Tarnation

Tarnation é um filme que apresenta imagens captadas desde quando o realizador, Jonathan Caoette, tinha 11 anos, na maioria por ele mesmo, ao todo 160 horas de imagens de várias materialidades (Super-8, Betamax, VHS, Hi-8 e Mini-DV) junto a álbuns de fotografias, gravações de atendedores de chamadas e diários gravados em cassetes áudio, tudo com grande teor documental, doméstico e caseiro, onde os aspectos da vida pessoal e privada foram captados. O filme, no entanto, se inicia em 2003, quando o realizador tem conhecimento de uma overdose da mãe e regressa a casa enfrentando os fantasmas do passado, incluindo um legado de doença mental familiar, abusos e negligência. Mergulhado em arquivos de juventude, observamos Caouette em meio a uma busca de sua própria identidade, enquanto a mãe, cuja personalidade foi gravemente alterada por um tratamento de electrochoques, passa a maior parte do tempo em hospitais psiquiátricos. E é através da captação de vários materiais audiovisuais, dentre vários suportes, que Caouette tenta exorcizar os seus traumas.

Todo esse material foi digitalizado e editado pelo próprio realizador através de um processo orgânico pelo qual ele revia seu arquivo e editava o que lhe interessava no momento: não se preocupou em catalogar ou minutar o material, o roteiro se construía na medida em que ia adicionando novas imagens. Ele também começou a estruturar o filme em torno da sua doença de despersonalização (perturbação em que a pessoa sente-se como se fosse um observador da sua própria vida, podendo também sentir-se ela mesma dentro de um mundo irreal, como estar num sonho) com a intenção de retratar a realidade como conflituosa e duvidosa. Caouette descreve ter concebido o filme como uma nova maneira de olhar o documentário, como se ele estivesse a imitar o processo do seu pensamento, dando aos espectadores a experiência de ver como seria estar dentro de sua cabeça.

O filme começa com a imagem de Renee LeBlanc, a mãe, que se move em frente a câmera , cantando uma musica alegre. Temos a introdução de um personagem, um personagem com problemas psicológicos, vítima de abusos, mas que pertence a uma família. No entanto, essa imagem é mais que a apresentação de um personagem, pois ela é também um documento, um indício do passado, de que Renee existe, esse é seu nome e sempre foi independente da existência do filme:

(…) na fotografia jamais posso negar que a coisa esteve lá. Há dupla posição conjunta: de realidade e de passado. E já que essa coerção só existe para ela, devemos tê-la, por redução, como a própria essência, o noema da Fotografia. O que intencionalizo em uma foto (…) é a Referência, que é a ordem fundadora da Fotografia.
O nome do noema da Fotografia será então: “isso foi”, ou ainda: o Intratável. (BARTHES, p.115)

Aqui podemos estender esse conceito de fotografia para essas imagens de arquivo que compõe o filme, pois nelas também esta contida a realidade, essa condição da imagem permanece, isso é intensificado pelo caráter doméstico e amador que essas imagens possuem: a granulação, o movimento, o enquadramento e, principalmente, a imagem da pessoa em outro tempo, ou seja,  seus traços, suas feições… Mais do que se preocupar com o que acontece em termos de ação ou encenação diante da câmera, estamos a toda hora reparando nas mudanças e continuidades dos traços, das marcas que a vida proporciona na pele, estamos começando a olhar para dentro da intimidade de uma família, da intimidade das pessoas, dos indivíduos que a constrói.

Após a apresentação dos personagens e da sequência em que conhecemos o problema que os personagens estão enfrentando, uma narração, intertítulos e uma sucessão de fotografias começam a nos contar a história daquela família. Aqui a evidência da realidade se intensifica, o “isso foi” se multiplica em dezenas de fotos, há uma intensa necessidade de se construir e de construir seu passado . A fotografia permite isso, porque traz junto de si o testemunho do “real”.

Nessas imagens, pode-se dizer que o que mais se evidencia é o studium, – que segundo Barthes, é o que me desperta um interesse geral, do meu saber cultural e social – vamos identificando os personagens em seu tempo e espaço, nos interessando em como viviam, nos seus dramas e nas suas questões, criando uma cronologia pela sucessão dos fatos. No entanto, existe uma latência presente nessas fotos, por três motivos: primeiro pelo fato de  serem tão pessoais, pertencentes ao universo domestico e familiar, que possam nos remeter às nossas próprias fotos de família; segundo, já anteriormente citado, por mostrar a marca do tempo nesses rostos; e terceiro, por apresentar a maioria rostos alegres em contraposição com a narração às vezes trágica e sofrida. E talvez sejam esses, principalmente, os dois primeiros motivos que nos remetam aqui a ideia de punctum, que segundo Barthes é o que me punge, me mortifica, me advém, o acaso, o detalhe que estabelece conosco uma familiaridade, o tempo, uma latência, essa latência ultrapassa essas imagens e percorrem boa parte do filme, podemos então abranger essa análise a diversas imagens do filme.

Voltemos à primeira imagem que abre o filme, assim como em quase a maioria das imagens, temos uma pessoa nos olhando, assim como em um retrato e o que temos, já de início e que começa a nos prender é o seu “ar”:

O ar (chamo assim, por falta de melhor, à expressão de verdade) é como que o suplemento intratável da identidade, o que é dado graciosamente, despojado de qualquer “importância”: o ar exprime o sujeito, na medida em que ele não se dá importância. (BARTHES, p.160)

Ela tenta nos mostrar sua verdade, uma inocência presentificada na loucura, junta-se a isso o olhar nos olhos: “Ora, o olhar, se insiste (e ainda mais se perdura, atravessa, com a fotografia, o Tempo), o olhar é sempre virtualmente louco: é ao mesmo tempo efeito de verdade e efeito de loucura.” (BARTHES, p.167), esse tipo de construção da imagem, onde a pessoa nos olha, nos encara, se repete em diversas imagens e com diversas pessoas, esse filme é um filme sobre a loucura, o desnudamento, a busca por uma verdade, pelo “ar” das pessoas. Jonatham se questiona e questiona a família, será que Renee foi sempre louca? Será que essa é a sua verdade? O enfrentamento do outro no olhar é a busca por esse “ar”, a maioria das imagens possui esse “olhar nos olhos”, encaram o spectator (o observador) ao mesmo tempo em que encararam o operator (o produtor, o fotografo), sendo que aqui, em Tarnation, Jonathan percorre todas as posições (referente, operator e spectator) e posso dizer que em todas elas ele está procurando a mesma coisa: a identidade, a verdade, tanto sobre si mesmo como sobre sua família e principalmente sobre sua mãe, há uma busca incessante, mesmo que nem sempre consciente, pelo efeito que o fotógrafo da foto do jardim de inverno da mãe de Barthes conseguiu: “o que ele fixava era a verdade – a verdade para mim.” (BARTHES, p. 163)

Caouette afirma, no próprio filme e em entrevista, que fez o filme como forma de terapia tanto relativa à sua doença de despersonalização, em que era preciso lutar contra a perda da identidade, como para seus problemas em lidar com o passado trágico e caótico. As imagens, como vimos, estão permeadas por essas relações.

Roland Barthes afirma:

Em um primeiro tempo, a fotografia, para surpreender, fotografa o notável; mas logo, por uma inversão conhecida, ela decreta notável aquilo que ela fotografa. O “não importa o quê” se torna então o ponto mais sofisticado do valor. (BARTHES, p. 57)

Tarnation, pois, é um pouco disso: imagens que não possuem nada de notável, são pertencentes à esfera privada e aparentemente podem em nada nos interessar, e no entanto, acabam por ganhar essa notabilidade. A família problemática sem espaço no mundo agora se encontra em imagens, o realizador com problemas de despersonalização agora pode ter alguma referência de quem é.

O filme  possui uma carga tão forte não só pelo assunto de que trata – a loucura, a violência, o abandono e etc –  mas também, e principalmente, pela constituição,o caráter e a potência das suas imagens, que encontramos com a ajuda de alguns pensamentos de Barthes. Essas imagens de arquivo, domésticas e amadoras que constantemente nos olham, estão a nos provocar e fazer com que também possamos pensar as nossas questões, nossa identidade e nossa família.

Caouette nos conduz, com esse filme, por sua busca da personalidade, da identidade e da sua família refletindo de certa forma o que é a vida desse realizador, e observamos essa vida, felizmente, se impregnar na imagem.

Bibliografia

BARTHES, Roland.A Câmara Clara. Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

http://www.atalantafilmes.pt/2005/tarnation/Tarnation.doc 20/07/2008  16:30 http://www.cinereporter.com.br/scripts/monta_noticia.asp?nid=1768 20/07/2008  16:30

http://www.contracampo.com.br/64/tarnationduda.htm 24/07/2008  18:00

http://www.contracampo.com.br/64/tarnationruy.htm 24/07/2008  18:00

http://www.leedor.com/notas/925—tarnation.html 24/07/2008  18:05

http://www.cinema2000.pt/ficha.php3?id=4607 24/07/2008   18:05

http://dossiers.publico.pt/noticia.aspx?idCanal=1315&id=1193969 24/07/2008  18:10

http://www.manualmerck.net/?url=/artigos/%3Fid%3D116%26cn%3D993 27/07/2008 21:00

Lucas Mingoti Trabachini é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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