Pi (Darren Aronofsky, 1998)

A obra cinematográfica contemporânea Pi (1998), escrita e dirigida por Darren Aronofsky, retrata um teórico matemático, Maxmillian Cohen, transtornado e obcecado por uma lógica, um padrão que ele afirma estar presente em todo tipo de organismo e fenômeno da natureza, baseando-se em teorias milenares, em busca de uma confirmação para sua própria teoria: para tudo existe um padrão comum, inclusive a bolsa de valores de Nova Iorque, seu maior objeto de investigação. Sempre em busca de respostas e confuso em relação a diversos acontecimentos em sua vida, o protagonista reside em uma linha muito estreita entre a geniosidade e a insanidade, o que causa ao espectador certa confusão em relação às suas teorias matemáticas e às alucinações causadas pelas altas doses de analgésicos que ingere.

Com forte influencia do surrealismo, há algumas cenas e personagens do filme que explicitam os ataques de loucura de Max, como os Déjà-vu presentes em alguns momentos em que não fica claro se o personagem está ou não em seu delírio alucinógeno e realmente complicam ainda mais o decorrer da narrativa. É o caso da cena, no início do filme, em que Max está num vagão do metrô, desanimado com a opinião de seu professor (que afirma que sua pesquisa não o levará a lugar nenhum), quando, “interrompendo” um dos monólogos (pensamento introspectivo) do protagonista, um homem começa a cantar e olhar em sua direção, mas, surpreendentemente, o desconhecido logo desaparece, revelando, assim, o vagão vazio. Há nesse momento uma desconstrução da narrativa, que, até então, parecia ser completamente linear, surpreendendo o espectador de forma repentina. O Déjà-vu fica evidente quando, num segundo momento, muito após essa cena do vagão, esse mesmo personagem (homem que canta) é retomado em outra cena, em que Max pede o jornal para a única pessoa que está presente no vagão (novamente no vagão) e quando dirige o olhar a essa pessoa, se depara com aquele mesmo homem velho que cantara e depois desaparecera naquele mesmo lugar. O velho então começa a persegui-lo, mas essa perseguição pode ser classificada já como um mero delírio, já que Max, pouco antes de entrar no metrô, havia ingerido suas pílulas analgésicas, que são sugeridas, no filme, como principais causadoras dessas alucinações repentinas. Esses elementos surreais contribuem para criar toda a tensão em torno do drama vivido pelo protagonista, que tem suas idéias, por um lado, questionadas a todo momento pelo personagem Sol Robeson, seu ex-professor, e, por outro lado, desejadas tanto pelos judeus quanto pelos empresários de Wall Street.

Pi teve seu roteiro escrito pelo próprio diretor, com a colaboração de Sean Gullet, o ator que representa o protagonista Max Cohen. É uma história simples, porém com informações complexas que bombardeiam por todo momento o espectador, causando aquela certa confusão já citada anteriormente. O personagem, nessa incessante busca pelo padrão comum da vida, acaba se deparando com uma questão muito maior do que imaginava atingir. Sua teoria acaba o levando a um caminho que sugere a presença de Deus em todo tipo de organismo vivo, na forma de um número padrão que é respeitado pela natureza, seja em ciclos naturais, proporções e outros fatores exatos que estão presentes nas variadas formas de vida existentes. Essa teoria acaba despertando interesses divergentes nos dois ambiciosos grupos da cidade de Nova Iorque: os já citados anteriormente fanáticos judeus e alguns empresários ligados à bolsa de valores nova-iorquina. Os judeus são favoráveis à teoria de que esse padrão buscado por Max é também a forma em que Deus se manifesta sobre tudo e todos, enquanto os empresários estão apenas interessados em prever o próximo resultado da bolsa, que acreditam ser influenciada também por esse padrão comum que Max está buscando. Perseguindo e pressionando o protagonista a utilizar seu conhecimento para seus interesses, essas pessoas acabam por não conseguir satisfazer seus interesses, já que não conseguem corromper, dessa forma, o protagonista. Esse que a partir do momento em que deixa de lado a ambição e o materialismo que o circundavam antes, parece encontrar sua paz interior, e passa a viver sem seus antigos problemas ou dores de cabeça que o perturbavam até então.

O filme segue uma narrativa pouco convencional, montado de forma a criar um ambiente confuso ao redor do protagonista, reforçando a idéia de que ele passa por um estado de transtorno mental crítico. Por outro lado, ajudando a organizar uma linha narrativa na história, existe um monólogo interior do personagem que, em diversos momentos, surge na forma de narração em voz over, mas de forma diegética, já que indica o pensamento do protagonista no momento presente à ação apresentada pelas imagens. Nesses pensamentos ele sempre sinaliza o horário em que registra suas notas (notas são os principais elementos desse monólogo interior) contribuindo para a formação de uma seqüência cronológica menos confusa e estabelecendo uma narrativa temporal mais clara, facilitando o entendimento e o acompanhamento pelo espectador das teses propostas pelo personagem.

A respeito desses monólogos, é possível afirmar que eles representam suas teorias ou notas pessoais que, de acordo com o filme, vão sendo alteradas pelo personagem numa espécie de atualização da nota, ou seja, quando alguma nova informação desbanca sua antiga teoria, logo entra em cena seu pensamento tomando nota de uma tese atualizada. No caso das notas pessoais, uma delas é fundamental para Max no desenvolver de sua pesquisa, já que é citada três vezes, sempre com a idéia cada vez mais clara, tanto para o espectador quanto para o protagonista. Logo no início do filme, a primeira fala de Max começa com essa nota num monólogo interior: “9:13. Nota Pessoal. Quando eu era  criança, minha mãe me disse para não olhar diretamente para o sol. Então, quando eu tinha seis anos eu olhei. Os médicos não souberam dizer se meus olhos um dia sarariam. Fiquei apavorado, sozinho naquela escuridão. Lentamente, a luz do dia penetrou através das vendas e eu consegui ver, mas alguma coisa dentro de mim havia mudado. Nesse dia eu tive minha primeira dor de cabeça.“. Essa nota se repete mais 2 vezes ao longo do filme, uma exatamente no meio e outra mais próxima do seu fim. Em cada uma das vezes, Max faz também um tipo de atualização, mostrando que está compreendendo o que realmente aconteceu com ele quando era criança. A primeira vez que essa fala é retomada, o personagem complementa-a dizendo que por um momento entendeu o que estava acontecendo e, então, elabora uma nova hipótese a partir desse trauma de infância que vem à tona num momento crucial, hipótese essa que dá um novo rumo à narrativa, encaminhando novamente o pensamento do protagonista, colocando tanto ele quanto o espectador, mais próximos de uma descoberta, de uma conclusão para todas as teses e teorias confusas desenvolvidas ao longo do filme. Já na segunda repetição, o ultimo monólogo do filme, Max já tem em mente tudo o que procurava antes, já não tem dúvidas a respeito de mais nada e então profere (em pensamento) as frases iniciais da famosa nota pessoal: “17:22. Nota Pessoal. Quando eu era criança, minha mãe me disse para não olhar diretamente para o sol. Então, quando eu tinha seis anos eu olhei.“. Apenas isso, deixando pouco claro, à primeira vista, o que realmente ele quer dizer com isso mas, com uma observação mais atenta e no contexto da cena, nota-se que o sentido fica implícito nessas palavras, para que o próprio espectador busque, ao longo das teorias expostas no filme, o sentido real desse confuso episódio ocorrido na infância do personagem que é retomado ao fim do filme como esclarecedor da grande questão exposta pelo personagem ao longo de toda a história.

Dessa forma, Pi é um filme que vai além de fórmulas matemáticas e questões exatas e atinge um ponto extremamente delicado da sociedade: a grande dúvida sobre a existência de Deus. E mais que isso, chega a expor os limites do ser humano para ter suas ambições satisfeitas, sejam elas relativas ao próprio Deus em que acreditam e tanto temem ou relativas ao dinheiro e materialismo que move o mundo. Um ótimo filme para nos fazer pensar melhor nas questões filosóficas e culturais contemporâneas que talvez precisem, realmente, de um olhar mais crítico por parte das pessoas envolvidas e responsáveis por essas questões.

Filipe Doranti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Este post tem um comentário

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    bricio

    Adorei a explicação. O filme é realmente muito confuso. 🙂

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