesta especialmente em Balé Mecânico [Ballet Mecanique], de Fernand Léger (1924-1925), Les Jeux des Reflexes [et] de la Vitesse (1925) e Cinco Minutos de Cinema Puro (Cinque Minutes de Cinéma Pur, 1926) , de Henri Chomette, Anémic Cinéma, de Marcel Duchamp (1926), Emak Bakia (1926) e A Estrela do Mar (L’Étoile de la Mer, 1928), de Man Ray. Quando individualizado por esse novo ponto de vista do ‘cinema puro’, o objeto pode ser recolocado em uma narração insólita, não realista e onírica. A partir de 1927, surgem nas telas A Concha e o Clérigo de Germaine Dulac e Antonin Artaud, Um Cão Andaluz ([Un Chien Andalu], 1928) e A Idade do Ouro ([L’age D’or], 1930), de Luis Buñuel, Mystère du Chatêau du Dé, de Man Ray (1929). Em 2 de abril de 1925, Artaud afirma que o cinema, ao transtornar todos valores e convenções estabelecidos, deixa emergir uma parte de mistério desconhecida nas outras artes” (Idem: 109)
Em A Concha e o Clérigo, três personagens com desejos incontroláveis simbolizam o exército, a Igreja e o dinheiro (um coronel, um padre e uma burguesa). Através de sobre-impressões e metamorfoses visuais aplicadas às autoridades militar e clerical, a adaptação de Dulac acentua e ridiculariza os vínculos entre o sabre (com o qual os soldados matavam as pessoas antes do refinamento tecnológico do século XX) e o aspersório (pequeno objeto com o qual os sacerdotes da Igreja católica jogam água benta nas pessoas). Nas palavras de Artaud, o “roteiro procura a verdade obscura do espírito, em imagens saídas delas mesmas, e que não possuem seus sentidos na situação em que elas se desenvolveram, mas numa espécie de necessidade interior e poderosa que as projeta na luz de uma evidência sem recurso” (Ibidem: 186n332).
Dulac e a Vanguarda
A primeira vanguarda artística do século passado (Surrealismo, Dadaísmo e Futurismo) geralmente é vista como diametralmente oposta à segunda vanguarda dos anos 60 e 70. Muitos consideram que a primeira é mais hostil em relação à tradição artística (cuja linguagem ela pretendia destruir), enquanto a segunda estava mais preocupada com a estética (mais preocupada em remodelar sua linguagem do que rejeitá-la). Evidentemente, as mulheres cineastas da vanguarda foram apanhadas nessa batalha entre forma e conteúdo. Donia Mounsef elegeu Germaine Dulac como exemplo da primeira vanguarda e o trabalho para cinema da escritora Marguerite Duras (1914-1996) como exemplo da segunda (MOUNSEF, D. 2003: 38-45).
Utilizada para designar grupos revolucionários desde o final do século XIX, o termo “vanguarda” alcançaria as artes visuais na década de 1890. Na virada para o século XX, os críticos de teatro utilizaram a expressão para designar pequenos teatros que se opunham à tradição dramática convencional estabelecida. Ao contrário de Georges Sadoul, que estabeleceu 1925 como o ano em que o termo foi utilizado em relação ao cinema, Mounsef sugere 1918 – no final da Primeira Guerra Mundial. O termo teria sido empregado então num texto por alguém que se intitulava “a mulher de lugar algum”. Esse pseudônimo foi atribuído inicialmente a Eve Francis, amante e noiva de Louis Delluc, e depois ao próprio Delluc – que, posteriormente, realizaria um filme com o mesmo título. De acordo com Mounsef, mulheres cineastas dissidentes com Eve Francis previram a crise que, no final da década de 20, levaria ao fim o movimento experimental no cinema.
A chegada do cinema sonoro foi um dos elementos dessa crise. Quando os filmes falados foram introduzidos em 1929, a posição de liderança da França em termos de indústria cinematográfica acabou de desmoronar – o que já vinha ocorrendo desde o final da Primeira Guerra Mundial nove anos antes (BICKERTON, E. 2009: 3). Porém, o acontecimento decisivo foi a cooptação dos cineastas mais experimentais pelo cinema comercial. Mounsef conta que enquanto aos cineastas homens a indústria deu emprego, para as mulheres cineastas a situação foi bem diferente:
“Às mulheres cineastas que se recusaram a entrar no jogo comercial foi negado acesso aos meios de produção enquanto, ao mesmo tempo, suas realizações eram ameaçadas por abandono histórico e falta de reconhecimento. O melhor exemplo é Alice Guy Blaché que, ao retornar à França após trabalhar quinze anos nos Estados Unidos, encontrou sua carreira sabotada pela política do cinema comercial na década de 20. Essas mulheres não apenas encontram seus esforços encalhados nas circunstâncias econômicas no final da década de 20, mas também descobriram que o trabalho de suas vidas estava sujeito a cair na beira da estrada” (MOUNSEF, D. 2003: 40)
Germaine Dulac já havia realizado vinte e seis filmes num período de treze anos (entre 1916 e 1929) quando sua carreira chegou a um impasse, em parte devido à sua recusa tanto em relação ao cinema sonoro quanto sua aversão à transformação do cinema numa indústria capitalista direcionada ao “gosto do espectador”. Some-se a isso à falta de interesse nos meios crítico e acadêmico na França em relação à obra dela. De fato, segundo Mounsef, foi o movimento feminista da década de 60 nos Estados Unidos que trouxe o trabalho de Dulac à tona novamente. Mounsef afirma ainda que as contribuições de Dulac ao Surrealismo e à definição do conceito de vanguarda continuam não recebendo a devida atenção.
Na verdade, seus filmes e trabalhos teóricos contradizem muitos princípios do Surrealismo, ao mesmo tempo em que ajudaram a definir o movimento da vanguarda e permitiram que adotasse uma postura política distinta e às vezes contraditória em relação ao anarquismo surrealista. Dulac escreveu muitos artigos e trabalhos teóricos publicados ao longo de vinte anos em revistas e jornais franceses dedicados ao cinema. Ela preferiu substituir o termo “vanguarda” por “cinema de evolução”, o que não apenas indicava ousadas inovações experimentais na tela de cinema, como também uma investigação inserida na pesquisa sobre cinema e o âmbito teórico dessa empreitada.
Ao empregar um termo orientado para o futuro e ao favorecer a teoria, Mounsef acredita que Dulac evitava a obsessão do cinema convencional com o passado, como também instigava os surrealistas a questionar os pressupostos ideológicos das realizações deles. Dulac também questionou toda a terminologia empregada na época, em lugar de “cinema excepcional” ou “cinema especial”, considerados falsamente “cinema de vanguarda”, ela sugeriu como substituto simplesmente a palavra “cinema”. De acordo com Mounsef, através dessa postura, Dulac alcançou dois objetivos.
Em primeiro lugar, exigiu uma ruptura total com o cinema narrativo, tradicionalmente sustentado pela indústria comercial. Tal ruptura deveria ser alcançada ao se enfatizar mais o aspecto visual do cinema do que o narrativo: “Um verdadeiro filme”, disse ela, “não deve contar sua própria história, já que deve extrair seu princípio ativo e emocional de imagens feitas de vibrações visuais únicas” (Idem: 42). Em segundo lugar, Dulac sugeriu a unificação de duas escolas dominantes na década de 20: A “escola do movimento puro” (onde o fluxo de imagens é mais importante do que o fragmento) e a “escola anedótica” (onde os filmes são acompanhados por alguma forma de narração ou intertítulos).
Talvez exagerando ao classificar como decepcionante as propostas de Dulac, Jacques Aumont parece sugerir que ela deveria saber exatamente do que estava falando antes de começar a falar, ainda que o cinema fosse uma tecnologia nascente e que a maioria (inclusive aqueles do sexo masculino) muitas (e muitas) vezes não conseguiam articular um discurso coerente sobre o futuro da sétima arte:
“(…) Germaine Dulac […] foi muitas vezes reivindicada como pioneira dos partidários de um cinema a-narrativo, a-dramático e até a-representativo. De fato, Dulac disse muitas vezes que o documentário e o filme narrativo eram, a seu ver, apenas ‘aplicações’ do cinema que, longe de ser a síntese das artes, distingue-se absolutamente de qualquer outra arte. O cinema, arte do movimento luminoso ou da luz em movimento, arte dos ritmos luminosos e do movimento puro eclodido em um tempo puro – essas definições valem, sobretudo, apesar de seu lado datado que é o das vanguardas, pelo radicalismo por meio do qual querem separar o cinema de qualquer inspiração pictórica. Contemporânea do Cubismo, do Orfismo, do Dadaísmo, essa reflexão sobre a arte do cinema como arte cinética é, com seu princípio, insuperável. (A realidade dos textos de Dulac é decepcionante em relação a esse projeto: textos circunstanciais em sua maioria, nos quais ela quase nunca teve a possibilidade ou o desejo de sistematizar essa concepção, que só esboçou sugestivamente)” (AUMONT, J. 2004: 142)
A Polêmica com Antonin Artaud
Luis Buñuel contou que no dia da primeira apresentação de Um Cão Andaluz em 1929, ele guardou algumas pedras nos bolsos porque sabia das reações violentas que seus novos amigos do grupo surrealista poderiam ter, caso não considerassem que o filme se encaixava em suas diretivas. Buñuel estava consciente do tipo de recepção negativa que teve A Concha e o Clérigo entre os surrealistas, um filme que ele admitiu ter gostado – só não se sabe se o cineasta espanhol deixou que seus novos amigos conhecessem sua opinião… (BUÑUEL, L. 2009: 154)
Durante a projeção do filme de Dulac, os surrealistas pretendiam ajudar ao insatisfeito Artaud perturbando o ambiente. Artaud não aprovou a adaptação que ela realizou do roteiro escrito por ele. De acordo com Matthew Gale, Andre Breton leu o roteiro em voz alta durante a projeção para marcar as diferenças em relação ao filme, uma afirmação de que o roteiro representava uma expressão poética singular que teria sido empobrecida pela tradução em imagens – através dessa leitura, Breton também pretendia marcar a superioridade do universo do texto sobre a visão e a imagem, o roteiro seria uma manifestação do potencial do automatismo sobre o processo criativo.
Depois de insultar a cineasta, o grupo foi expulso do lugar, mas não sem que antes quebrassem vários espelhos. Gale não é o único a sugerir que esse tipo de comportamento (embora recorrente entre os surrealistas daquele período) carrega uma pesada carga de misoginia. Buñuel não precisou usar as pedras que guardou durante a projeção de Um Cão Andaluz, mas o comportamento da “horda surrealista” seria um bizarro presságio à aparição dos vândalos da “horda de extrema-esquerda” Liga dos Patriotas, que protestaram contra a exibição e Idade do Ouro e destruíram pinturas surrealistas expostas no saguão do cinema (GALE, M. 2007: 53-4).
Ado Kyrou é claramente refratário ao filme de Dulac, chegando a dizer que, “lamentavelmente”, foi ela quem filmou o único roteiro de Artaud – ao que parece existem outros ainda inéditos. De acordo com Kyrou, Dulac traiu o espírito de Artaud e, ao invés de fazer nascer um filme com a classe de A Idade do Ouro, realizou um filme feminino. Ela ainda é acusada de mexer no cronograma do filme para que Artaud não pudesse atuar, assim como acompanhar as filmagens e trabalhar na montagem. “Como se isso não fosse suficiente”, insistiu nesses termos um Kyrou aparentemente indignado, Dulac fez escrever “sonho” de Antonin Artaud no início do filme e não “roteiro” – um detalhe que contradizia o contrato (KYROU, A. 2005: 205-6).
“Apesar de tudo”, insiste Kyrou novamente com termos desdenhosos, A Concha e o Clérigo apresenta a marca de Artaud em alguns momentos. “Com justa razão”, afirmaria Kyrou em cores ainda mais fortes, Artaud renegou o filme. Dulac teria dito que o roteiro dele era “uma loucura”, enquanto ele teria respondido que talvez fosse, “mas que ela fez dele uma tolice (loufoquerie)”. De acordo com Kyrou, o escândalo no dia da estreia de A Concha e o Clérigo foi provocado pelo próprio Artaud, com o apoio do grupo de surrealistas capitaneados por Breton (seria inexata a hipótese de que Artaud não estaria mais fazendo parte do grupo). Seja como for, Kyrou admite que A Concha e o Clérigo continua a ser o primeiro filme surrealista, mas o contrapõe às pesquisas do “cinema puro” e afirma que vai além dessa proposta.
Na opinião de Mounsef, a polêmica em torno de A Concha e o Clérigo ilustra bem aquela luta entre a escola do movimento puro e a escola anedótica, que se estendeu até o final dos anos 20. A alegação de que Dulac teria interpretado mal o roteiro de Artaud e se recusado a colocá-lo no papel do religioso, que o manteve longe durante as filmagens e da montagem, além de atrasar o lançamento do filme, só se justifica nos dois últimos casos. Insatisfeito com o resultado, Artaud fez publicar o roteiro original com a intenção de preservar os direitos autorais.
Na verdade, Mounsef sugere que Dulac foi vítima de lutas internas no interior do movimento Surrealista, que culminariam com a marginalização e posterior expulsão de Artaud em 1928. Portanto, é possível que Artaud e Dulac tenham sido apenas vítimas de maquinações dos surrealistas. Em mais uma versão dos fatos, aconteceu o seguinte naquela sessão: “A plateia estava assistindo ao filme com grande interesse, [quando se ouviu] uma voz gritar perguntar: ‘Quem fez esse filme?’; outra voz respondeu: ‘É madame Germaine Dulac’. A primeira voz: ‘Quem é madame Dulac?’ Segunda voz: ‘Uma vaca’” (MOUNSEF, D. 2003: 44) – Era Artaud demonstrando seu descontentamento.Mas Mounsef avisa que existe muita controvérsia em relação aos acontecimentos, já não existe nem mesmo unanimidade quanto à presença de Artaud. Alguns sugeriram que as críticas eram dirigidas ao próprio Artaud. Acredita-se que as afinidades entre Dulac e Artaud eram maiores do que as desavenças e que todo esse conflito foi fabricado por alguns surrealistas que se colocaram contra o esteticismo da vanguarda e utilizaram a ambos como bodes expiatórios para aprofundar suas próprias desavenças em relação à Artaud.
Num comentário mais produtivo, Gilles Deleuze resgata as observações bastante esclarecedoras de Maurice Drouzy sobre o filme de Buñuel que podem iluminar a questão em relação à Dulac. Buñuel considerou sua sobriedade na utilização de efeitos de imagem em Um Cão Andaluz como uma reação contra os filmes de vanguarda da época, como Entr’acte (direção René Clair, 1924) e A Concha e o Clérigo (“cuja riqueza de meios foi uma das razões pelas quais Artaud, inventor da ideia e roteirista, se voltou contra o filme”) – no filme de Buñuel, Drouzy contou, além dos planos fixos, algumas plongées, fusões e travellings para frente e para trás, uma única contra-plongée, uma única panorâmica, uma única câmera lenta (DELEUZE, G. 1990: 75n15).
“A propósito de A Concha e o Clérigo (…), Artaud diz (…): a especificidade do cinema é a vibração como ‘nascimento oculto do pensamento’; isso ‘pode parecer aparentar-se com a mecânica de um sonho sem ser um sonho’; é ‘o trabalho puro do pensamento’. A atitude de Artaud face à realização de Germaine Dulac levanta várias questões (…). Artaud lembrará constantemente que este é o primeiro filme surrealista; e criticará Buñuel e [Jean] Cocteau por se contentarem com o arbitrário do sonho (…). Parece que o que ele critica em Germaine Dulac é ter dado a A Concha e o Clérigo o sentido de um mero sonho” (Idem: 200n18)
Para Quê Serve o Cinema
Dadaísmo e Surrealismo nunca se auto-proclamaram movimentos de vanguarda (“apenas” pensavam a si mesmos como uma nova visão de mundo), mas as preocupações de Dulac em relação ao ritmo, estrutura e movimento, contradiziam a noção surrealista de um cinema violento e primitivo em busca de uma imagem excepcional e mágica que perturbasse o espectador. Segundo as palavras do próprio Andre Breton, o interesse dos surrealistas no cinema era seu poder de estranhamento. Embora o estranhamento tenha sido explorado pelo cinema de vanguarda, para Dulac isso constituía um interesse secundário. Para ela, interessava materializar um “cinema puro” e visual no qual a estrutura se assemelha mais a uma partitura musical do que a fantasia onírica de imagens desconexas de horror familiares a filmes surrealistas.
Para Dulac, a finalidade do cinema é a exploração do ritmo e do movimento, da aceleração e da câmera lenta, para expressar através de uma harmonia visual tudo aquilo que o olho humano não consegue conceber. Ela fez eco ao interesse de Artaud nos aspectos visuais do cinema, que ele expressou quando escreveu o roteiro de A Concha e o Clérigo como um processo de transgressão da narrativa tradicional e como um exemplo de “psicologia… devorada pelos atos” (Idem: 45). Como Artaud, Dulac questionou a própria fundação de um cinema narrativo baseado na exploração discursiva e psicológica do personagem, rejeitando assim o principal foco do cinema surrealista, que era criar um mundo paralelo de sonhos e subconsciência.
Para Artaud e Dulac, o cinema não deveria ser considerado uma arte “híbrida” nascida da mistura de fontes na literatura e nas artes visuais. Também não deveria ser repleto de personagens em busca dos segredos sombrios da psique. O cinema deveria possuir sua própria linguagem visual e formas derivadas de fontes não-verbais, explorando personagens enquanto sujeitos determinados socialmente. Mounsef conclui dizendo que A Concha e o Clérigo continua sendo uma das obras mais fundamentais da era do cinema mudo e a falácia da controvérsia entre Artaud e Dulac apenas deixa explícita (além do ataque a Artaud) uma política de gênero (ou política do “clube do Bolinha”) cujo objetivo era marginalizar as mulheres da primeira vanguarda do cinema.
Dulac Feminista
Mounsef analisou toda essa situação a partir de seu ponto de vista feminista. Assim como Ann Kaplan, ao admitir que os homens fossem uma forma predominante no começo do cinema (tanto do ponto de vista técnico quanto teórico), mas que justamente isso teria permitido às mulheres (excluídas do “clube do Bolinha”) se concentrar mais nas questões de forma e estilo – e também acabou impedindo que seguissem cegamente tradições antigas (KAPLAN, E. A. 1995: 127-9).
Kaplan deixa um pouco de lado A Concha e o Clérigo, apontando A Sorridente Madame Beudet como uma realização mais acessível de Dulac, um filme na linha do Impressionismo francês no cinema (que remetia ao movimento simbolista do século XIX) e do Surrealismo. De acordo com Kaplan, apesar de não ser um filme exatamente feminista (nos moldes da ainda muito distante década de 60), Dulac utiliza técnicas surrealistas para apresentar a dor íntima e as fantasias de realização de desejos de uma esposa sufocada por um casamento provinciano, colocando a culpa mais nesse casamento burguês do que no senhor Beudet. A inovação nesse caso, Kaplan enfatiza, foi a apresentação dos fatos a partir do ponto de vista da esposa! Kaplan afirma que o trabalho de Dulac, ainda sem apontar qualquer alternativa, teve o mérito de expor a posição da mulher no patriarcado.
* Roberto Acioli de Oliveira é graduado em Ciências Sociais – 1989, Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura – 1994 e 2002, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É autor de artigos em catálogos de Mostras, como Filmes Libertam a Cabeça – Rainer Werner Fassbinder (CCBB-RJ, 2009) e A Itália e o Cinema Brasileiro (REcine, Arquivo Nacional-RJ, 2011). Além da revista RUA, também é colaborador da revista dEsEnrEdoS, e mantém três blogs sobre cinema e corpo: Corpo e Sociedade, Cinema Europeu e Cinema Italiano.
Referências Bibliográficas
AUMONT, Jacques. As Teorias dos Cineastas. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 2004.
BICKERTON, Emilie. A Short History of Cahiers du Cinéma. New York: Verso, 2009.
BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009.
DELEUZE, Gilles. Cinema 2: A Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990.
FINLER, Joel H. Silent Cinema. World Cinema Before the Coming of Sound. London: B. T. Batsford Ltd., 1997.
GALE, Matthew. In Darkened Rooms. In: GALE, Matthew (ed.). Dali and Film. London: Tate Publishing, 2007. Catálogo de exposição.
KAPLAN, E. Ann. A Mulher e o Cinema. Os Dois Lados da Câmera. Tradução Helen Márcia Potter Pessoa. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
KYROU, Ado. Le Surrealisme au Cinema. Paris: Éditions Ramsay, 2005.
MARINONE, Isabelle. Cinema e Anarquia. Uma História “Obscura” do Cinema na França (1895-1935). Tradução Adilson Mendes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial Ltda, 2009.
MOUNSEF, Donia. Women Filmmakers and the Avant-Garde: From Dulac to Duras. In: LEVITIN, Jacqueline; PLESSIS, Judith; Raoul, VALERIE (eds.). Women Filmmakers: Refocusing. New York/London: Routledge, 2003.