Fragmentos sobre o cinema francês

No 1° domingo de fevereiro, o Caderno 2 do Estado de São Paulo comemorou os 50 anos da Nouvelle Vague, contando seu início a partir de Os Incompreendidos, filme de Truffaut que recebeu o prêmio por melhor direção no Festival de Cannes em 1959.  É sempre intrigante quando um movimento tão múltiplo e dilatado no tempo e na atuação dos mais diferentes artistas, como é o caso da Nouvelle Vague, é historicizado com um marco delegado a um único filme. Desde 1955, vários diretores atuavam nas novas propostas estéticas, como Agnes Varda e Claude Chabrol. Porém, o prêmio de Cannes foi importante para demarcar o início do reconhecimento das novas propostas estéticas que surgiam, e talvez por isso o ano de 1959 tenha sido escolhido. Insuficiente, talvez, essa escolha, mas mesmo assim cumpre o papel de um marco: fazer das datas comemorativas um repensar do próprio presente artístico a partir da modificação dos olhares ao passado.

Hoje, são Jean-Luc Godard e Agnes Varda os veteranos da revolução francesa/burguesa do cinema que sustentam uma novidade estética, em outro suporte, o vídeo. Godard foi tão a fundo no trabalho da superfície da imagem que se tornou referência mundial para o suporte, e Varda tem seus vídeos circulantes em variadas mostras e bienais de arte, inventando solitária com sua câmera e sua ilha de edição caseira. O vídeo francês vai muito bem na mão destes dois, que expandiram o sentido da autoria preconizada na Nouvelle Vague, levando-o para uma inventividade sem limites, limites que transbordaram até o próprio cinema. Porém, não são deles que falaremos aqui.

O momento é bastante pertinente para se pensar a situação do cinema francês, que de uns tempos para cá, se configura de uma maneira a modificar o signo universal de uma “atitude tipicamente francesa”. E o mais interessante de voltar os olhos para a Nouvelle Vague nesse momento é a presença de senhores nos postos da direção dos filmes que iniciaram suas carreiras como jovens rebeldes na década de 60. Cinqüenta anos depois, estamos falando de veteranos de um dos mais importantes movimentos de proposição estética da história do cinema que ainda propõem estéticas, mas com enormes alterações do modelo inicial.

Em termos de nomes, pouco mudou: os garotos altivos dos anos 60 se tornaram homens maduros e sensíveis de 60 anos. São eles mesmos que dominam a cena de hoje: Claude Lelouch, Claude Chabrol, Eric Rohmer, Phillip Garrel, Alain Resnais – com filme novo em pós-produção – e são todos populares entre o público francês. Existem, claro, diretores mais novos que seguem a linha dos veteranos, e que se destacam por ir mais longe nas propostas, como Christophe Honoré, que recentemente dirigiu um “musical às avessas” sobre o qual discutiremos nesse texto.

Em tempos de Nouvelle Vague, a Política dos Autores era a regra geral da criação: os filmes deveriam ser pessoais, parecendo-se com seus feitores, expressando suas buscas estéticas, garantindo assim uma gama variada de filmes e estilos, cujas diferenças muitas vezes transcendiam o grande ponto em comum: a negação de qualquer traço de cinema industrial. Por isso os filmes eram feitos majoritariamente nas ruas, com improviso nos diálogos, montagem não linear, longos planos-sequência.

Hoje é possível notar em diversos filmes desses veteranos um tom em comum. Vamos dar uma olhada em alguns movimentos que a “nova onda” produziu nos filmes franceses contemporâneos.

Uma Mulher Dividida em Dois (Claude Chabrol, 2006)

A personagem de Ludivine Sagnier, atriz nouvelle princese do cinema francês, é musa de dois homens neste filme: um é escritor, o outro, um milionário malandro. No fundo, os dois são malandros ricos que se encantam pelo brilho da moça (Ludivine tem mesmo um brilho a mais), e o apagam lentamente até o final do filme. O escritor é casado e não a ama verdadeiramente, já o outro tem fortes problemas psíquicos e é louco pela moça. Depois de um intenso percurso de vai e vem entre os homens, em um momento o escritor morre e ela se casa com o malandro, a quem não ama, tornando-se profundamente infeliz.

Trata-se de um esquema de polaridades para os sentimentos da mulher, que, entre euforia e desespero, vai sucateando o que chamaríamos de uma vida normal.

Em termos de direção e estética em geral, tudo se aproxima de uma noção básica de naturalismo, apesar de a fotografia desenhar áureas estranhas em algumas situações, uma espécie de brilho entristecido, como o rastro de algo iluminado, algo que já passou.

Les parisiens, (Claude Lelouch, 2004)

Esse filme também tem como tema principal as paixões e aflições, polares na vida de uma mulher causadas pela aproximação de um homem. Juntos, tornam-se cantores de rua, mas o homem impulsionado por um lance de sorte com um empresário resolve seguir carreira solo, fazendo um grande sucesso e deixando a moça no vazio. E a canção que não param de cantar no filme apresenta uma mensagem bastante bizarre:

Le bonheur, c’est meilleur qui la vie. C’est pas mon phrase, cest Phillipe qui ma dit. “A felicidade é melhor do que a vida. Não é minha frase, foi Felipe que me disse”. O tom insólito na noção de vida e felicidade apartadas uma da outra percorre tudo. Como podemos ver nessa fotografia de set, há um brilho esquisito na situação, a luz desenha uma leve áurea em torno do homem, é como se houvesse uma camada de poeira brilhante entre os personagens e a superfície da imagem.

Canções de Amor (Christophe Honoré, 2007)

Luis Garrel, filho legítimo da Nouvelle Vague – seu pai é o diretor Phillip Garrel – é uma persona de sedução à lá Belmondo. Mas é um ator de charme sexualmente mais múltiplo, comparecendo em uma ampla gama de filmes que tratam de relacionamento afetivo jovem. Em Canções de Amor, interpreta Ismael, jovem que mantém um longo namoro com Julie (Ludivine Sagnier), até que outra figura entra no romance, Alice (Clotilde Hesme). Temos então um triângulo amoroso, que, caminhando e cantando pelas ruas de Paris – o filme é um musical – faz as forças da Nouvelle Vague atravessarem a tela do cinema, na forma de referência bastante direta. O triângulo é um signo que a Nouvelle Vague tomou para si, querendo ou não, pois é o centro narrativo da maior obra de François Truffaut, e a única respeitada por Glauber Rocha – só pra constar sua opinião sempre polêmica e mesmo assim considerável – Jules e Jim (1962). Similar a ele, pelas aventuras de um triângulo afetivo, temos Band à Part (1964) de Godard, altamente resgatado por Bertolucci em seu altar ao cinema francês dos anos 60, Os Sonhadores (2003).

Ismael vive uma forte ondulação emocional e sexual neste filme. Navega entre pólos de felicidade, ao lado de suas namoradas, e depressão, quando uma delas morre; entre pólos sexuais, pois inicia o filme com duas amantes e o termina com um rapaz de 17 anos. Além desses pólos também, vale dizer que o personagem navega nos pólos da consciência, pois trabalha nas madrugadas e sofre de forte insônia em alguns momentos. Estes pólos não apresentam aqui um sentido dialético, mas locais de partida e chegada como referenciais do deslocamento que Ismael teve em alguns meses de sua vida. O cinema de ficção, aqui, age como uma metonímia das vidas das personagens. O cinema capta sempre uma parte, raramente o todo de uma vida, e é isso que o cinema francês assume na contemporaneidade. Este filme escolheu representar grandes mudanças. E, como mudanças somente acontecem com experiências novas, frescas, talvez este filme, e muitos outros co-patriados e contemporâneos a ele, indiquem um olhar sobre as experiências do amadurecimento humano.

A grande atitude saliente da superfície de construção cinematográfica é a justaposição de experiências tão intensas e distintas entre si, a priori desconectadas. Estando muito próximas, cada experiência em si não é absolutizada, e o vetor do movimento rasteja melhor entre elas. Rasteja porque não é celebrado, epifanizado, é observado de forma aberta pela câmera, e pelo espectador que se permite gostar de filmes franceses contemporâneos. Essa justaposição de intensidades desintensificadas, mesmo que sob forças naturalistas, gera um tom insólito, bizarro. No caso deste filme, o fato de ser um musical – um retorno ao gênero deslocado na linha do tempo do cinema francês – ajuda bastante. As músicas são cantadas em tom desanimado, em voz baixa, quase servindo a uma função oposta da preconizada pelo Musical como um gênero de cinema.

Em vários momentos, entre as situações-experiência, os personagens comentam: Cèst bizarre!, um comentário recorrente na memória do espectador quando ele se identifica com um ponto-de-vista que aponta o caráter bizarro dos encadeamentos dos fatos na vida.

A sucessão das coisas que nos acontece emocionalmente é muitas vezes estranha, mas a vida é maior, então a opção é assumir o insólito e viver nele, viver a onda.

Diante dessa constatação um comportamento é claro: o cinema francês está baixando a bola.

Medos Privados em Lugares Públicos (Alain Resnais, 2006)

O título em francês é bastante pertinente, Coeurs, que significa corações. De forma sutil vivem-se mini-tragédias diárias, e mini-grandes casos de amor semanais, uma pincelada das polaridades absolutas dos sentimentos diluída entre os homens e mulheres que buscam relações afetivas. Talvez Resnais já tenha sintetizado esse recorrente clima polar na cena chave de seu último filme: a neve dentro da casa, um peixe fora d’água estético em um filme que não apresentava sinais de surrealismo algum. Não é surrealismo, é a intenção de expressar as polaridades dos sentimentos da vida. E, claro, a fotografia de Coeurs é a mais brilhante e auresca de todas.

Sobre esse filme, Filipe Furtado comenta na Revista Paisá:

Medos Privados em Lugares Públicos é o tipo de filme do qual não se escreve uma crítica. Diante dele somos obrigados a repensar nosso oficio como uma grande perda de tempo.”

(FURTADO: http://www.revistapaisa.com.br/anteriores/ed9/resnais.shtm)

É a mais pura verdade, Resnais nos deu uma grande rasteira. Sabendo de seu vasto trabalho com as intensidades da relação experiência/memória, esse filme, só vendo pra sentir o rastro da estranheza que as imagens deixam quando passam pela tela.

Não é à toa que, pesquisando estes filmes no site imdb, encontra-se sempre na descrição do gênero: comédia/drama. Trabalhando nestes dois pólos (grossos, mas referentes) esses filmes se definem como uma nova intenção estética para o cinema francês contemporâneo, que é um contemporâneo fruto de um deslocamento, um lugar onde se chegou, pois é formado majoritariamente pelos garotos altivos dos anos 60 que se tornaram homens maduros e sensíveis de 60 anos.

“porque a inundação de sentimentos por seqüência de seu cinema pede mesmo que os personagens explodam para além das fronteiras do pequeno naturalismo do dia a dia – que simplesmente não dá conta de tudo que se passa dentro e entre as pessoas.”       (VALENTE: http://www.revistacinetica.com.br/dansparis.htm)

Essa definição de Eduardo Valente para o cinema de Honoré pode se estender para uma ampla gama de filmes franceses recentes dirigidos por veteranos da Nouvelle Vague.

Resnais era antes conhecido por um realismo impressionista. Os filmes franceses recentes têm um sutil caráter expressionista, mas não de uma forma esteticamente explosiva. Ao contrário, é como se fosse um expressionismo imerso em meio ao grande marasmo que é a vida parisiense da maneira que está sendo representada. Realismo insólito, uma pitada suave de Kafka para as situações que acontecem em uma progressão sem muito espaço para relações de pensamento entre elas. A questão é muito mais de sentimento, materializado pela fotografia poeirenta brilhante, auresca, almesca, para preencher de vácuo-brilho o “que se passa dentro e entre as pessoas” e a vida em Paris, cujos contornos são destacados em quase todos esses filmes.

Hoje em dia, não é possível enxergar autores franceses nos moldes propostos quase 50 anos atrás. Cada diretor não traça para si um posto único de inventividade e estilo, se diferenciando dos outros. Estão todos no mesmo barco estético e temático, e não é qualquer barco, é um tanto inusitado para o imaginário trazido quando se fala em “cinema francês”, que já traz a carga da invenção, com os irmãos Lumiére e experimentadores precoces como Meliés.

Revolucionário o cinema francês não está. Não se sai do cinema com uma sensação sublime, com uma semente de mudança no estômago, ou uma inspiração para ser feliz. Sai-se do cinema pensando simplesmente que a vida anda, muda, a partir de sentimentos encadeados de forma inusitada. Esses filmes exprimem ou uma impressão tardia de que Paris perdeu seu posto de centro cultural universal, ou uma visão da arte como um instrumento observador da vida, nunca maior que ela. Essa é uma surpresa para a tradição francesa de pensamento artístico.

E depois de ter assistido a tantos filmes e exclamado junto às personagens: “C’est bizarre!”, o melhor é parar de esperar revoluções estéticas dos senhores da Nouvelle Vague, e esperar agora personagens que deixam a vida se movimentar e que reconhecem que ela é maior que a estética, que o cinema, e que o autor francês. Cinqüenta anos depois da violenta nova onda, o mar está de ressaca, tranqüilo.

Caroline Rodrigues é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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