A relação do Cinema com Melodrama e a Novel Inglesa

A linguagem cinematográfica, para sua formação, teve influências de outras artes que já existiam. Neste texto, pretendo indicar duas possibilidades e apontar razões que me permitem afirmar isso.

Depois do surgimento da fotografia, como um avanço tecnológico na capacidade de reprodução da realidade i, comparada com a pintura, o cinema foi visto como uma outra evolução, permitindo a imitação da realidade – mimese – quase que perfeita, segundo o discurso da época.

Porém, apenas o espetáculo gerado pela novidade das imagens em movimento não seria suficiente para entreter público por mais tempo, levando em conta também que gradualmente o tempo máximo das tomadas foi aumentando de cerca de 40 segundos ii para até 11 minutos iii. Para o entretenimento mais prolongado, seria necessário criar um jeito de contar algo interessante – uma história – através de uma nova forma de discurso: por meio de imagens e não de palavras, como já era feito.

Enquanto o cinema surgia como uma forma de entretenimento sem uma estrutura definida – visto que geralmente quando se buscava uma narrativa, o resultado eram apenas apresentações de teatro filmadas – a literatura como expressão artística e forma de discurso verbal já estava bem definida e já existiam crítica e teoria literária sendo estudadas.

Com o tempo houve algumas experimentações narrativas com as imagens em movimento, mas que não chegavam a ser um sistema sólido de sintaxe visual. Um realizador que formalizou essas experiências distintas em uma linguagem cinematográfica foi D. W. Griffith. Para isso podem-se definir duas influências principais: o melodrama e a literatura de Charles Dickens.

O melodrama tem origem na tragédia grega sofrendo influências da ópera por esta ser um estilo de

Música rica em pathos, que permite expressar, segundo o próprio Monteverdi iv, os sentimentos mais recônditos da alma, sintetizados em dor, raiva, doçura e resignação (OROZ, 1992, p. 17-8)

e do vaudeville v. Mas sendo este, um espetáculo profano vi, trágico e mantenedor de uma relação estreita com o público e a moral social vigente.

Griffith tinha um grupo de teatro que interpretava melodramas e grande parte da estrutura formal utilizada para a organização do espetáculo foi levada para o cinema. A forma exagerada de atuar, os clichês narrativos e valores sociais presentes em um, foram para o outro. Com algumas adaptações a maneira de discurso do melodrama se tornou presente no cinema.

No cinema, o melodrama encontra um lugar comum para algumas das articulações que o espetáculo de teatro não permitia: a rápida articulação de tempo-espaço, possibilidades de trucagem e a produção seriada aproveitando argumentos, cenários e atores para diferentes filmes. Outra relação está no star system, como o reconhecimento social de certas tipologias com características de caráter e psicológicas, que é uma forma como o melodrama cria e manipula seus arquétipos.

O cinema melodramático se tornou muito popular e junto com “O vaudeville teatral, (…) [que no cinema] transmuta-se na comédia (…) dividirá a cinematografia latino-americana entre ‘filmes para rir’ e ‘filmes para chorar'” (OROZ, 1992, p. 20). Influenciados pela moral dos países latinos e movimentando uma grande indústria cinematográfica, os filmes a atores ganharam destaque nacional muito forte, muitas vezes sobrepondo o sucesso de filmes de Hollywood através de um star system próprio.

A música também é um ponto comum entre melodrama e cinema, uma vez que existem hipóteses dizendo que o “uso da música para acompanhar filmes segue a tradição do melodrama” (CARRASCO, 1993, p. 17) sendo esta, pleonástica, por ser redundante em relação ao que se passava na tela (OROZ, 1992, p. 18).

A maneira de Charles Dickens vii escrever também foi colocada como influência sobre Griffith na formação da linguagem cinematográfica. O estilo de escrita descritivo e poético, com episódios semanais ou mensais publicados em folhetim, era rico em cenas viii, o que inspirou o realizador em explorar as possibilidades de enquadramentos da imagem da mesma forma como ele fazia com o discurso verbal, indo primeiro pelo geral depois focando em casos particulares, através de um desenvolvimento.

Ele ajudou também na implantação do romance como estilo e forma principal de prosa na Inglaterra. Desde o primeiro livro classificado como romance – Pamela (1740) de Samuel Richardson – a prosa inglesa foi se inclinando para o gênero, tendo neste autor um membro que expressava suas preocupações sociais em seus livros, como Oliver Twist (1837-8) e Tempos difíceis (1854), falando sobre a infância pobre e os problemas da Revolução Industrial.

A influência da literatura vai além disso, pois era comum no Primeiro Cinema e no começo do Cinema Sonoro, a filmagem de peças teatrais e a adaptação de novels ix do século XIX, romances estes, surgidos com o crédito de autores como C. Dickens. Tanto a escola cinematográfica clássica, quanto às escolas das vanguardas européias x dos anos 20, fizeram adaptações de obras literárias importantes, porém era incomum um estudo aprofundado das relações entre imagem e texto.

As adaptações de obras de uma linguagem para outra começaram a ser estudados a partir de ferramentas teóricas de campos da ciência que pouco falam sobre imagens e não levam em conta o processo, apenas o resultado final. Desconsiderar o processo de transformação da linguagem verbal para a visual implica que não existe referencial entre a parte símbolo xi que é a língua e a parte ícone xii que é a imagem, tornando improváveis as associações entre estes signos de natureza distinta.

Porém, se considerarmos o processo, é possível fazer algumas asserções sobre as possíveis associações entre a forma do texto e a forma da imagem, modulando as partes significantes, para gerar um significado comum. E tendo em vista que o processo de formação da linguagem cinematográfica está associado à literatura, paralelos entre essas linguagens são possíveis. Ainda mais se considerarmos o que Jean Epstein afirma sobre o cinema e as letras modernas caminharem em uma estética de proximidade, em que “A sucessão de detalhes que, nos autores modernos, substitui o desenvolvimento e os close-ups de Griffith” (EPSTEIN, 2004, p. 270), se manifesta em ambas as poéticas.

i O discurso sobre a fotografia e cinema como imitação da realidade já foi revisto, uma vez que o enquadramento, aspectos técnicos da câmera e forma de revelação do filme interferem na imagem a ser obtida.

ii Tomadas dos irmãos Lumiére, como em A chegada do trem de 1895-6.

iii Tomadas do filme Festim Diabólico (1948) de Alfred Hitchcok.

iv Claudio Monteverdi (1567-1643), compositor italiano.

v Definido como “a comédia com canções intercaladas” (OROZ, 1992, p. 20). Espetáculo de variedades comum nos EUA do século XIX.

vi Realizado fora da igreja ou templo. Do latim Profanus: Pro diante de, fora de; Fanus templo, lugar sagrado

vii Charles Dickens (1812-1870), escritor inglês.

viii Assim como define Genette, cena é a parte de uma narrativa em que o tempo do discurso se assemelha com o tempo da história, produzindo um teórico grau zero de distorção, como o processo de captação.

ix Em inglês se traduz romance por novel.

x Impressionismo na França, Expressionismo na Alemanha e Surrealismo na Espanha.

xi O símbolo não guarda relação de semelhança com o que representa, sendo a associação parcialmente motivada.

xii Signo que guarda relação de semelhança com o que representa.

BIBLIOGRAFIA

OROZ, Silvia. Melodrama: o cinema de lágrimas da América Latina. 1ª ed. Rio de Janeiro: Funarte, 1992. 238 p.

THORNLEY, G. C. e ROBERTS, G. An Outline of English Literature. 2ª ed. 6ª reimp. China: Longman, 1996. 216p.

Henrique Dias é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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