“As blasfêmias de Buñuel são uma espécie de maledicência terapêutica, onde o indivíduo procura, mais do que atingir o ofendido, demonstrar a si mesmo que o ‘outro’ não tem poder sobre ele, não manda mais na sua mente”
(TAVARES, Bráulio. 2002: p. 79)
Em O Discreto Chame da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoisie, 1972), o embaixador (e traficante de drogas) de um país sul-americano (com características de ditadura) chamado Miranda recebe a visita de uma terrorista na embaixada em Paris. Ela pretendia matá-lo, mas ele consegue se livrar (novamente). Deixa a moça ir embora, mas então vai à janela e acena aos guarda-costas – que a lançam dentro de um carro e somem. Segundos antes da ação, entre os dois homens se pode ler numa placa: Rua Maspero. Trata-se também do nome de um célebre editor francês, François Maspero – engajado ao pensamento de esquerda, sua editora surgiu durante a Guerra da Argélia e foi muito censurada pelo governo francês, acabando por fechar as portas. A alusão parece clara e nítida, sugere Charles Tesson.
Entretanto, se tivéssemos a curiosidade de olhar um mapa de Paris, verificaríamos que essa rua existe mesmo. A Rua Maspero se encontra no XVIe arrondissement, na esquina entre Franqueville (onde está a janela do embaixador), Verdi e Andigné. Além do mais, a rua se encontra num quarteirão onde residem alguns embaixadores. Contudo, muitos aficionados pela obra de Buñuel nunca estiveram em Paris, como poderiam saber? No final, certas coisas, circunstâncias e elementos que nem são o foco de um filme ou livro terminam incorporando um valor de signo.
Com relação às seqüências de O Discreto Charme onde um grupo de pessoas caminha sem que exista uma continuidade clara em relação ao restante do filme, poderíamos dizer que se trata de uma burguesia desorientada, sem destino histórico (NOGUEIRA, Miriam. 1993: p. 151). Buñuel até admite que em sua obra existam vários outros exemplos de pessoas que não conseguem fazer o que desejam. Como em A Idade do Ouro (L’âge d’or, 1930) (um casal que não consegue se unir), Ensaio de Um Crime (Ensayo de un Crimen, 1955) (Archibaldo tenta em vão matar), O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962) (o grupo de pessoas que não consegue deixar certo local) e Esse Obscuro Objeto do Desejo (Cet Obscur Objet du Désir, 1977) (o desejo nunca satisfeito de um senhor por uma jovem). Contudo, além de concluir que, “é bem possível que haja outros exemplos”, o cineasta não se esforça em tecer maiores considerações a respeito (BUÑUEL, Luis. 2009: p. 333).
Agustín Sánchez Vidal sugeriu que o adjetivo “discreto” do título teria como origem El Discreto (1646), de Balthasar Gracián. Mas Buñuel conta outra história – ou esqueceu-se desta referência? De acordo com o cineasta, não se pensou na burguesia durante o trabalho com o roteiro. Na última noite, pensando em “Abaixo Lênin, ou a Virgem da Estrebaria”, chegaram a “O Charme da Burguesia”. Seu amigo e co-roteirista Jean-Claude Carrière achou que faltava um adjetivo. Entre muitos, “discreto” foi o escolhido. Buñuel acabou contanto também que a primeira cena (a confusão com a data do convite para jantar) foi inspirada num episódio similar real ocorrido com seu produtor, Serge Silberman (Idem, pp. 343-4).
Entretanto, são palavras do próprio Buñuel: “Não há nenhuma mensagem. Além disso, eu teria vergonha de dizer a mim mesmo: ‘eu vou demonstrar com isso que a burguesia está perdida’”. A frase padrão de Buñuel quando questionado sobre os significados de sua obra é: “Eu teria vergonha de pensar nisso fazendo o filme”. Buñuel se recusa tanto a ser analisado quanto a ser o analista de sua obra. Manifestamente, conclui Tesson, existia uma recusa por parte de Buñuel em saber o porquê das coisas presentes em seus filmes – ou talvez, em nome da liberdade do espectador, o cineasta não desmentisse nada a respeito de sua obra (TESSON, Charles. 1995: pp. 19, 20, 31-2).
Por outro lado, como mostra o exemplo da Rua Maspero, algumas imagens presentes na obra do cineasta não necessitam esperar um Livro dos Sonhos de Buñuel para descobrir a charada – como as anotações e desenhos que o cineasta italiano Federico Fellini fazia de seus sonhos e levava ao seu psicanalista durante anos; atualmente publicadas (BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio. 2008). Vidal mostra como toda a obra de Buñuel está ancorada numa herança cultural espanhola. O desconhecimento disso acaba levando a maioria, especialmente seu público cativo pelo mundo afora, a tomar por criatividade surrealista do cineasta uma série de elementos e situações bizarras às vezes bastante conhecidas e caras aos espanhóis. Partindo de O Discreto Charme, Vidal explicitou os liames entre os filmes de Buñuel, suas obsessões e suas raízes culturais.
Entre Sonhos e Idéias Fixas
De acordo com Vidal, O Discreto Charme constitui o miolo de um tríptico que começa com A Via Láctea (La Voie Lactée, 1969) e termina em O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberte, 1974) – pulando Tristana (1970), mais um filme sobre heresias (VIDAL, Agustín Sánchez.1999: pp. 61-74, 75n3). Os três filmes compartilham uma estrutura episódica inspirada na novela picaresca, especialmente Gil Blas de Santillana, de Alain René Lesage (1715-1735) e O Manuscrito de Zaragoça (1797), narrado por Waclaw Potocki – a versão para cinema dirigida pelo polonês Wojciech J. Has também interessou Buñuel. O cineasta teria reconhecido aí suas próprias técnicas em relação ao flashback, tirando uma estória de dentro da outra (mise en Abîme). Flashbacks podem ser encontrados em O Cão Andaluz, (Un Chien Andaluz, 1929), O Alucinado (El, 1953) Ensaio de Um Crime, A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967) e noutros filmes da fase francesa.
Os episódios em A Idade do Ouro são ligados a partir de pequenos imprevistos. A jornada é a razão de ser de A Via Láctea, onde existe uma correspondência entre a peregrinação através do Caminho de São Tiago e uma peregrinação interna através das diferentes heresias. O Fantasma da Liberdade gira em torno de uma série de encontros casuais. Em O Discreto Charme, a jornada reaparece através do tema recorrente (leitmotiv) da caminhada pela estrada. Na opinião de Charles Tesson, essa caminhada também encontra um eco no interesse de Buñuel por idéias fixas. Tanto a caminhada quanto a insistência em iniciar uma refeição seriam o único exemplo em Buñuel de idéia fixa realmente coletiva – exemplos individuais se multiplicam em sua obra (TESSON, Charles. Op. Cit.: p. 98).
Articulados a flashbacks dentro de flashbacks, os sonhos também constituem importante elemento estrutural em O Discreto Charme. Seqüências oníricas sempre foram utilizadas por Buñuel. Vidal cita especialmente filmes como Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950) e Subida ao Céu (Subida al Cielo, 1952), mas esclarece que apenas a partir de A Bela da Tarde Buñuel os utilizou para estruturar os filmes e apagar as fronteiras entre o sonho e a realidade – desafiando as concepções burguesas de mundo e narrativa, o que permitiu o tratamento das convenções sociais desta classe como uma forma de ficção.
“No tríptico, Buñuel recapitula boa parte de sua carreira cinematográfica, retornando para um surrealismo que é agora muito diferente do frenesi militante de seu trabalho inicial. O tom, também, é mais gentil, mais irônico, não tão duro quanto em sua fase mexicana – como se tivesse origem numa revisão cartesiana de seu trabalho anterior. A Via Láctea se assemelha muito a Simão do Deserto [Simón del Desierto, 1965], assim como O Discreto Charme a O Fantasma da Liberdade. Os dois últimos compartilham uma estrutura oculta, uma forma ou anti-forma muito buñuelesca. Uma seqüência de rituais burgueses que ligam missa a comida, altar a mesa. Com todas as conotações, seja fascinantes ou sinistras, que essas cerimônias possuem para o cineasta” (VIDAL, Agustín Sánchez. Op. Cit.: p. 62)
Rituais Burgueses
Numa série de filmes do cineasta espanhol sexo e morte estão articulados de tal forma que certos lugares ou momentos eróticos se transformam numa espécie de altar. Como quando em Um Cão Andaluz, onde o protagonista deve arrastar padres e asnos mortos enquanto tenta chegar a sua amada. Ou ainda, como em A Bela da Tarde, na cena em que Severine é colocada num caixão para que o duque alcance o prazer. Em Tristana, Don Lope Garrido seduz a mulher após a visita dela à tumba do cardeal. Cerimônias relacionadas à mesa também são críticas no mundo de Buñuel. Em O Fantasma da Liberdade, na seqüência em que convidados para o jantar sentam-se em privadas à volta da mesa, com as roupas íntimas abaixadas como se estivessem defecando – enquanto conversam e folheiam revistas. Então um deles se levanta, abotoa a calça e segue para o banheiro – onde fará uma refeição.
De acordo com Vidal, os rituais do altar e da mesa convergem pela primeira vez em Viridiana (1961). Primeiro vemos a Missa Negra de Don Jaime para conquistar a sobrinha, no final acompanhamos uma espécie de Ceia Satânica na orgia dos mendigos. Nas duas situações temos a tentativa de estupro de Viridiana. Graças ao modelo do quadro de Leonardo Da Vinci, a transformação do altar em mesa é explícita. A Última Ceia seria a primeira Missa, o que facilita a passagem para uma Missa Negra. Viridiana depende, conclui Vidal, desta dialética entre o picaresco e o místico – elementos críticos para a literatura e pensamento espanhóis.
O Anjo Exterminador segue o mesmo padrão quando um grupo de mexicanos da alta classe média se junta para jantar e descobrem que não conseguem deixar o local. Alguns dias mais tarde, quando todos se juntam novamente na igreja para agradecer por terem conseguido se libertar, percebem que a situação está se repetindo. Vidal chama atenção para a repetição do padrão mesa/altar e para um fato essencial na compreensão de O Discreto Charme: Buñuel considera a alta classe média como uma casta condenada a repetir seus rituais; não sobrevive sem eles, prisioneira do hábito. Em certo momento, um dos convidados chama o motorista da limusine e lhe oferece Martíni seco (a receita reproduzida é do próprio Buñuel), ele agradece e bebe tudo de um só gole. Então o convidado expõe sua opinião de que as pessoas de classe baixa nunca serão capazes de aprender a proceder com refinamento. Buñuel afirmou que não eram suas as palavras desses burgueses! (TESSON, Charles. Op. Cit.: p. 37n42)
“O Discreto Charme é um tipo de versão popularizada em forma laica para cartesianos de O Anjo Exterminador. Nele os elementos religiosos não estão mais em primeiro plano, mas continuam igualmente essenciais tanto para este filme quanto para O Fantasma da Liberdade. Uma consciência da ‘agenda oculta’ de Buñuel – sua confiança em ingredientes que são parte e parcela da tradição hispânica – é fundamental para qualquer entendimento dos dois filmes” (VIDAL, Agustín Sánchez. Op. Cit.: p. 65)
Mamãe Eu Quero
“A propósito da reprodução do quarto de seus pais em O Discreto Charme da Burguesia, Buñuel fala em lembrança pessoal inconsciente” (TESSON, Charles. Op. Cit.: p. 107n21)
O jantar interrompido, idéia central em O Discreto Charme da Burguesia, vem da peça preferida de Buñuel, Don Juan Tenório, escrita pelo Romântico espanhol José Zorilla em 1844. A peça se tornou tão popular na Espanha que era apresentada todas as noites do dia 1º de novembro, o Dia dos Mortos. De acordo com Vidal, além de Buñuel, muitos espanhóis a conhecem de cor. Uma referência direta a Zorilla em O Discreto Charme ocorre na cena do teatro. Todos são convidados para jantar na casa do coronel. Já sentados à mesa, não conseguem compreender por que o garçom lhes serve um frango de plástico. Então escutam três batidas que anunciam o início de uma peça. A cortina num dos cantos da sala se abre e o grupo percebe que está num palco, questionados por uma platéia impaciente. O homem do ponto, na beira do palco, dá pistas para o Bispo que também esta na mesa com uma frase de Don Juan Tenório: “E para provar seu valor, você convidou o fantasma do comandante para jantar com você”. A peça de Zorilla mistura amor, religião e morte. Buñuel citou a parte que se chama Convidado Feito de Pedra, onde Don Juan convida a estátua do comandante para uma refeição. O comandante fora ferido duas vezes na mão por Don Juan, que além de matá-lo seduziu sua filha, a noviça Doña Inês. A estátua do comandante aparece e convida Don Juan para visitá-lo no cemitério.
De fato, esta cena em O Discreto Charme pertence a um fragmento que Buñuel e Garcia Lorca escolheram para executar no Dia de Todos os Santos, em 1920 na Residencia de Estudiantes (onde conheceriam Salvador Dalí em 1922). O conflito entre pai e filho era o que Buñuel mais gostava em Zorilla. A estátua de Zorilla reaparece no começo de O Fantasma da Liberdade (a estátua do nobre bate no soldado francês que beija a estátua de sua esposa). Em O Discreto Charme um fantasma aparece no sonho que um tenente resolve contar para três mulheres – já irritadas com o fato de não haver chá no salão de chá onde se encontram. Em flashback, fala de quando foi mandado ainda criança para a escola militar por um pai disciplinador. De repente, o menino vê o fantasma de sua mãe morta. Mas ela some, ele procura, mas não a encontra. Quando começa a escrever com batom no espelho (“mamãe eu te amo”), a voz dela o chama de dentro do armário – ele não chega a escrever a última palavra. De acordo com Charles Tesson, esta seqüência era a preferida de Buñuel em O Discreto Charme. Buñuel também se refere a um sonho com seu primo Rafael, e que foi…
“(…) transcrito com grande fidelidade em O Discreto Charme da Burguesia [durante a interrupção de mais uma refeição, agora por um coronel e sua tropa]. Trata-se de um sonho macabro, bastante melancólico e sutil. Meu primo Rafael Saura está morto há muito tempo, sei disso, mas ainda assim esbarro com ele numa rua vazia. Espanto-me e pergunto: ‘Mas o que fazes por aqui? ’. Ele me responde triste: ‘Venho todos os dias’. De repente, me vejo numa casa escura e desarrumada, cheia de teias de aranha, onde vi Rafael entrar. Chamo-o, ele não responde. Volto a sair e na mesma rua vazia chamo agora minha mãe, a quem pergunto: ‘Mãe, mãe, o que fazes perdida entre as sombras? Esse sonho me impressionou muito. Eu tinha uns setenta anos quando fui visitado por ele (…).” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit.: pp. 137-8)
Tesson sugere que o gosto de Buñuel pelas narrativas de origem parece se concentrar no tal tenente algo do cineasta. Mesmo porque, como vemos, ele costumava inserir algo de pessoal em seus personagens – especialmente aqueles aparentemente mais afastados dele (TESSON, Charles. Op. Cit.: p. 260). Na cena do fantasma da mãe do tenente, que, na opinião de Vidal, lembra o início de Ensaio de Um Crime (quando o jovem Archibaldo, escondido no armário, experimenta o espartilho da mãe), ela explica que aquele não é o pai do menino, e mostra o verdadeiro (um fantasma ao lado dela com um ferimento ensangüentado no olho). Então instrui o filho para matar o impostor. Esse sonho, Vidal esclarece, também é baseado noutro que o próprio Buñuel teve na noite seguinte à morte de seu pai (ele viu o pai furioso). O irmão mais novo de Buñuel sempre o chamou de pai. Além disso, o cineasta (talvez incestuosamente) se referia à mãe como alguém muito jovem quando ele “se tornou o chefe da família”. Em O Fantasma da Liberdade, um rapaz adolescente tenta transar com a tia mais velha que tem o corpo de uma jovem – aparentemente ele não sabia disso antes de arrancar a roupa dela.
Sade, Cristo e Buñuel
Vidal explica que quando Buñuel começava a trabalhar num filme ele estabelecia um quadro de associações subliminares (mais latentes do que explícitas) que vinham de seu subconsciente. Essas imagens remetiam a um repertório de obsessões particulares ou à resíduos de outros projetos. Assim como, por exemplo, a utilização sistemática do Marquês De Sade. Começando já com as referências a 120 Dias de Sodoma (1785) no final de A Idade do Ouro. Fora uma explícita contraposição entre Cristo e Sade em A Via Láctea, Vidal afirma que tais alusões não são muito evidentes – o que levou muitos críticos a não percebê-las. Como as citações de A Filosofia de Alcova (1795) em O Alucinado, quando Francisco tenta costurar os orifícios de Gloria, ou Jaibo em Os Esquecidos e Shark em A Morte no Jardim (La Mort en ce Jardin, 1956). Existem também alusões a Diálogo Entre um Padre e um Moribundo (1782).
Vidal sugere que este talvez fosse o mais importante texto sadiano aos olhos de Buñuel, e se insere na obra do cineasta de duas formas: as idéias (independente da situação) e a situação (independente das idéias). Em Robinson Crusoé (1952), após uma leitura da Bíblia na qual Sexta-Feira e Crusoé conversam a respeito da onipotência divina, Buñuel desvia do texto original de Defoe e insere a concepção sadiana da liberdade como um fantasma. De acordo com De Sade, se Deus é mais poderoso do que o homem, deve ser a causa de todos os crimes deste. Este é o espírito que anima A Via Láctea, que termina com a declaração de Cristo de que ele veio para trazer a espada e não a paz. No Diálogo de De Sade, um moribundo pede ao padre que abandone a religião, porque a única coisa que ela fez foi inspirar os homens a empunhar a espada. Encontros entre um sacerdote e um moribundo acontecem também em A Filha do Engano (La Hija del Engaño, 1951) e A Morte no Jardim. Em Nazarin (1959), uma moribunda rejeita as preces do padre, clamando apenas pela presença do amado.
“Na época em que esse tema vem à tona em O Discreto Charme, Buñuel já havia introduzido numerosas variações. (…) O padre foi promovido a Bispo e o moribundo reduzido a um assassino auto-confesso. Uma camponesa convoca o jardineiro-Bispo a um leito de morte. Antes de ele entrar na cabana onde o homem vive, a camponesa dispara no Bispo: ‘Eu não amo Jesus Cristo. Eu o odeio desde que era criança. Você quer saber por quê? Eu tenho de entregar dois sacos de cenoura. Quando eu voltar eu digo por quê?’ Seu comentário introduz uma nota sadiana que será confirmada pelo que segue. O moribundo confessa que envenenou os pais do Bispo quando era jardineiro deles. Sem muita reação aparente, o prelado lhe dá absolvição e então, com grande dignidade, acaba com ele com um rifle que está a mão. Numa imagem quase subliminar que dura apenas alguns segundos, vemos o morto com seu rosto ensangüentado. Ele parece um Cristo crucificado, e o horror da cena parece incorporar a aversão da camponesa a cristo. Nós nunca escutamos a explicação dela” (VIDAL, Agustín Sánchez. Op. Cit.: pp. 71-2)
Além da dobradinha padre-moribundo, outro tema favorito de Buñuel que ressurge em O Discreto Charme é o Ministro do Interior. Em A Idade do Ouro, o casal desfruta de um encontro erótico no jardim (uma cena que também encontramos em O Discreto Charme) quando é interrompido pela chamada telefônica do Ministro do Interior, que acaba cometendo suicídio (com um tiro) e “cai” no teto. Em O Discreto Charme, um Ministro do Interior intervém, também via telefone, para que sejam soltos seus três amigos (incluindo o embaixador de Miranda) presos por posse de narcóticos. Esta cena envolve o sonho sobre o sargento de polícia ensangüentado e explicita o duplo sentido do título de “Ministro do Interior”: um oficial que garante o controle social externo e o superego individual que impõe controle. O chefe de polícia pede explicações ao ministro, mas não as escutamos, pois serão encobertas pelo ruído de um avião. O mesmo acontece quando o chefe comunica a informação ao sargento, desta vez encoberta pelo ruído de máquinas de escrever. O episódio está ligado a uma memória de Buñuel, que estava na Embaixada da Espanha em Paris durante a Guerra Civil espanhola quando o chefe de polícia socialista libertou um terrorista de direito por “razões de Estado”.
“O tema culmina em O Fantasma da Liberdade, onde dois diferentes atores interpretam o mesmo personagem, o chefe de polícia. Porém em filmes anteriores há numerosos policiais, chefes de polícia ou Ministros do Interior atuando de forma similar. Geralmente em conjunção com a Igreja ou o exército, como na inauguração em A Idade do Ouro, o casamento em Ensaio de Um Crime, as relações do Chefe Fasaro em Assim é Aurora (Cela S’appelle Aurora, 1956) e o dilema moral enfrentado pelo reformador Vázquez em A Morte no Jardim” (Idem: p. 76n 20)
O sonho sobre o sargento de polícia foi inspirado na freira ensangüentada de The Monk, texto de G. Lewis em 1794, que foi saudado por De Sade. Vidal afirma que Buñuel desenvolverá o tema ao misturar fantasmas ensangüentados (como o pai em O Discreto Charme) com imagens de Rotten Bishop (Finis Gloriae Mundi [?], 1670-2, do pintor barroco espanhol Valdes Leal), que inspirariam os cadáveres de cardeais em A Idade do Ouro, a tumba do Cardeal Tavera em Tristana e os restos de Carranza, o Arcebispo de Toledo, exumados e queimados em A Via Láctea. Vidal acredita que essa iconografia da velha Espanha fica aquém da marca quando se trata de transmitir o horror e violência dos últimos filmes de Buñuel. Como a execução do Papa em A Via Láctea ou o anúncio nos auto-falantes em Esse Obscuro Objeto do Desejo reportando as condições do bispo de Sienna, Monsenhor Fiessole, em coma por conta de uma tentativa de assassinato. Ou ainda, como o roteiro não filmado de Swan Song, onde o Arcebispo Soldevilla prega contra o terrorismo, o que provoca uma reação e ele acaba assassinado. Seu fantasma ensangüentado vai aparecer para a terrorista que está presa. Soldeville, na verdade, representa o Cardeal Juan Soldevilla y Romero (1843-1923), assassinado em Zaragoça por anarquistas. Buñuel comentou que o Cardeal era odiado por todos. No dia da morte dele, Buñuel estava na Residencia de Estudiantes, e todos beberam pela danação da alma do religioso.
“O Discreto Charme da Burguesia contém muitos outros elementos da herança cultural que nutre Buñuel, incluindo a tradição espanhola, seu surrealismo militante e sua vida pessoal. O filme inclui alguns de seus sonhos mais persistentes e até sua receita de Martíni seco. Até mesmo o ‘discreto’ do título aponta para um dos autores favoritos de Buñuel, o jesuíta aragonês Balthasar Gracián, que desenvolveu um sistema ético e pragmático muito pessoal em El Discreto (1646). O Discreto Charme mostra, também, a necessidade de recapitular e revisar alguns dos mais importantes episódios da aventura surrealista num tempo em que seus postulados se tornaram história, comida para museus e celebrações oficiais” (Ibidem: p. 76)
* Roberto Acioli de Oliveira é graduado em Ciências Sociais – 1989, Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado e Doutorado em Comunicação e Cultura – 1994 e 2002, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além da revista RUA, também é colaborador da revista dEsEnrEdoS e mantém três blogs sobre cinema e corpo: Corpo e Sociedade, Cinema Europeu e Cinema Italiano.
Referências Bibliográficas
BOARINI, Vittorio; KEZICH, Tullio (eds.). Federico Fellini. The Book of Dreams. New York: Rizzoli International Publications, 2008.
BUÑUEL, Luis. Meu Último Suspiro. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009.
NOGUEIRA, Miriam. Buñuel e Fellini: Um Paralelo Possível. In: CAÑIZAL, Eduardo Peñuela (org.). Um Jato na Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.
TAVARES, Bráulio. O Anjo Exterminador. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
TESSON, Charles. Luis Buñuel. Paris: Éditions de l’Étoile/Cahiers du Cinema, 1995.
VIDAL, Agustín Sánchez. A Cultural Background to The Discreet Charm of Bourgeoisie. In: KINDER, Marsha (Ed.). Luis Buñuel The Discreet Charm of Bourgeoisie. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.