Zabriskie Point: tempo e narrativa

Introdução

Zabriskie Point é uma região do Parque Nacional do Vale das Mortes, localizado no Oeste dos Estados Unidos, caracterizada por ser uma intensa área de erosão e sedimentação, com terreno arenoso, e constituinte de uma paisagem praticamente desértica. É em meio a esse cenário que os personagens da obra de Michelangelo Antonioni percorrem um trecho de sua história, sendo os protagonistas os símbolos de uma sociedade revolucionária. Apesar disso, não estão inseridos nesse processo de luta social, mas agem como espectadores deslocados, não pertencentes a nenhum dos dois principais “grupos” nos quais os indivíduos se organizam: os intelectuais de esquerda, que trabalham para a implantação do sistema socialista e a burguesia capitalista. Tendo como inspiração os estudos narrativos cinematográficos de André Parente em sua obra Narrativa e Modernidade, a primeira reflexão a respeito da construção narrativa de Aristóteles, em Poética e suas relações com o tempo em O tempo na narrativa de Benedito Nunes, propõe-se a elaboração de uma reflexão a respeito da construção temporal e narrativa e sua relação imagética no filme de Antonioni, Zabriskie Point (1970) priorizando as questões relativas à sensação transmitida pelos personagens ao espectador.

Zabriskie Point : tempo e narrativa

A obra fílmica Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni traça um quadro do movimento revolucionário de 1960 nos Estados Unidos e juntamente com ele do sentimento de indeterminação criado a partir da iminência de confronto direto com as forças políticas do país. Apesar de tratar de movimentos como a contracultura e a revolução sexual, Antonioni rejeita o psicodelismo e se apropria da oposição entre a poluição visual e sonora da cidade e a imensidão árida e isolada do deserto a fim de construir o espírito geral de desorientação que permeia os personagens de Daria e Mark, dois jovens que se encontram ao acaso no deserto e ilustram duas faces diferentes da revolução.

Já nos créditos iniciais do filme, o autor deixa clara sua posição frente á construção dos dois personagens principais: Daria e Mark não são indivíduos, mas sim representantes de toda uma classe, dos inúmeros jovens ativos ou não no projeto de revolução, de todos aqueles inseridos no quadro de intensa transformação cultural, social e política. A primeira seqüência prenuncia a questão que talvez seja a principal motivadora da narrativa, a pluralidade de opiniões e posições em meio a uma revolução que em teoria, possui uma unidade. A apresentação do debate dos estudantes denuncia o sentimento de deslocamento dos adeptos do movimento, e indica o contexto histórico e psicológico em que desenvolverá a narrativa, prepara o espectador para que já saiba o “tom” que o filme terá (“tom”, que nesse caso não se relaciona com o ritmo total do filme).

O personagem de Mark presente nessa primeira seqüência é apresentado à câmera, porém não há uma explicitação de seu passado, suas pretensões, suas características psicológicas, haja visto não representar , como já dito, um indíviduo mas toda uma classe. Apesar da ausência de caracterização, nota-se desde o princípio sua posição contrária quanto ao modo como a revolução é conduzida, mas mesmo assim apresentando-se como partidário de sua realização.

Da mesma forma Daria insere-se na narrativa, como símbolo de uma juventude que apesar de não seguidora declarada de uma revolução política se move ao longo da história, “ao sabor dos acontecimentos”. Contratada para trabalhar como secretária para um empresário que irá construir uma colônia de férias no meio do deserto, Daria assume uma postura que pode ser considerada indiferente aos fatos, simplesmente fazendo parte deles.

A partir da apresentação dos dois personagens o filme expõe uma das faces dessa juventude revolucionária deslocada, a do consumo. Enquanto Mark e um amigo andam de carro pelas ruas, há a inserção de inúmeros outdoors com propagandas, placas com nomes de indústrias, lanchonetes, mercados que irão pontuar a narrativa até o momento da fuga de Mark para o deserto. Nesse primeiro momento há o acompanhamento sonoro caracterizado por uma grande ruidagem, que remete ao funcionamento de engrenagens, martelos batendo, motores, delineando o espaço urbano a partir da existência de uma sociedade de consumo, como se ela o construísse.

A construção de um primeiro conflito inicia-se com a compra de uma arma por Mark, e sua adesão à revolução armada. Após uma seqüência que mostra as conseqüências da repressão da policia ao movimento, com imagens de jovens feridos, sangrando, estirados nas ruas, há a instauração de um conflito, que a partir de então guiará a narrativa. Ao assistir ao assassinato de um militante negro pela policia, Mark ameaça atirar contra o executor, mas alguém o faz antes dele. Porém o rapaz é visto na cena do crime, e é anunciado nas noticias como o autor dos disparos. Tal acontecimento resulta na fuga de Mark, que rouba um avião e vai para o deserto.

Permeando a elucidação desse conflito, a narrativa se volta para Daria que, simultaneamente aos acontecimentos descritos, viaja de carro pelas estradas do Oeste dos Estados Unidos, a procura do que ela diz ser um local para meditar, para fazer suas reflexões. Evidencia-se a certa ausência de seriedade da personagem com sua atividade de trabalho, reafirmando sua característica de “passageira” da história. A jovem chega a uma cidade à procura de James Paterson, o qual não é encontrado e muito menos apresentado, de forma que serve à narrativa apenas para induzir o espectador a acreditar que outro conflito será instaurado. O reforço dessa indução é realizado pelas cenas seguintes, nas quais Daria é atacada por um grupo de crianças que estariam com Paterson, fazendo com que ela volte para a estrada e encaminhe-se para Phoenix, local onde encontrará seu chefe e onde a colônia de férias será construída.

Até então a narrativa foi construída de forma linear, possuindo contextualização do espaço e tempo diegéticos, apresentação dos personagens, e seguinte criação de conflitos que, seguindo a lógica aristotélica, teriam o seu desenvolvimento e conclusão. Mark e Daria encontram-se no deserto, após uma lúdica seqüência de “perseguição” entre o avião e o carro dos personagens. Os dois, após se conhecerem (não se apresentam, apenas se conhecem de forma seu envolvimento também não se mostra possuidor de profundidade psicológica) vão buscar combustível para o avião, e chegam a Zabriskie Point, no Parque Nacional do Vale da Morte.

A partir desse encontro, a narrativa é de certa forma interrompida. Os conflitos são suspensos, e Mark e Daria perdem-se na imensidão dos vales e montanhas arenosos. Os diálogos mantidos revelam suas posições frente aos acontecimentos da época, as greves, as movimentações políticas, a crítica ao capital. Suas filiações, porém se perdem da mesma maneira que a importância dos conflitos nos quais estão envolvidos, e a paisagem torna-se elemento de libertação das opiniões, de ruptura com o universo no qual se inserem, de fragmentação, de escapismo.

Esse movimento de estilhaçamento culmina no que é considerado para a época diegética uma das grandes transgressões, o ato sexual, no qual Mark e Daria subvertem as convenções sociais de relacionamento, já que mantêm a relação em um local público sem ao menos conhecerem-se direito. É na realização dessa subversão que se observa a ruptura com o tempo, o estiramento de um momento, semelhante ao que acontece à personagem Karen quando se perde em meio aos labirintos da ilha, na obra neo-realista Stromboli (1949), de Roberto Rosselini. Ocorre então um representação imagética que remete a esse movimento de alongamento do momento, na qual surgem inúmeros outros casais juntos de Mark e Daria, de forma que há em cada um deles um pouco dos protagonistas, reproduzindo o sentimento de deslocamento e multiplicidade de posições que caracterizam a própria geração revolucionária. Há na agitação dos corpos na areia na paisagem árida, um tom animalesco que aparenta ser o retorno ao primitivo, significando a imagem de passado que remete a um futuro no qual deve-se retornar a liberalização da sexualidade.

Antonioni finaliza esse longo momento da obra, essa suspensão de tempo, do individual, e até mesmo de espaço que apesar de presente envolve-se nos personagens e com eles, com um plano aberto que captura todos aqueles casais deitados na areia, em comunhão com esse estiramento e ruptura propostos, como se entendessem e aceitassem o deslocamento proposto.

A chegada de um casal de turistas à área de descanso faz com que a narrativa retorne ao ponto anterior a chegada do casal em Zabriskie Point, no qual a história se apresenta de forma linear. Há a chegada de um policial e um retorno ao conflito vivido por Mark e motivador de sua fuga para o deserto. Daria toma conhecimento do ocorrido, acredita que o rapaz não tenha sido o autor do crime e não há modificação na relação que até então os dois mantinham, de forma que se pode depreender a superficialidade em relação ao convencionalismo social aplicado ao desenvolvimento de relacionamentos amorosos (já que a revelação da existência do conflito posteriormente a realização do ato sexual não interfere na confiança que o casal mantinha).

Mark e Daria retornam ao local em que o avião de encontra e fazem dele uma tela no qual realizam sua obra de arte. Este talvez seja o único momento em que aparecem as inúmeras cores relacionadas com o psicodelismo, de forma sutil porém contrastante com as cores do deserto.

Ambos seguem os caminhos traçados anteriormente ao encontro em Zabriskie Point, Daria retornando a Phoenix e Mark para a cidade, entregando-se aos policiais, mesmo não sendo culpado pelo crime. As autoridades, como já dito, já haviam tomado conhecimento da fuga do rapaz e anunciavam as noticias do caso pelo rádio. Mark chega ao mesmo aeroporto do qual havia saído inicialmente e é recebido por policiais, que atiram na cabine do piloto e acertam o jovem, provocando sua morte. O desenlace do conflito de Mark é atingido sem que haja um desenvolvimento mais profundo, e não admite uma característica heróica apesar de produzir o maniqueísmo entre as forças policiais (representantes do mal, do opressor, do errado) e a figura dos jovens revolucionários (afirmação do bem, do puro, da geração “paz e amor” – mesmo sendo protagonista de uma luta armada).

Daria recebe a notícia da morte de Mark pelo rádio, ainda a caminho de Phoenix. Novamente, a narrativa linear de acontecimentos seguidora da ordem cronológica abre espaço para a indeterminação e para um sutil estiramento do tempo. A personagem sai do carro e permanece no mesmo lugar, embalando-se no vento se perdendo em meio à paisagem. Mesmo sendo uma seqüência curta em relação a do encontro no deserto percebe-se o mesmo sentimento de estilhaçamento e de deslocamento produzido anteriormente. A personagem chega ainda em estado de perplexidade no local de trabalho, e manifesta uma primeira reação à morte do rapaz, chorando enquanto se molha em uma pequena queda d’água, atitude que talvez seja o máximo de profundidade psicológica formulada para a personagem.

O sentimento de indeterminação se apropria da jovem que entre na casa do chefe mas não permanece nela. Volta para o carro, e logo após uma seqüência em que empresários discutem a utilização da área desértica para a construção da colônia de férias, Daria vê, parada em frente à propriedade localizada em meio às rochas no deserto, tudo explodir.

Essa suspensão final, esse último estilhaçamento do tempo se constrói a partir de recursos de montagem cinematográfica e não mais de narrativa (o que não diminui a sua importância). Há a repetição da imagem de explosão da casa do empresário, com mudança de enquadramento, e o som da explosão se repete com a mesma força das imagens. Acompanhada agora por “Careful With that Axe, Eugene” do Pink Floyd, as imagens se alternam e há a explosão de geladeiras, televisores, roupas, livros, produtos culturais e alvo da crítica ao consumo e massificação. As cenas adquirem uma dimensão onírica, haja visto o espectador ver toda aquela explosão, com uma diversidade de ritmos de imagem, supostamente pelos olhos da personagem. A seqüência termina; a música é cortada e retorna-se a Daria, parada em frente à propriedade, que se manteve intacta. A personagem entra no carro, e o filme termina em aberto.

Conclusão

O discurso fílmico, apesar de ser construído principalmente por imagens, não precede da narrativa, fundamental para sua construção. Apesar de assemelhar-se com o discurso narrativo da literatura, a narrativa fílmica diferencia-se na construção temporal, haja visto ser baseada também na elaboração imagética e essa necessita de outras formas de abordagem para “dar conta” da representação da passagem do tempo, mas neste caso não se tratando do tempo cronológico e sim do tempo presente dos personagens (tempo diegético).

A existência de estiramentos temporais no discurso fílmico permite uma maior abertura do texto e faz com que este necessite da mediação do espectador pra que ocorra a interpretação das imagens e do próprio enredo. Tais vazios são de fundamental importância para a construção da narrativa na modernidade e para a fundamentação de discursos que pretendem reestrutura-las imageticamente. A reestruturação não obriga a recusa da estruturação clássica da narrativa aristotélica, mas sim a adição de elementos que a transformem em alguma medida.

A obra de Michelangelo Antonioni, Zabriskie Point (1970) utiliza-se dessas zonas de indeterminação, desses vazios, de forma a fazer com que o espectador sinta o presente dos personagens no contexto histórico e psicológico do filme.

Bibliografia

PARENTE, André. Narrativa e modernidade : os cinemas não-narrativo do pós-guerra. Papirus, 2000.

NUNES, Benedito José Viana da Costa.O tempo na narrativa . 2 ed. São Paulo: Ática, 1995.

ARISTÓTELES. Poética.

Maria Cristina Couto Melo é graduanda em Imagem e Som pela Univesidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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