Televisão digital e o conteúdo interativo

INTRODUÇÃO:

A televisão está se transformando, e essas mudanças – para o bem dos espectadores – não estão limitadas a implementos de qualidade de imagem e som em alta definição. Elas influenciam a própria concepção de um programa televisivo e causam impacto em todo o processo de produção, exibição e difusão de conteúdos.

As transmissões digitais terrestres – no país desde dezembro do ano passado – criaram demanda para conteúdos inovadores, que explorem as potencialidades e particularidades desse novo meio e enriqueçam e complementem a experiência de assistir televisão. A principal mudança está nos novos potenciais interativos: espectadores e produtores de programas ou serviços podem ter um diálogo participativo.

Para o midiólogo Mark Gawlinski (2003) a interatividade na televisão pode ser definida como qualquer diálogo que transforma uma experiência passiva em outra caracterizada pelas tomadas de decisões – um telefonema, um SMS, escrever e enviar uma carta para a emissora, por exemplo, são formas de interatividade.

A propriedade da televisão de admitir intervenção ativa é potencializada com o sinal digital – com a possibilidade de interagir no programa por meio do controle remoto, como escolher o final de um documentário; com aplicativos para ver, por exemplo, a escalação de um time de futebol, a sinopse de um filme ou a cotação do dólar; a capacidade de navegar na internet e receber um e-mail; a gravação, pausa e filtragem de programas. Todos esses tipos de interatividade são possíveis na TV, mas variam de acordo com cada canal, programa e condições tecnológicas, dependendo das especificações do sistema, da complexidade dos dispositivos reprodutores e da robustez do canal de retorno.

As diferentes plataformas de transmissões revela esse caráter complexo que acaba influenciando os processos de produção e a experiência televisiva. As transmissões podem ser feita por satélites, antenas de rádio-difusão, redes de cabos e linhas DSL. Cada plataforma trabalha de acordo com as especificações de um dado sistema, dificultando a padronização do conteúdo interativo.

No Brasil a televisão terrestre, com o sinal transmitido por torres de rádio difusão, está presente em mais de 90% dos lares. Desde o dia 2 de dezembro de 2007, os moradores da região metropolitana de São Paulo já têm disponível a transmissão terrestre em sinal digital. De acordo com a Anatel, em 2016 a transmissão analógica deverá sair do ar, dando lugar ao Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T) em milhões de lares. Para os produtores de conteúdo essa padronização representa um enorme potencial: eles agora podem se concentrar nas especificidades do sistema brasileiro, bem como aprimorar suas ferramentas de trabalho com a possibilidade de criar modelos reprodutíveis em massa e melhorar a programação interativa.

Esses novos paradigmas, resultantes dos adventos tecnológicos e de uma nova cultura de acesso e produção imposta pela internet, está influenciando a concepção do conteúdo de uma mídia cujo alcance, penetração e abrangência a classificam como principal fonte de informação e entretenimento dos brasileiros.

SBTVD-T:

No Brasil a rede de satélite da SKY já disponibiliza a TV digital desde 1996. No entanto, apenas no ano passado iniciou-se as nossas transmissões por rádio-difusão. O atraso teve suas vantagens, já que o sistema brasileiro, inspirado nos modelos estrangeiros, foi adaptado de acordo com as nossas características nacionais e com uma tecnologia atualizada.

O SBTVD-T é o primeiro a adotar o formato de codificação e compressão MPEG-4, que torna os sinais mais compactos, mais fáceis de transmitir e que possibilita a inserção de elementos interativos que requerem sincronização entre vídeo e multimídia.

Devido à compactação proporcionada, também é possível estabelecer o recurso de multiprogramação, podendo-se criar novos canais, já que as emissoras trabalham com sinais menores e mais velozes. Assim, uma mesma emissora pode transmitir um sinal em HDTV ou até quatro sinais em SDTV.

Além disso, os engenheiros brasileiros também agregaram outras tecnologias, tornando o sistema compatível com o protocolo IP (possibilitando conexão com a internet) e com os padrões de tecnologia móvel, como o GPRS e GSM, trazendo a mobilidade e portabilidade.

Os aparelhos móveis capazes de receber a televisão digital terrestre ainda são caros no Brasil. No entanto, os avanços tecnológicos e a atuação mercadológica das operadoras e fabricantes resultarão na queda dos preços e na maior funcionalidade e versatilidade dos aparelhos. Com preços mais acessíveis em um país com 103 milhões de usuários de dispositivos como celulares e PDAs (Anatel, 2007), a televisão digital móvel também encontrará demanda e justificativas para o desenvolvimento de conteúdos interativos.

No entanto, o maior diferencial do sistema brasileiro está justamente na interatividade possibilitada pelo Ginga – middleware instalado nos set-top-boxes: aparelho que se conecta aos televisores e transforma o sinal digital das transmissões terrestres em conteúdo (vídeo, áudio, jogos, aplicativos, páginas da internet, etc.) no formato que possa ser apresentado por uma tela.

O middleware pode ser comparado com um browser de internet, assim como o Mozilla Firefox que lê e reproduz a linguagem HTML, o Ginga é responsável por ler e reproduzir linguagens baseadas em XML.

Para ser mais preciso, o Ginga é composto por duas partes interligadas, que permitem o desenvolvimento de aplicações com paradigmas diferentes de programação: a parte declarativa – o NCL (do inglês Nested Content Language) e a parte procedural – o Ginga-J (baseada na linguagem Java).

Conteúdos para a televisão digital interativa são geralmente concebidos com o NCL devido às suas propriedades de código: baseado em XML, fácil aprendizagem, específico para interatividade com sincronismo espaço-temporal entre objetos de mídia, suporte a múltiplos dispositivos – como celulares e laptops – suporte a linguagem Lua (usada, por exemplo, em jogos da LucasArts).

O Ginga foi desenvolvido por grupos de pesquisa ligados à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – Rio) e à Universidade Federal da Paraíba (UFPB). No site oficial do grupo é possível encontrar tutoriais e ferramentas para a criação e simulação dos primeiros programas interativos.

O CONTEÚDO INTERATIVO:

Não se deve “confundir mídia e forma narrativa veiculada nesta mídia” (RAMOS, 2001, p.37). O cinema gravado em película pode ser veiculado pela mídia televisiva, assim como hoje é possível assistir seriados de televisão na internet. A tecnologia ampliou as barreiras de exibição, afetando os meios de produção e o mercado.

A grave dos roteiristas ocorrida em novembro do ano passado em Hollywood é um exemplo: quando os estúdios começaram a ganhar muito dinheiro com a exibição de seriados na internet e com a venda de DVDs, os roteiristas aclamaram por uma parcela desse lucro. Antes, a indústria era mantida pela cobrança de mensalidades ou pela publicidade; agora, ganha dinheiro com a venda de discos ópticos, com a compra de programas online e com a criação de comunidades na rede.

Ao mesmo tempo em que as grandes emissoras migram para a internet, outras grandes empresas como a Microsoft, o Google e o Yahoo! lançam seus próprios mercados de vídeo, disponibilizando aos usuários a capacidade de exibirem conteúdos próprios. Outros portais online garantem para cada usuário a possibilidade de criar seu próprio canal de televisão na rede: fiztv, moogulus, joost, newteevee, etc.

Câmeras, softwares de edição e outras tecnologias de pós-produção mais acessíveis, somadas às capacidades de veiculação em uma mídia de abrangência global, resultam em um espaço no qual o produtor e o espectador se unem, compartilhando experiências, opiniões e conteúdos.

No entanto, e este é o ponto pertinente, as emissoras possuem uma grande vantagem em relação à maioria do conteúdo encontrando, por exemplo, no Google Vídeo: o compromisso de profissionais talentosos.

As emissoras e produtoras mantêm seu padrão de qualidade e identidade, que muitas vezes superam a quantidade e diversidade, com a contratação de profissionais capacitados: roteiristas, produtores, diretores, fotógrafos, editores, atores, etc.; e agora com a televisão digital interativa: engenheiros, programadores, designers de interface, desenvolvedores de aplicativos, etc.

Serão esses os profissionais que irão somar as capacidades tecnológicas com seus potenciais criativos, criando uma mídia que é diferente da internet, que é diferente do vídeo-game e que tem como principal característica a interatividade com objetos multimídia relacionados e sincronizados ao conteúdo televisivo. A internet impõe que as mídias tradicionais se adaptem a um meio que funde espectadores/usuários com produtores/criadores e essa nova dinâmica está influenciando a maneira como os profissionais da televisão estão concebendo seus conteúdos.

A tendência premeditada por Negroponte em 2000 e que hoje parece ser ainda mais evidente é que a banda larga unirá a televisão ao computador, criando “uma nova mídia que engloba ferramentas de várias outras, entre elas a TV como conhecemos hoje e a navegabilidade da internet” (MONTEZ; BECKER, 2005, p. 39).

ENHANCED TV:

Nos programas interativos avaliados percebeu-se uma grande variedade de tipos de interatividade: relacionada ou não ao áudio e vídeo principal de um programa; disponibilizadas pela emissora, produtora, ou distribuidora do sinal; que necessita de um set-top-box com conexão com a internet; que necessita de um disco-rígido para armazenamento; etc.

Os programas que mais chamaram a atenção foram os da enhanced television, ou televisão avançada, que têm como principal característica a adição de camadas de textos e gráficos enquanto o vídeo e áudio principal estão sendo exibidos.

Algumas iniciativas usaram essa capacidade técnica de sincronização entre vídeo e multimídia para melhorar e enriquecer o atual programa televisivo. Um exemplo é a aplicação de futebol da emissora Bandeirantes: o espectador, a qualquer momento da partida, poderá acionar, por meio de seu controle remoto, uma janela que exibirá informações relevantes sobre a partida exibida – escalação, placar, posição do time na tabela do campeonato, número de faltas, etc. A janela é muito semelhante àquelas dos jogos de futebol de vídeo-game, com algumas mudanças de design e navegação adaptados à experiência televisiva.

A enhanced television é ainda mais instigante quando o roteiro do programa é feito em função da interatividade. O Life with The Mammals, da BBC, inova com a criação de um documentário interativo com elementos que o aproximam da estética do jogo. Nele, o espectador assiste um documentário sobre a vida selvagem dos mamíferos e, em alguns pontos-chave, deverá responder as questões de múltipla escolha dadas pelo apresentador. Cada resposta resulta em uma seqüência de vídeo, afirmando ou negando a escolha, e em seguida avançando com a narrativa.

Outra característica dos programas de enhanced television é a possibilidade de escolher diferentes caminhos dentro de um mesmo programa, influenciando na exibição de acordo com o interesse pessoal. Telejornais interativos já transformam o controle remoto em um switcher, no qual o espectador pode escolher que tipo de notícia ele quer assistir. Outro exemplo é o documentário da BBC, “Pyramid Challenge – The Book of Buried Pearls. Nele, o espectador pode escolher quais caminhos o personagem irá seguir na sua jornada, fazendo de cada exibição uma experiência diferente.

Esse tipo de interatividade na televisão funciona porque a ênfase está na qualidade da informação passada pelo conteúdo audiovisual. A possibilidade de escolha é mais uma forma de atrair os espectadores para o que está sendo exibido e, assim, acaba estimulando o surgimento de formas de pensamento e análise participativa, que desafiam a mente a compreender um ambiente e suas regras. O conteúdo, no entanto, ainda é diferente dos jogos que mesclam interatividade e vídeo, como o “Gabriel Knight -The Beast Within”, no qual os vídeos são elementos de transição colocados em segundo plano.

Mas talvez o grande êxito da televisão interativa seja o diálogo entre diversas mídias, recurso já bem trabalhado na era analógica, mas com capacidades ainda maiores e mais interessantes com o sinal digital. Esse cruzamento entre mídias, o chamado cross-media, “ocorre quando o circuito da informação convida a audiência a cruzar de uma mídia para outra, transformando a comunicação unidirecional – do veículo para o público – em multidimensional, onde público e veículo se retroalimentam”. (SPYER, 2007, p.197).

A vantagem desse tipo de conteúdo é utilizar as particularidades de cada mídia para enriquecer a experiência televisiva antes, durante ou após um programa de TV. A internet com a contribuição coletiva e informação aparentemente infinita; o computador com aplicativos e jogos; o celular com a mobilidade e capacidade de mandar e receber mensagens; etc. Como exemplo, há o drama participativo “Fat Cow Motel, que envolve o espectador de um seriado televisivo em um mistério que se desenvolve e resolve em diferentes plataformas. O roteiro do seriado leva o espectador a procurar pistas e supor hipóteses durante a exibição do programa de TV, para depois confrontá-las diante da internet e celular, criando um diálogo entre diferentes plataformas e usuários.

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO:

Durante um ano de pesquisas, avaliando programas, aprendendo sobre a tecnologia e escutando profissionais ficou evidente que o futuro da TV digital interativa no Brasil é incerto. Enquanto alguns apresentavam propostas de interatividade simples, de mão única, mas realistas, outros tratavam o assunto com pessimismo, considerando que a interatividade de mão-dupla, com os espectadores atuando com a emissora, com o programa ou com outros espectadores, seria algo improvável na TV brasileira. As justificativas seriam a falta de infra-estrutura e o comodismo de empresas acostumadas a um modelo tradicional já bastante lucrativo.

“Pode-se melhorar o som e a imagem, mas a programação vai ser a mesma” (José Bonifácio de Oliveira, diretor de vários programas da Rede Globo, 2006, Maximídia)

Uma alternativa para criação e veiculação de conteúdos inovadores para a televisão seria o espaço universitário. Em 2008, a Unesp de Bauru recebeu a primeira concessão para transmissão de televisão digital, e em alguns anos outras instituições públicas também terão a estrutura necessária. Além disso, a universidade é o ambiente ideal para a pesquisa e desenvolvimento – tanto de tecnologia como de criações audiovisuais. O caráter interdisciplinar de uma iniciativa que envolva engenheiros, pedagogos, artistas, programadores, criadores audiovisuais e o compromisso com a comunidade poderá resultar em experiências interessantes, como o desenvolvimento de programas educativos interativos.

No entanto, a estrutura dentro da universidade é apenas uma parte do processo. Para complementar a experiência é preciso dar ao espectador condições que possibilitem a utilização de todo o potencial da televisão digital. É necessário, então, estrutura, investimento, políticas públicas que disponibilizem acesso a uma rede de banda larga (criando um robusto canal de retorno) e set-top-boxes a preços acessíveis e com configurações arrojadas, como um disco-rígido interno e conexão com a internet.

Felipe Jannuzzi é graduando em Imagem e Som pela UFSCar. Desenvolveu a pesquisa de iniciação científica “CONTEÚDO INTERATIVO PARA TELEVISÃO DIGITAL: experimento piloto de programa educativo”, sob a orientação da Profa. Yvonne P. Mascarenhas no Instituto de Estudos Avançados da USP São Carlos.

REFERÊNCIAS:

ANDERSON, Cris. A Cauda Longa. Rio de Janeiro, Campus, 2006

CANNITO, Newton. Potenciais da linguagem da TV Digital. Cadernos de Televisão, Rio de Janeiro, julho 2007.

GAWLINSKI, Mark. Interactive Television Production. Oxford, Focal Press, 2003

GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para Novas Mídias. São Paulo, Editora SENAC, 2003

JOHNSON, Steven. Surpreendente! A televisão e o videogame nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro, Campus, 2005

MONTEZ, Carlos e BECKER, Valdecir. TV digital interativa: conceitos, desafios e perspectivas para o Brasil. Florianópolis. Editora da UFSC, 2005.

NEGROPONTE, Nicholas. A Vida Digital. São Paulo. Cia das Letras, 1995.
SPYER, Juliano. Conectado. O que a internet fez com você e o que você pode fazer com ela. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

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