Um cinema listado

Para começar, a busca de um cinema listado nunca se mostrou um intento fácil, sempre questionável na medida em que argumentações se perdiam meio à repetição frágil de uma crítica moderna (ou antiga também), em que o esfacelamento da reflexão e a adoção do gosto pessoal se apresentavam como verdade absoluta, sem espaço para contestação ou diálogo. No entanto, deparar-se com uma longa matéria da Cahiers du Cinema-España me fez presenciar uma nova postura (ao menos no âmbito desses redatores), uma vez que se assumiu o feito como um jogo “pueril e também um entretenimento um tanto infantil e narcisista”1, que no entanto merece uma “reconsideração crítica permanente”2, já que “uma hierarquização (é) inevitavelmente passageira, porque igualmente sabemos que as perspectivas biográficas e culturais se modificam ao passar do tempo, e que se nos pedem uma lista um ano depois (ou uma semana mais tarde) provavelmente quase nunca incluiremos nela os mesmos títulos que pusemos na primeira vez que o fizemos”3.

Pois bem, a lista em questão é a dos melhores filmes da década, e após duas matérias introdutórias (A origem do século XXI e E os computadores tomaram o poder) sobre o que representou a década a qual seria radiografada, a revista revelou aos leitores a sua seleção, e em sua maioria, títulos presentes noutras listas com o mesmo tema, na Cahiers du Cinema-França, na revista britânica Sight & Sound, ou na publicação norte-americana Film Comment. Fato que nos faz retomar dois textos já aqui publicados Propostas para uma (outra) crítica de cinema (http://www.rua.ufscar.br/site/?p=2183) e Cem filmes para uma cinemateca ideal (http://www.rua.ufscar.br/site/?p=1568) ambos de Bruno Carmelo, em que o autor revisa o papel da crítica, sendo esta em sua maioria condicionada a um grupo homogêneo pertencente de mesmos valores culturais, e condições sócio-econômicas atadas a um julgamento de quantificação (listas, estrelinhas, bonequinhos) e não de qualificação. Desse mal, ao menos, os editores da Cahiers-España se redimiram ao assumir que enumerar os melhores títulos da década era no mínimo “passageiro” e “pueril”, e mais, resgataram o “pensamento anti-idólatra” de Claudio Magris, “um pensamento capaz de estabelecer hierarquias de valores, capaz de escolher e, portanto, de dar liberdade, de proporcionar ao indivíduo a força de resistir às pressões que o ameaçam e à fábrica de opiniões e slogans”4. E assim, puderam, após abrir os parênteses da redenção, listar as obras de seus feitios, alçadas em argumentos da escolha, porém dando aos leitores a permissão da reconsideração crítica.

Três textos compuseram a matéria, com objetivo de recorrer “aos filmes e aos cineastas que segundo os críticos da revista, definiram o decênio tanto por sua transcendência como por seu vigor contemporâneo”5 de modo a oferecer “uma ampla reflexão sobre as múltiplas “revoluções” que nestes anos protagonizou a história do cinema”6. O primeiro, A origem do século XXI de Carlos Losilla faz um panorama sobre a crise do cinema, e a sua morte, preconizada, sobretudo por Jean-Luc Godard no seu “Histoire(s) du Cinema” (1989-1999) donde “havia deixado claro, como corolário às profecias de Serge Daney”7 que o cinema que conhecíamos havia morrido, “de maneira que somente resta construir um grande mausoléu onde sobrevivam, embalsamadas, algumas das mais bonitas imagens do que foi o século”8. Em contraposição, o autor posiciona o que seria a possibilidade de uma nova cinefilia, através do livro Movie Mutations (2002), uma reunião de textos críticos de jovens do mundo inteiro, “frente à melancolia godardiana, se alçava a promessa de um renascimento, tanto no cinema como na crítica ou na historiografia, de modo que os anos noventa contemplavam como uma revolução superposta ao pessimismo de Godard”9. Nomes como Nicole Brénez, Adrian Martin, Alexander Horwath, Kent Jones se mostravam “capazes de iniciar um diálogo com o cinema do passado que abriria portas em direção ao presente e ao futuro, e tudo desde uma perspectiva comum: fosse como fosse, havia que salvar o desejo do cinema, evitar que se apagasse a chama, converter os anos 2000 numa nova época de esplendor. Não se tratava de uma cinefilia nostálgica, senão de um movimento dialético”10. Nesse contexto se constrói um novo panteão de autores, que em suas obras incorporavam novas questões de imagens, influenciadas pela linguagem do videoclipe e da televisão, e à crítica cinematográfica, a Internet ofereceu possibilidades de expansão, discussão e troca.

No entanto, o autor questiona a autenticidade de uma revolução antecipada pela crítica de então, nomes que eram tidos como novos cânones no panteão do novo cinema, se desfizeram num esvaziamento através da construção de fórmulas, e então a não ficção se diluiu num “entusiasmo prolífico”, o cinema asiático se debilitou “em propostas de menor peso específico”, e o cinema minimalista acabou se repetindo, e as causas desse desmascaramento, segundo Losilla, seria a histérica ansiedade da sua geração, “encarregada de estender as pontes necessárias entre o passado e o presente”11 em criar clássicos precoces. Há que fazer ressalvas, e elas residiriam no cinema de nomes como Jia Zhang-Ke, Wang Bing, Pedro Costa, Lisandro Alonso… Neles, “a figura humana, em todos os casos, é a vítima de um desmoronamento, de uma ausência insubstituível, mas também a protagonista de uma epopeia”12.

Já disse Abbas Kiarostami no livro que leva seu nome “julgo que a matéria-prima de um diretor não é câmera, o negativo de uma película, mas a matéria humana”13, contudo, noutra revolução desse decênio, tanto a matéria humana quanto a película seriam preteridas em nome de um cinema de espetáculos de grande orçamento e novos aparatos tecnológicos. É o que diz o texto de Àngel Quintana E os computadores tomaram o poder.

O texto de Àngel se inicia com uma comparação entre a escultura e a imagem, “no Renascimento os moldes obtidos a partir do contato físico foram rechaçados por uma concepção da escultura em que a ideia se impunha como base para a criação de formas nobres. Os moldes que capturavam os vestígios das coisas pré-existentes não poderiam ser a origem de obras artísticas, porque a arte deveria partir de um desenho, uma invenção e um desejo de representação”14, pois essa recusa dos moldes representaria a situação da imagem atual, uma vez que a busca da imagem digital unida à criação de “outros humanos”, monstros, e figuras irreconhecíveis (verdes, azuis, com orelhas grandes) poria em crise os corpos de atores e a simples reprodução de ambientes não artificiais, impondo ao cinema imagens espetacularmente inventadas, irreais e fajutas. No entanto, o que se viu foi um cinema híbrido, em que “a realidade virtual conviveu com a realidade empírica”15, num processo em que os computadores são o epicentro criador.

Exemplos dessa imagem no cinema recente são “Matrix” (1999) e “Avatar” (2009) que, segundo Quintana, representam a constatação de uma inovação labiríntica, na medida em que “não houve uma progressão teleológica, senão um retorno ao mesmo”16. Ainda que o filme de James Cameron tenha evoluído em relação ao outro no que diz respeito à naturalidade dos desenhos de corpos sintéticos e à imagem em 3-D, “nela, a utopia do progresso é um caminho sem retorno em direção a algo tão velho como o sonho de um mundo em que tudo seja representado”17. Assim, corpos humanos deram lugar a corpos híbridos, o humano mais o digital.

Em seguida, o crítico faz um panorama da década quanto à nova percepção do que é o cinema, e o que restou às telas e ao sagrado ato de ir ao cinema, num desses levantamentos nota-se a ampliação do que é consumido, desde grandes espetáculos em 3-D, retransmissões de óperas ou partidas de futebol, e o cinema se expandiu à palavra audiovisual, fazendo com que novos públicos aderissem a essa reconfiguração da palavra. E acrescenta, “em 1995, o cineasta Víctor Erice se aventurava a profetizar que o lugar do cinema respeito ao audiovisual seria parecido ao lugar que ocupa a poesia respeito à literatura: um lugar residual de conservação de certa beleza”18. Restaria, pois, ao cinema recuperar o que de certa forma o audiovisual aniquilou, ou reformulou, uma imagem artística pautada no homem, representado pelo corpo humano livre de intercepções digitais. E finaliza “se observarmos o que nos deu o cinema da década, comprovaremos que as obras mais interessantes foram as que nos fizeram descobrir essa beleza (a da imagem artística), as que converteram a tela em um espaço para a poesia ou para o pensamento”19.

Numa discussão do que restou do cinema, há que ver que a inevitabilidade da tecnologia (seus benefícios e desvantagens) não deve ser menosprezada, no entanto substituir o homem pela máquina, o corpo pela representação do mesmo, é, sobretudo, um delírio falso, um cinema vão. Tirar o humano do centro da imagem é confirmá-lo superado. Por fim, fazer do homem outro seria como negar a própria existência.

Para finalizar esse rápido apanhado de importantes questões do cinema (ou audiovisual) referentes ao decênio em questão, apresentarei aqui enfim a lista, resultado da reflexão desses críticos espanhóis, sem nos esquecermos da postura assumida do diálogo, e não do veredicto, a fim de criar uma reportagem ativa a partir de uma seleção subjetiva e tida como jogo, mas que “supõe contemplar o fenômeno de uma perspectiva tão certeira como limitada, porque também é verdade que os listados contribuem a radiografar um determinado “estado de questão” na valoração que um coletivo de profissionais ou de especialistas fazem do corpus submetido a escrutínio”20, trecho do texto Em busca de um cânone, do crítico Carlos F. Heredero. À lista:

Heredero faz um belíssimo texto sobre o que representa “Amor à flor da pele” ao cinema moderno “um filme cujo impetuoso fôlego lírico segue ressonando de forma tão poderosa, dez anos depois de sua estreia”21, pois o cinema de Wong Kar-wai “expressa de forma emblemática a problematicidade da condição pós-moderna, o discurso, e as formas de seus filmes (que se perguntam sem cessar como filmar a lembrança, a que ritmo bate uma emoção, de que cor é ausência ou como conservar vivo um sentimento)” a traduzir por diferentes meios, sejam eles estéticos ou emocionais, as condições dos protagonistas. O filme seria um “autêntico labirinto de espelhismos submersos nos rituais hipnóticos postos em cena capaz de reconfigurar uma geografia emocional que parece impulsionada pelo distintivo fundamental do cineasta “filmar os lugares e fixar sua memória””22.

Memória, talvez seja a palavra a que melhor cabe às intenções de um cinema listado, resgatar mediante a diversos títulos produzidos todos os anos, de Hollywood a Beijing, e suscitá-los a uma verdadeira celebração do próprio cinema e do homem. Títulos que fazem com que o cinema não se perca meio às tecnologias nascentes e sufocantes, e que incrusta na película (ou no digital) o humano e suas mais profundas questões. Já disse Godard em seu “Nossa Música” (2004): “o princípio do cinema é ir até a luz e apontá-la para a nossa noite”, relembrar filmes que compuseram a década é refletir sobre nós mesmos, diante das questões que eles nos propõem e nos desafia, o vigor de uma obra cinematográfica dez ou cinco anos depois de sua estreia proporciona a auto-reflexão e um novo desejo para o futuro.

E nós, estudantes de cinema, ou não, simples aficionados, colaboradores ou editores da RUA, nos propusemos a fazer uma lista nossa, ainda que retidos na ideia da recorrente reflexão, diálogo e não veredicto.

Sobre elefantes e Gus Van Sant: ao longo de sua carreira, o diretor norte-americano tem se mostrado cada vez mais inovador quanto à forma estético-libertária que seus filmes propõem, desde o seu “Mala Noche” (1985) até “Paranoid Park” (2007) o que se vê é uma evolução técnica e narrativa, mas sem perder o toque experimental, seja ele através da câmera, da banda sonora, do enquadramento, ou da forma sutil a que se pretende retratar em sua maioria jovens num conflito maior, que os cerca dentre corredores de uma escola em Portland, ou dentre um quarto sujo de hotel numa noite ruim. “Elefante” é assim, um ensaio visual potente e importante, por tornar um fato histórico (o massacre de Columbine em 1999) um ensaio poético de questão universal e não datado, recorrendo aos travellings como recurso para se aproximar o máximo possível da tensão ou distensão de um problema, sem julgamentos prévios, tampouco induzíveis, os fatos são mostrados fragmentados a fim de deter uma visão multilateral e próxima dos envolvidos.

Para finalizar, há que dizer que a importância de uma lista, despretensiosa, ilustrativa e absolutamente declarada subjetiva, se dá na forma como resgate e reconhecimento de títulos que a meu e a seu ver contribuíram para o desenvolvimento de uma nova linguagem audiovisual, assim, o não engessamento da visão própria possibilita o intercâmbio, a sugestão, a discussão por parte dos leitores, amantes do cinema. Fazer essa lista nos permite, sobretudo, fomentar aqui uma reflexão estendida a ponto de que cada leitor possa concordar, discordar e principalmente acrescentar novas obras, pois muitos e muitos são os melhores filmes da década.

Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
_________________

1 – (HEREDERO, 2010, p.14)

2 – idem.

3 – idem.

4 – (HEREDERO, 2010, pp.14-5)

5 – (LOSILLA, 2010, p.8)

6 – idem.

7 – (LOSILLA, 2010, p.9)

8 – idem.

9 – idem.

10 – idem.

11 – (LOSILLA, 2010, p.10)

12 – idem.

13 – (KIAROSTAMI, 2004, p.80)

14 – (QUINTANA, 2010, p.12)

15 – (QUINTANA, 2010, p.13)

16 – idem.

17 – idem.

18 – idem.

19 – idem.

20 – (HEREDERO, 2010, p.14)

21 – (HEREDERO, 2010, p.18)

22 – (HEREDERO, 2010, p.19)

BIBLIOGRAFIA

CARMELO, Bruno. Cem filmes para uma cinemateca ideal. Revista Universitária do Audiovisual (RUA): Disponível em: < http://www.rua.ufscar.br/site/?p=1568>. Acesso em: 10 março 2010.

CARMELO, Bruno. Propostas para uma (outra) crítica de cinema. Revista Universitária do Audiovisual (RUA): Disponível em: < http://www.rua.ufscar.br/site/?p=2183>. Acesso em: 09 março 2010.

HEREDERO, Carlos F. En busca de um canon. Cahiers du Cinema España 31: 14-17, Fev. 2010.

HEREDERO, Carlos F. Laberinto de espejismos. Cahiers du Cinema España 31: 18-20, Fev. 2010.

KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

LOSILLA, Carlos. El origen del sieglo XXI . Cahiers du Cinema España 31: 8-11, Fev. 2010.

OLIVEIRA Jr, Luis Carlos. Elefante. Contracampo: Disponível em: < http://www.contracampo.com.br/58/elefante.htm>. Acesso em: 14 março 2010.

QUINTANA, Àngel. Y los ordenadores tomaron el poder. Cahiers du Cinema España 31: 12-13, Fev. 2010.

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