O lançamento da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki possui muitos significados. Para alguns, significou uma espécie de alerta dos Estados Unidos ao avanço dos soviéticos no Ocidente. Não acho que seja a única explicação, mas esta interpretação me serve ao propósito deste texto. Usemo-la então.
Se assim considerarmos o lançamento da bomba, creio poder aplicar este conceito a propósito do filme “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (“The Dark Knight“), dirigido por Christopher Nolan. De tempos em tempos aparecem pessoas que vêem crises: da economia, do cinema norte-americano, do capitalismo, etc. Se fôssemos seguir estes áugures, hoje o Japão seria a maior economia do mundo, o mundo seria infalivelmente comunista, e Hollywood seria página virada da história. Na verdade, a capacidade de reinvenção destes agentes é enorme, o que permite contornar os reveses e seguir em frente.
Mas o que tudo isto tem a ver com o filme do Homem-Morcego?
Respondo como espectador e pessoa ligada à feitura de filmes. Muitas pessoas consideraram o filme excelente. E eu estou entre estas. Sua bilheteria tornou-se uma das maiores já registradas. Mas o que mais me chamou a atenção não foram somente os números. Foi a grande bilheteria ter vindo de um filme de qualidade inquestionável.
Comparemos por exemplo este Batman com o último filme do Indiana Jones, “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal” (“Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull”). Ambos custaram o mesmo (em torno de 185 milhões de dólares), mas são filmes muito distintos. O filme de Spielberg é tudo aquilo que esperamos de um bom filme: movimentado, com boas cenas e emocionante. Mas não avança muito além disso, não atravessa a barreira da competência. O do herói mascarado é uma experiência única: roteiro magistral, direção competente, música inteiramente integrada à ação, um personagem complexo e o que chamamos de bigger than life. Há tantas interpretações, tantas coisas acontecem nas duas horas e meia de projeção, que temos a sensação de termos visto mais que uma vida inteira na tela. Ao final da projeção nos sentimos com uma deliciosa sensação de cansaço, mas não o cansaço entediante, mas aquele de ter visto um grande evento. O filme pode ser visto como uma história de um triângulo amoroso, como uma análise da democracia, como uma saga da abnegação, como uma discussão sobre o papel do herói, como uma alegoria do Bem e do Mal e suas interações. Nenhum destes sentidos resume o filme, e todos eles o enriquecem.
Enquanto “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal” parece fruto de um cinema satisfeito em sua posição de líder, de sucesso fácil, dando uma sensação de que é possível de fazê-lo se tivéssemos um dinheiro igual, “Batman – O Cavaleiro das Trevas” parece dizer o seguinte: – Bom, há muitos bons filmes sendo feitos no mundo, mas agora vamos mostrar um que seja impossível de copiar. Uma bomba atômica. Uma exibição inibidora e acachapante.
Claro que apelo a exageros retóricos, mas o que seria da ficção sem estes? E por que não um texto de análise não usar destes artifícios? E, de qualquer modo, foi a imagem que me veio à mente quando saí do cinema e me pus a pensar sobre o filme.
Voltando a ele, acho que é uma obra que assusta e impõe respeito. Não o respeito via coerção, mas o respeito que temos por alguém cujos atributos não sentimos condições de repetir. Inveja? Sim, por que não. Nos manuais e entrevistas de caráter politicamente correto, a Inveja é vista com maus olhos. Eu prefiro uma outra visão, mais nietzschiana: sem ela, não haveria o progresso. O mundo talvez fosse um tanto chato. É ela que nos coloca a centelha de tentar nos superarmos, de tentar fazer melhor do que aquilo que invejamos. Não confundir com a inveja má, aquela onde se procura prejudicar o outro usando de artifícios escusos. A que menciono tem um caráter positivo. E esta inveja acaba por ser respeitosa. Pois talvez aquilo que invejamos seja tudo aquilo que gostaríamos um dia de fazer.
Mas por que o filme de Nolan causa isto? Vou enumerar alguns fatores nos próximos parágrafos.
Em primeiro lugar, por conseguir aliar divertimento de alto nível, bilheteria, ousadia e profundidade.
Em segundo lugar, pelo extremo capricho que a produção apresenta. A cena onde um caminhão capota não foi feito por meios digitais, o que sempre denota certo artificialismo. Pegaram um caminhão e fizeram-no capotar de verdade. Quem assistiu ao filme sabe do que falo. Voltemos à comparação com o filme de Spielberg. Apesar do mesmo orçamento, este foi finalizado em 2K[1], que não é considerado um primor de finalização. O Batman fez algo inédito: filmou em Imax, que utiliza o negativo 65mm na posição horizontal, como numa máquina fotográfica, pela primeira vez num filme de ficção. Sua área é de cerca de 10 vezes a área de um negativo Cinemascope normal, o que implica numa resolução de imagem sem par. Cerca de 20% do filme foi captado deste modo. O resultado é emocionante, ao menos para um fotógrafo: quando vemos as aéreas de Hong Kong, filmadas no chamado lusco-fusco, vemos uma qualidade de imagem que salta aos olhos. É de um capricho estarrecedor. O ótimo trabalho de edição de som, onde ouvimos as batidas das asas que dá um toque especial. A trilha é dividida por dois dos principais compositores de trilhas do cinema de Hollywood. Explosões de prédios e as roupas de Bruce Wayne, que foram desenhadas por Armani, completam o espetáculo.
Em terceiro lugar, a figura do diretor Christopher Nolan. Além de ser um roteirista brilhante, consegue ser um diretor extremamente eficaz. Não é um gênio visual como Spielberg, mas consegue imprimir o tom certo na narrativa, além de ter muito bom gosto. É muito raro, nas grandes produções, a mesma pessoa fazer o roteiro e a direção. Pois Nolan conseguiu o feito em “Batman Begins“, e o repetiu aqui. Não contente, insiste em dirigir as cenas de ação, que são em geral confiadas às segundas unidades. Foi ele quem convenceu a Warner a rodar parte do filme em Imax.
Tenho uma particular admiração por Nolan. Além de ser da minha geração, admiro sua coragem, o fato de tentar dar uma cara nas suas grandes produções, dar o seu toque pessoal. Escrevendo seus roteiros, dirigindo as cenas de ação, tentando captar no melhor formato possível, juntando na sua equipe os melhores em cada área, e fazendo o chá das cinco ao escalar seus conterrâneos ingleses nos papéis principais. Que inveja! O mais estimulante é que Nolan começou como muitos de nós. Seu primeiro longa, “The Following” ( http://www.imdb.com/title/tt0154506/ ) foi rodado somente aos sábados, pois boa parte da equipe tinha outros empregos. Nolan fez a direção e fotografia do filme. Uma condição não muito diferente da nossa. “Amnésia” é uma produção simples, mas muito bem urdida, consegue ter um ar de novidade e entreter ao mesmo tempo. Daí pra frente foi uma ascensão meteórica.
Assim como o diretor, Wally Pfister, o diretor de fotografia, demonstra esta idéia de chamar a responsabilidade pra si, como se diria em termos futebolísticos. Junto com Nolan, decidiram que o que não seria Imax seria 35mm anamórfico, e sem intermediação digital, para preservar a qualidade fotográfica ao máximo. E resolveu ele mesmo rodar o Imax, que é, de modo geral, rodado só por especialistas neste formato. Pegou a câmera e ficou treinando até se sentir confortável com o formato. É este tipo de postura que admiro, um certo encantamento técnico misturado a certa altivez em querer aprender e experimentar o novo, cujo caráter lúdico impregna o filme. Feito admirável foi o trabalho do assistente de câmera, pois conseguir manter o foco no Imax (formato cuja profundidade de campo é mínima) é dificílimo, como se pode perceber na cena de abertura, a do assalto ao banco.
É um filme moderno, feito pra sua época. Não é mais o herói puro dos anos 50, mas um herói manchado. Uma visão um pouco pessimista, um pouco cínica. Em conexão com uma nova geração que criou este filme, fundou a Google, o Youtube. Enquanto os EUA e o mundo jogam uma pá de cal nos anos 60, o Brasil ainda os cultiva, e não conseguimos nos comunicar com os novos espectadores.
Tudo isto me leva à questão principal do começo do texto. É a bomba atômica no sentido de, ao vermos este filme, temos a impressão que, mesmo se pegássemos 185 milhões e colocássemos na mão de qualquer outra pessoa, de qualquer outro país, não conseguiríamos fazer um filme igual a este. Não é o talento que sabemos nunca ter (o que seria fácil em se resignar), mas a demonstração de uma competência que soa fácil, mas sabemos ser inimitável. É o chamado “cala a boca” sem precisar bater.
Adriano Barbuto é Diretor de Fotografia e professor do curso de Imagem e Som na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
[1] 2K é uma medida de resolução de escaneamento da imagem. Significa que o negativo 35 mm foi escaneado e sofreu pós-produção num formato de 2048 por 1556 pixels (http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_common_resolutions#Television.2Fmovies ) na janela full frame.