Além de uma nação

Uma internacionalização econômica crescente define também uma maior troca de influências em aspectos culturais. Isso ocorre inclusive no cinema, trazendo a necessidade da criação de conceitos. Sendo um destes – autor transnacional – discutido por este breve panorama. Defini-lo é uma tarefa complicada pelas variações existentes envolvendo cada um dos termos. Então, selecionaram-se três diretores, de modo que se possa assim apontar possíveis semelhanças e diferenças no que se refere a esta questão, sendo eles: Walter Salles, Guillermo del Toro e Bernardo Bertolucci. Dentre os exemplos dados, o último é o que mais reflete o sentido definido neste ensaio, por isso receberá uma análise mais vasta.

Para a definição do termo neste ensaio, fez-se uma separação entre as idéias ligadas a cada um dos componentes do termo. Após isso, por discussões já feitas sobre estes conceitos, assume-se o significado de autor segundo os modelos da Nouvelle Vague, intimamente relacionados com literatura. Dessa perspectiva, se vê “o cineasta como um escritor, e o filme como um livro, mais precisamente como um romance” (BERNADET, 1994); indo à direção contrária do cinema-indústria, governado pelo produtor e pela lógica de consumo. Este modelo apóia novas experimentações e maior controle do diretor sobre a forma e o conteúdo apresentados. Acrescido a isso, foi escolhido o significado denotativo de transnacional: 1. Que ultrapassa os limites das fronteiras de um país. 2. Que envolve ou que é comum a vários países; formado por trans- como um prefixo que quer dizer “além de, através” e nacional como algo relativo a uma nação ou país; posteriormente problematizado na perspectiva do cinema por Cléber Eduardo, autor do texto Diretores Transnacionais Latino-Americanos (1985-2007), utilizado como referência para o ensaio.

Dentro do cinema de Walter Salles existem características marcantes que se repetem em suas obras, qualificando-o como autor. Dentre elas temos a busca pela identidade e o processo de amadurecimento. Isso revela uma ligação com as narrativas de estrada e road movies, em que os personagens ganham profundidade psicológica com a passagem do tempo e espaço. Pertencente a este estilo pode-se citar como exemplo, Central do Brasil (Brasil, 1998).

Os filmes que marcam a sua transnacionalidade são Terra Estrangeira (Portugal, 1999), que envolve questões de diferenciação dos indivíduos e marginalização, tanto de Portugal por parte do resto da Europa quanto do Brasil em relação ao mundo; e Diários de Motocicleta (Argentina, 2004), que explora a viagem de Ernesto Guevara e seu amigo pela América do Sul e o processo de conscientização deles sobre a pobreza latina. Além desses, também realizou Dark Water (EUA, 2005), que mesmo filmado fora do país não se enquadra na definição, pois não há uma troca de características e sim uma intensa absorção do modelo de produção da nação em que está.

Outro cineasta que podemos indicar por conter uma marca é Gillermo Del Toro, pois na maioria das narrativas de seus filmes sempre existe elementos grotescos e repugnantes, característicos dos filmes B. Desde o começo da carreira (e até hoje), o cineasta opta por alternar produções na Espanha, México e EUA sendo exemplos de produções americanas: Mimic (1997), Blade 2 (2002) e Hellboy (2004).

Em seus filmes espanhóis – A espinha do Diabo (2001) e O labirinto de Fauno (2006) – a Guerra Civil Espanhola serve como contexto histórico, revelando uma característica transnacional: a influência de elementos da nação onde se está produzindo/filmando adicionados aos traços estilísticos do diretor. Porém, em Del Toro, a agregação destes elementos em sua forma de representar não é tão presente como em Salles e Bertolucci, mostrando assim não desenvolver completamente a transnacionalidade, mesmo realizando filmes em diversos países. !boa mudança!

Bertolucci teve fortes influências do pai escritor, envolvendo-se com poesia e começando a trabalhar como assistente de direção de Pasolini, seguido de uma carreira de quase 50 anos. Suas características temáticas mais marcantes como autor incluem o uso de cores contrastantes, movimentos de câmeras sofisticados e talento no uso de espelhos e sombras. É recorrente a abordagem de assuntos que envolvam a visão política, a sexualidade escondida e uso de atitudes incomuns e personalidades oscilantes em seus personagens. A moral tanto geral como particular das pessoas não é fixa e certa, elas vão se delineando ao decorrer do filme, de acordo com as necessidades e interesses de cada um, mesmo que isso não fique claro.

Além dessas marcas facilmente visíveis, nos filmes de Bertolucci fica claro em uma análise um pouco mais profunda certos traços estilísticos sutis, como uma falta de pudicícia ao tratar dos corpos nus, uma violência não manifestada, um equilíbrio frágil do estado dos personagens, a representação simultânea do erótico e do idílico, eufemismo de questões polêmicas e utilização de culturas e hábitos específicos à época e contexto narrativo.

Dentro de sua filmografia, podemos inferir que alguns filmes foram mais relevantes que outros quando se tem como base a delimitação de obras transnacionais. Foram escolhidas, assim, algumas obras em que a problematização da nação, cultura, identidade e território é mais evidente.

Dentro das obras de Bertolucci existem outros filmes que abordam temas e culturas diferentes, moldando as características próprias do autor ao contexto diegético, como os exemplos com temática oriental: O Pequeno Buda (Itália, 1993), que narra o crescimento e iluminação do Príncipe Sidartha ao nível de Buda e a propagação de seus ensinamentos; e O Último Imperador (1987) representando a decadência da monarquia na China.

O Céu que nos protege

A mudança de ambiente de um casal americano (Porter e Katherine Moresby), como “viajantes” – aqueles que podem nem voltar – em oposição a um conhecido (George Turner) “turista” – aquele que pensa em voltar assim que chega – em direção ao norte da África em 1947 é representada imageticamente de forma bastante clara. Sendo, Nova York e a partida de navio, apresentados por um conjunto de materiais de arquivo em preto e branco. Já no continente africano a imagem ganha cores, com destaque para os tons de laranja e azul, reforçando a dualidade constante do filme (obra adaptada do livro autobiográfico de Paulo Bowles, The Sheltering Sky).

Através de uma deambulação pelos países francófonos, que parecem não apresentarem divisões políticas e sociais, o casal protagonista da trama faz novas descobertas sobre a sexualidade, a vida de casados e o amor entre eles, tendo o espaço geográfico como principal ponto e esse lugar sendo:

“o produto das relações humanas, entre homem e natureza, tecido por relações sociais que se realizam no plano do vivido, o que garante uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela história e cultura civilizadora produzindo a identidade.” (CARLOS, 1999, apud SOUSA, 2004)

Chegando ao limite da solidão em meio a uma enorme paisagem desértica, eles se confundem numa variedade de povos entrelaçados culturalmente.

As relações dos personagens estrangeiros com os habitantes é pacífica enquanto permanece o sentimento de exotismo e co-dominação entre eles, mas há também a presença do eurocentrismo dominante na figura dos ingleses que repudiam a cultura nativa do local e não se misturam. Quando ocorre alguma cisão entre este modelo já estabelecido, como no momento em que Port recupera sua carteira ou a imposição da sexualidade feminina de Kit sobre o nativo, uma desarmonia dessas tensões provoca um momentâneo domínio de uma das partes.

Nota-se uma constante oposição entre duas forças, representadas de diversas maneiras, como: masculino e feminino, estrangeiro e nativo, viajante e turista, vazio e plenitude e as cores azul e os tons de laranja. Representando estas uma dicotomia entre o céu e a terra, os olhos azuis e a pele queimada, os tecidos das roupas e as pedras das construções, a noite e o dia. Esses exemplos de dualidade são um contraponto a transculturação evidente entre os povos da região e pelos próprios estrangeiros, que se entrelaçam totalmente com a nova cultura, numa terra sem fronteiras de comunidades imaginadas (FRANÇA, 2003).

Os Sonhadores

A discussão em torno do contexto do Maio de 68 é objeto desse filme, que tem como ponto de partida a viagem do americano (Mathew) à França, onde pretende estudar.  Mathew se vê em meio às lutas estudantis e ao cinema vanguardista da época, com grande representatividade no país. Nesse meio, aproxima-se de um casal de irmãos franceses (Isabelle e Theo) que mantém uma relação muito intensa.

Através do olhar estrangeiro sobre esse novo mundo que o estudante conhece, o filme vai se construindo. Representa assim uma transnacionalidade, no sentido que não é por meio de uma visão dominante que ocorre a interação e sim pela troca de valores culturais ente os dois grupos representados, o americano e os franceses. Isso se mantém de forma saudável enquanto a relação de troca existe, porém, ao desviar do modelo com a tentativa de Mathew de desconstruir esse mundo ideal dos irmãos e separa-los, chega-se a um rompimento com essa cultura invasiva.

Além das questões políticas envolvendo os protestos de estudantes, a discussão de novas estéticas no cinema também está presente. Vários trechos de filmes, tanto franceses quanto americanos, ilustram paralelamente a trama. Não indo totalmente contra o cinema de Hollywood, os membros da Nouvelle Vague apreciavam os diretores que possuíam uma marca, pois era algo que buscavam. Isso indica uma interação entre as duas culturas presente na narrativa, mesmo que de forma indireta.

Ficam evidentes as marcas do diretor, como a preocupação com a direção de arte, a fotografia minuciosa e a instabilidade dos personagens; unidas ao contexto, sem deixar de considerar o local e a identidade nacional presente quando se retrata uma nação. A existência de uma matriz aplicada permite qualificá-lo como um filme de autor e como há elementos relacionados pertencentes a diferentes nações pode-se dizer que é um exemplo de obra transnacional.

Considerações finais

Existem diversas nuances que podem ser incluídas no que diz respeito a classificar um autor transnacional. Avaliar a matriz para definir um autor muitas vezes pode não trazer resultados, uma vez que as características de tal diretor podem ser sutis, serem amenizadas no processo de produção ou não estarem incluídas em todos os filmes. Assim como dizer o que não é transnacional dentro de um mundo globalizado em que as influências ocorrem de forma constante e muitas vezes imperceptível inicialmente.

Para se classificar é preciso determinar um modelo. Essa determinação acaba por se  complicar quando se percebe o quanto há influências subjetivas na classificação de autor, e é claro, de um autor nacional. É preciso, obviamente, um estudo mais detalhado, podendo-se, porém, fazer algumas asserções sobre isso de forma mais geral, o qual foi a proposta deste ensaio.

BIBLIOGRAFIA

BERNARDET, Jean-Claude. França In: O autor no Cinema: a política dos autores: França, Brasil anos 50 e 60. São Paulo: Editora Brasiliense/Edusp, 1994. p. 325-326.

EDUARDO, Cléber. Diretores Transnacionais Latino-Americanos (1985-2007) In: BAPTISTA, Mauro e MASCARELLO, Fernando (Org.). Cinema Mundial Contemporâneo. Campinas: Papirus, 2008. 352 p.

FRANÇA, Andréa. Cinema de Terras e Fronteiras In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História de Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006. p. 395-412.

FURTADO, Fernando F. Vida e Morte do Autor de Cinema. Disponível em: http://www.ipv.pt/forumedia/5/19.htm. Data de acesso: 15/06/2009 às 16:09.

SOUSA, M.G. Viajante/Turista – Categorias em discussão com base no filme “O céu que nos protege”, de Bernardo Bertolucci. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/037/37esousa.htm. Data de acesso: 14/06/2009 às 14:21.

SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Do eurocentrsimo ao policentrismo In: Crítica da Imagem Eurocêntrica. Cosac Naify, 2006. p. 37-88.

FILMOGRAFIA

O CÉU que nos protege. Direção de Bernard Bertolucci. Reino Unido e Itália: Warner Bros. Pictures e DVD Stars, 1990. 1 DVD (138 min.), sonoro, preto e branco, legendado. Original inglês: The Sheltering Sky.

OS SONHADORES. Direção de Bernardo Bertolucci. Reino Unido, França e Itália: Recorded Picture Company e Fox Vídeo, 2003. 1 DVD (115 min.), sonoro, colorido, legendado. Original inglês: The Dreamers.

TEN Minutes Older: The Cello. Direção de Bernardo Bertolucci et al. Reino Unido, Alemanha e França: Odissey Films e Panorama, 2002. 1 DVD (102 min.), sonoro, colorido, legendado.

Henrique Dias Soares de Barros é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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