Festen ou Festa de Família, tradução para o português, é uma obra do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, e trata do encontro de uma família de classe alta no aniversário de seu patriarca. Esse encontro, aterrador, revela facetas cruéis de seus personagens, sobretudo a partir das revelações do filho Christian.
O filme é uma transgressão das regras clássicas, ou da imagem clássica, bem trabalhada, bem iluminada e nítida. Aqui, a estética segue a dramaturgia, ou a dramaturgia segue a estética.
Thomas Vinterberg, juntamente com Lars Von Trier, é mentor do Dogma 95, do qual esse filme em questão é pioneiro, inaugural. Manifesto lançado em 13 de março de 1995 que visava à feitura de filmes num mesmo padrão de regras, essas inquebrantáveis e rígidas, que repercutiram direto como crítica à feitura industrial hollywoodiana. Aqui há a valorização da organicidade da obra, a partir da utilização da câmera mais livre e leve, posta à mão ou ao ombro, (talvez uma herança do documental direto de Jean Rouch) além da edificação de um cinema mais pautado na dramaturgia, livre de artifícios de luz e de saltos de tempo na narrativa: tudo a fim de trazer às telas uma veracidade imagética mais ampla que a industrial.
Completamente contemporâneo a novos questionamentos da imagem digital, o movimento, apesar de publicado no meio da década de 1990, dialoga inevitavelmente com os vídeos caseiros que têm ampla divulgação com o surgimento do Youtube. É uma forma clara de trazer ao cinema contemporâneo toques de modernidade, e livrá-lo do engessamento de funcionalidades hollywoodianas, é o questionamento da imagem, da composição de imagem, da feitura, e por que não da montagem? E é sobre ela que nos debruçaremos mais adiante.
Apesar de não haver nenhum tópico no Manifesto que cite a montagem como parte do Voto de Castidade (Vow of Chastity), as regras influenciam diretamente no modo de organizar e compor sentido à obra, uma vez que “a montagem tem como matéria-prima os planos, um conjunto de unidades de ação descontínuas já dotadas de sentido.
As escolhas e justaposições na composição das imagens criam o que Eisenstein definiu como “conteúdo intra-frame”, resultante de “uma longa cadeia associativa de representações visuais (…) que envolve as emoções e a razão do espectador” diz o montador brasileiro Eduardo Escorel em seu ensaio “(Des)importância da montagem”¹, logo, a mudança radical no “conteúdo intra-frame” reflete com veemência a montagem nesses filmes, exigindo dela papel não de mero ordenador, mas de representante visual das inovações imagéticas pretendidas. É fácil notar em Festen uma conjuntura imagem-montagem, dialogando e servindo a uma mesma estética, a um mesmo clima narrativo e dramatúrgico, onde a ordenação visual não é meramente escolha, e sim comunhões de significados e composições ímpares nesse que é tido primeiro exemplo do Dogma 95.
Dizer de Festen no campo da montagem, sem mencionar e se aprofundar na imagem, seria incoerente. Esta que é a granulação, a luz precária e as ranhuras na imagem, são artifícios perfeitos para traduzir uma festa de família um tanto trágica e desastrosa. O tempo todo, a imagem foge à clareza e ao convencional, adiantando ao expectador uma conturbada relação de família, repleta de revelações contundentes que irão atravancar a festa de sexagenário do patriarca Hegel. A ambientação do filme é uma, um hotel luxuoso pertencente à família, que possibilita alternância de cenas internas e externas trazendo à fotografia do filme nuances, momentos amarelados, azulados, escuros, sem a utilização de qualquer artifício de iluminação. A fotografia é dependente da luz ambiente.
Relacionando-a à montagem, ora há a ligação entre planos de mesma natureza fotográfica: planos com luzes parecidas (interior-interior), ora, planos de luzes opostas: claro-escuro (exterior-interior). Os enquadramentos também são motes para a ordenação de planos, vê-se a presença majoritária de alternância close-close, ou, primeiro-plano-primeiro-plano, pode-se dizer de uma alternância por semelhança. Isso também ocorre quanto ao movimento da cena, dos atores, da ação, instaurando uma relação rítmica entre planos, donde o movimento é a passagem para outro plano, às vezes noutro ambiente, isso fica claro no trecho escolhido a ser aprofundado mais adiante. Das palavras de Andrei Tarkovski “a montagem articula planos já preenchidos pelo tempo para compor o filme, tornando-o um organismo vivo e unificado”1, nesse sentido, toda alternância contínua de planos semelhantes edificam um clima caótico ao filme, condizente à situação dos personagens, assim, a montagem é mais um fator de significação que ordenação simplória.
Restringindo-me ao trecho escolhido, localizado a 20 minutos e 50 segundos até 22 minutos e 05 segundos, a montagem aqui paralela interliga três personagens, os irmãos, personas em crise com suas identidades e também com relação às outras personagens: a esposa, a irmã falecida e a camareira amante, uma teia de relações tênues que desmoronam a auto-confiança e o status dessas personagens em relação à própria família.
Nessa seqüência de apresentação e introdução às características de Helene, Christian e Michael, a montagem compõe de forma paralela a fragilidade de cada um em enfrentar a superficialidade de suas relações familiares. De forma crescente, em planos de durações diferentes, a aproximação é crua, a cortes secos e intensificada a partir da dramaticidade das três situações. O estopim do movimento da montagem nesse trecho é um som, precisamente um barulho feito por Helene, ao começar a ler a carta da irmã que se suicidou, é um susto que ela dá ao recepcionista Lars, servindo de mote para ações encadeadas nos outros dois planos. É interessante observar na montagem que esses pontos de colagem, de identificação, por assim dizer, através do som servem de base para a cadência de outros planos, essa passagem dilata o som e a ação de diferentes cenas, trazendo movimento e ritmo. A duração do plano aqui também é agente na instauração de um clima caótico, clima esse que no decorrer do filme e na resolução da trama vai se amenizando, e os cortes antes bruscos e secos seguem a mesma tendência.
Pode-se dizer que em todo o decorrer do filme a montagem privilegia a composição da imagem, texturas, luz, movimento e enquadramentos inusitados. Sua função não é esclarecer, e sim, instaurar um clima perturbador que permeia a história e condiz às imagens. Palavras de Tarkovski ilustram bem essa organicidade imagem-montagem: “montar um filme de maneira justa, correta, significa não romper a ligação orgânica entre certos planos e certas seqüências, como se a montagem já estivesse contida nelas antecipadamente, como se uma lei interior regesse essas ligações, e em função da qual nós tivéssemos que cortar e colar. (…) Uma construção nova se organiza por si mesma durante a montagem, graças às propriedades próprias contidas no material filmado. A ordem dada aos planos revela, de certa maneira, sua essência”1. É assim que Festen se organiza em meio à necessidade de um cinema contemporâneo mais ágil, orgânico, intuitivo, de baixo orçamento e pautado na dramaticidade que a ausência de rigor técnico intensifica.
02. Dados Técnicos
Título original: Festen
Direção: Thomas Vinterberg
Duração: 106 minutos
Formato: 35 mm, colorido
Som: Dolby Stereo
Língua: Dinamarquês, Inglês
Ano de produção: 1998
Produção: Birgitte Halde
Roteiro: Thomas Vinterberg e Mogens Rukov
Fotografia: Anthony Dod Mantle
Montagem: Valdis Oskarsdottir
Elenco: Ulrich Thomsen, Henning Moritzen, Thomas Bo Larsen , Paprika Steen , Birthe Neumann Trine Dyrholm
03. Bibliografia
– Site Oficial do Dogma 95, conteúdo referente ao filme Festa de Família, disponível em: http://www.dogme95.dk/celebration/index.htm, acessado em 21 de novembro às 19h30;
– Site Oficial do Dogma 95, conteúdo referente ao manifesto Dogma 95, disponível em: http://www.dogme95.dk/menu/menuset.htm, acessado em 20 de novembro às 8h00;
– Site do Portal Heco de Cinema, conteúdo referente ao ensaio de Eduardo Escorel, intitulado (Des)Importância no Cinema, disponível em: http://www.heco.com.br/montagem/ensaios/04_02.php, acessado em 19 de novembro às 17h40;
– Site da CENCIB (Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Comunicação e Cibercultura), conteúdo referente ao ensaio de Gabriel Malinowski, intitulado Dogma 95, Mumblecore e o caso Virginia Tech: aproximações estéticas e subjetivas, disponível em:
http://www.cencib.org/simposioabciber/PDFs/CAD/Gabriel%20Malinowski.pdf, acessado em 10 de novembro às 15h20.
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¹ ESCOREL, EDUARDO “(Des)importância da montagem” no caderno “A Montagem no Cinema” de edição e organização de Eugênio Puppo para exposição no Centro Cultural Banco do Brasil.
Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Eu gosto muito desse filme; muito. Cultuo-o muito – sou fã. A cena de Christian sendo expulso pelo irmão e mais dois “comparsas”, e a gente percebendo que o rapaz fala a verdade (abuso sexual sofrido pelo pai quando criança), é espetacular. O personagem não sente que precisa sair dali – mas é ficando que tudo parecerá ficar um pouco melhor resolvido; o retorno da alegria pela saída do peso (pai)… Se bem que a mãe não é lá essas coisas – e ela no filme não é punida como ocorre com muitas mães – sempre impunes. Elas compactuam com o delito, mas são permitidas pelos filhos… São aceitas – mesmo sem serem perdoadas. Por que será? – Hiran Pinel.