Um certo diretor nipônico
Nos anos 50 o Japão estava se recuperando das conseqüências da Segunda Guerra Mundial, onde a ocupação norte-americana, com suas imposições de país vitorioso, havia reduzido a produção de filmes japoneses em 25%, proibindo produções com temas que aludissem às tradições ancestrais, artes marciais e ideais marxistas. Neste período o mercado cinematográfico japonês possuía “Cerca de 2 mil salas de cinema [que] estavam em funcionamento no país e quatro grandes estúdios dividiam a maior parte da produção e distribuição” (HANDA, 1999). Os anos 50 trouxeram uma nova forma de se fazer cinema para os japoneses. Assim, influenciada pelo cinema hollywoodiano, se iniciava o que ficou conhecido como a era de ouro do cinema japonês. Em “1951 foi o ano em que o ocidente “descobriu” o cinema japonês através de Rashomon (1950), dirigido por Akira Kurosawa” (Nanda, 1999).
Kurosawa, um japonês alto, com seu 1,84 metros, um tipo incomum para o seu próprio país, nasceu no ano de 1910, nos subúrbios de Tóquio e ingressou na área cinematográfica após ver um anúncio em um jornal de um teste para assistente de direção. Em sua carreira totalizou vinte e quatro filmes dirigidos. “Porém seu sonho irrealizado foi dirigir uma versão de Godzilla, o monstro-símbolo do Japão, mas seu projeto não recebeu nenhum iene sequer de financiamento” (CABRAL, 2009).
A partir da década de 80, assistiu-se a uma grande evolução da sétima arte no continente asiático. Novos realizadores surgiram, assim como novas ideias e novas abordagens à realização foram postas em prática. Cineastas como Yasujiro Ozu e Kenji Mizogushi mostravam uma palhinha do que o cinema asiático poderia oferecer. Porém foi apenas depois de Rashmon abocanhar o Leão de Ouro que os olhares ocidentais passaram a respeitar o oriente.
Entretanto, Kurosawa não ganhou nenhum prêmio da Academia Japonesa de Cinema, pois para eles “filme de samurais são aqueles de cineastas pouco conhecidos por aqui [no Brasil] e que passam na Sessão da Tarde de lá e na TV de Quentin Tarantino” (CABRAL, 2009).
Uma pintura, sim. Os trabalhos do diretor nipônico podem ser considerados como grandes pinturas, pois ele inicialmente tentou ser pintor. Após se formar no ginásio, frequentou o Centro de Pesquisas de Arte Proletária. A investida pictorial não funcionou, devido à falta de dinheiro, mas suas características artísticas o acompanharam durante toda a sua trajetória no cinema, onde ele pintava quadros como storyboards[i] de seus filmes.
Por começar a produzir em larga escala, sempre mirando o ocidente, Kurosawa foi criticado por ocidentalizar o modo de produção japonês. Tal crítica não encontra eco, pois o diretor sempre declarou que se deveria valorizar o patrimônio cultural do seu país. Isso fica evidente conforme a análise da película, que veremos abaixo.
Um filme e sete samurais
Virando o mundo de cabeça para baixo com ele mesmo servindo de referência na reinvenção do western, Kurosawa nos apresenta Os sete samurais (1954). Um filme sobre honra – a maior tradição dos samurais – aspecto este que ficou bem conhecido pela população ocidental e depois popularizado nas telas por Tom Cruise, mas voltemos ao foco oriental.
O filme torna-se universal – uma das grandes características das obras do diretor -, eis que assimila características que são rapidamente digeríveis por nós ocidentais, com um enredo envolvente e denso, cenas de batalha exuberantes, onde personagens são complexos e a fotografia é magnífica, como uma pintura.
Com um roteiro muito bem elaborado pelo trio Shinobu Hashimoto, Hideo Oguni e o próprio Kurosawa, Os sete samurais mostra um Japão tão belo como nunca havia sido visto antes no cinema. Seus personagens são memoráveis e o modo como o realizador nos conta sua história, revela o grande cineasta que era. Talvez a maior virtude do filme seja que ele parece crescer na tela à medida que vemos o desenrolar dos acontecimentos.
Seu enredo acontece no século XVI, durante a era Sengoku, quando os poderosos samurais de outrora estavam com os dias contados, pois eram agora desprezados pelos seus aristocráticos senhores. Ao ser contratado por camponeses, que tem sua vila atacada por saqueadores, Kambei, um guerreiro veterano e sem dinheiro, reuni um grupo de samurais para ajudá-lo, são eles os samurais do título: Katsushiro, seu novo discípulo; Goro Katayama, um velho amigo; Kutsushiro, o samurai gordinho e feliz; Riohashi Hayoshida, o lenhador; O Velho Samurai, o qual o nome não é mencionado e Kikuchiyo, o energético e destemido filho de lavrador. Os saqueadores chegam e após algumas batalhas os vilões são derrotados no final, o bem triunfa sobre o mal, mas só três samurais sobrevivem. Seus companheiros contemplam os seus túmulos enquanto os aldeões plantam arroz para a próxima estação e a história da vida segue seu curso.
Quando foi lançado pela primeira vez nos Estados Unidos e na Europa, o filme possuía apenas 141 minutos, mas com o tempo foram sendo geradas novas versões e com isso houve o surgimento de variadas versões, cada uma com tempos diferentes: a versão internacional tem de 207 min. a 160 min.; a Argentina 163 min.; a Sueca 202 min.; a versão Inglesa tem 150 min.; só a norte-americana possuí três versões a original de 141 min., a re-lançada de 203 min. e a restaurada de 207 min.
O filme recebeu duas indicações ao Oscar nas categorias melhor direção de arte e melhor figurino. A Academia Britânica indicou-o aos prêmios de melhor filme e de melhor ator estrangeiro para Toshirô Mifune e Takashi Shimura – por seus personagens Kikuschiyo e Kambei, respectivamente. O Festival de Veneza o indicou ao Leão de Ouro.
Interessante notar que a universalidade de Kurosawa já que este filme foi refilmado e transformado no western Sete homens e um destino (1960). “Os samurais viraram caubóis” (CABRAL, 2009) e outros filmes que influenciaram grandes diretores mundiais como Sérgio Leone que transformou Yojimbo – O guarda costas (1961) em Por um punhado de dólares (1964) e A fortaleza escondida (1958) influenciou George Lucas a criar o universo de Star Wars (1977).
Analisando a obra de Kurosawa
Em termos metodológicos, para podermos definir como funcionará a nossa análise desta obra faremos uma pequena introdução. Analisaremos o filme Os sete samurais da seguinte forma: Primeiro, faremos uma análise da história de como ela é contada e sua eficiência; e em segundo lugar traremos uma pequena apreciação das técnicas de filmagem usadas pelo diretor japonês. Explicações dadas, hora de trabalhar.
A história contada no filme é a velha história do bem contra o mal, mas como o diretor a conta é o que faz a diferença. Novamente repetimos que a narrativa contada no filme é clássica. Um vilarejo é atacado por bandidos (o mal), para se defender, os camponeses pedem ajuda para sete samurais (o bem). Apesar de simples, ela se torna complexa quando o diretor retrata a história na íntegra. Como assim? Simples, ele começa mostrando os bandidos cavalgando, depois mostra o pavor dos habitantes do vilarejo. Neste começo o diretor opta por construir a fábula sem mostrá-la, já que os lavradores contam, em uma discussão, o que está acontecendo. Depois que eles decidem buscar ajuda, vemos aí toda a história até o seu final, quando os bandidos são todos mortos e o povoado fica livre para sempre.
Cada detalhe é contado usando no momento certo as elipses de tempo. Akira Kurosawa conta todo drama dos habitantes do povoado em todos os detalhes que podem ser mostrados. Vemos que eles vão buscar ajuda; não conseguem na primeira escolha; eles se apavoram e querem desistir; decidem ir em frente; acham outro; este reluta; depois aceita; recruta outros samurais; temos o detalhamento de cada recrutamento, etc. Tudo é contado. Nada é omitido.
Pode-se também analisar que o diretor transforma uma história dramática/aventureira em uma comédia na hora certa, fazendo, assim, com que o espectador não perca a vontade de assistir o filme até o fim. Como? É muito simples, através de uma brilhante interpretação de Toshiro Mifune, interpretando Kikuchio, o energético e destemido samurai filho de lavrador. Seu personagem traz à história boas gargalhadas com suas tentativas de ser respeitado por seus colegas. Quem não ri da cena em que ele é testado por Kambei, quando entra na pousada (totalmente bêbado) e recebe um golpe de Katsushiro? É hilariante. Fora sua espada de tamanho desproporcional, ótimo!
Outro ponto forte do filme são as cenas de batalha dos lavradores e os samurais contra os bandidos, todas são espetaculares. São de uma veracidade incrível, se analisarmos o ano em que o filme foi feito. Fora que Kurosawa acerta em sua batalha final, misturando o máximo de dramaticidade possível, juntando mortes dos heróis, mortes dos últimos bandidos e uma chuva que causa um impacto no espectador, lavando os resíduos e lembranças da batalha que acabara de acontecer.
Por último, mas não menos importante faremos uma rápida análise de algumas técnicas de filmagens usadas por Kurosawa no filme. O diretor mostra ter um conhecimento bem alto das técnicas cinematográficas de filmagem, mais conhecida no meio por escala de planos, usando dos diversos tipos de enquadramentos, lembrando que em 1954, as técnicas ainda estavam a se desenvolver.
Outro fator importante nesta pequena análise é a da estrutura do filme. Aqui abordo um detalhe que considerei importante: Korosawa usa os efeitos fade out e fade in[ii] para fechar cada uma das grandes seqüências. Assim, o filme possuí cinco grandes seqüências, para classificá-las criamos uma nomenclatura não-oficial: Os problemas do vilarejo; A solução: a busca pelo samurai; A chegada ao vilarejo; Planos de defesa: a vida no vilarejo e As batalhas contra os bandidos. Claro está que o filme não possui apenas estas seqüências, mas estas seriam as principais.
Considerações finais
Para encerramento gostaria de colocar uma curiosidade levantada enquanto assistia ao filme novamente, que prova mais uma vez a influência do diretor para o cinema mundial. A cena da chegada dos samurais no povoado e a recepção “calorosa” que recebem (ninguém aparece para recebê-los) é mostrada em outros filmes que abordam temas similares (samurais e vilarejos) provando mais uma vez a universalidade do diretor.
No filme O último samurai (The Last Samurai, 2003), de Edward Zwick, o personagem de Tom Cruise, o Capitão Nathan Grahan, é preso por um grupo de samurais renegados. Quando Nathan sai em uma caminhada pelo povoado ninguém fala com ele. Como na cena de Kurosawa. Em Marcado Para Morrer (The Hunted, 1995), de J. F. Lawton, após a perseguição no trem, Rancine (Cristopher Lambert), empresário americano que sobrevive a ataque de ninjas no Japão, é levado por um samurai e sua esposa para uma ilha, onde fica o povoado dos dois. Lá ao sair para dar uma volta pelo povoado ninguém fala com ele.
Se pensarmos no título da reportagem da revista SET, que foi tomado emprestado para nomear este artigo, pode-se dizer que ele representa muito bem a obra de Kurosawa. Decompondo o título: A primeira palavra Japão país de nacionalidade do cineasta, tanto ilustrado pelo mesmo em seus filmes (estranho ele ser acusado de ocidentalizar o cinema nipônico); a segunda palavra pop, que vem de popular, ou seja, onde várias pessoas conhecem e falam sobre o mesmo assunto e a última movie traduzida para o português como filme, ou seja, a dedicação da vida do cineasta.
Apesar de sua morte em 1998, por causa de um derrame cerebral, o grande mestre japonês deixou à humanidade uma carreira que influenciou mais o cinema mundial do que o próprio cinema asiático. Diversas versões brotaram das próprias histórias do realizador mexendo e transformando para sempre a história do cinema. Se Akira Kurosawa foi um dos primeiros artistas que chamou atenção dos olhares do ocidente para o oriente, podemos dizer que ele será sempre lembrado como o japonês (Japão) mais conhecido na esfera global (pop) que dedicou a sua vida a dirigir filmes (movie).
REFERÊNCIAS
CABRAL, Paulo. Japão pop movie Revista SET, São Paulo, n. 266, p. 46-49. set. 2009.
HANDA, Francisco. História do cinema japonês. Disponível em: <http://www.culturajaponesa.com.br/htm/cinemajapones.html>. Acesso em 14/04/10.
MANOSSO, Radamés. Honra de miseráveis. Disponível em: <http://radames.manosso.nom.br/critica/index.php/256-filmes/criticas/86-os-sete-samurais>. Acesso em: 13/04/10.
SEM AUTOR, Os sete samurai / Shichinin no samurai (1954). Disponível em: <http://www.makingoff.org/forum/index.php?showtopic=12656>. Acesso em: 13/04/10.
VALDELLÓS, Ana María Sedeño. Cine japonés: Tradición y condicionantes creativos actuales. Una revisión histórica. Historia y Comunicación Social. Madrid, vol. 7, p. 253-266, 2002.
FILMES CITADOS
Kakushi toride no san akunin (A fortaleza escondida) – Akira Kurosawa, 1958.
Per Qualche Dollare in Più (Por um punhado de dólares) – Sergio Leone, 1964.
Rashômon (Rashomon) – Akira Kurosawa, 1950.
Shichinin no samurai (Os sete samurais) – Akira Kurosawa, 1954.
Star Wars (Star wars IV: uma nova esperança) – George Lucas, 1977.
The hunted (Marcado Para Morrer) – J. F. Lawton, 1995.
The Last Samurai (O último samurai) – Edward Zwick, 2003.
The magnificent seven (Sete homens e um destino) – John Sturges, 1960.
Yojimbo (Yojimbo – O guarda costas) – Akira Kurosawa, 1961.
Eduardo Pires Christofoli é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS, Graduado no Curso de Produção Audiovisual – Cinema e Vídeo da PUCRS, Produtor Audiovisual, Sócio-Diretor da Produtora Colateral Filmes.
[i] Storyboard’s são desenhos que mostram os enquadramentos e movimentos que serão feitas pela câmera. Servem para visualização do filme em seu processo de pré-produção. Podem ser realizados pelo próprio diretor, pelo diretor de arte, ou por um profissional contratado exclusivamente para esta função. Os primeiros storyboard’s eram feitos como desenhos em folhas de papel. Este processo continua sendo realizado, porém existem técnicas que desenvolveram storyboard’s animados, estes aperfeiçoados através da inserção do computador.
[ii] Técnicas de efeitos de trucagens da época, que hoje são realizados através dos computadores. O efeito consiste em sair do preto total, clareando a imagem (fade in) e ir escurecendo a imagem até o preto total.