Existe uma certa videografia contemporânea brasileira – em sua maioria formada por artistas provenientes não de escolas de cinema, mas de cursos de artes plásticas ou até mesmo de filosofia – que de alguma forma parece instigar um certo experimentalismo audiovisual de maneira muito mais construtiva que o curta-metragem “narrativo de película” do nosso país vem fazendo (que o nosso país vem fazendo). Nomes como Wagner Morales, Roberto Bellini, Cao Guimarães e Marcellvs, artistas com carreiras mundialmente já consolidadas, vem mantendo cada vez mais uma saudável distância do típico e didático cinema ficcional nacional. É óbvio que são duas linguagens distintas, o experimentalismo desses video artistas e a arte narrativa dos demais cineastas, porém é bastante transparente a falta de saídas e repetições dramatúrgicas em que se instalou o curta-metragem de ficção, indo contra a variedade de formas que esse grupo particular de video artistas brasileiros vem encontrando para evoluir e desenvolver sua linguagem.
Em que ponto o cinema passa a ser melhor compreendido, e reconhecido, dentro de uma galeria de arte? Qual o limite entre a instalação conceitual e o experimentalismo narrativo? Impossível não fazer esses questionamentos quando nos deparamos com as obras, juntamente com os ambientes em que elas se inserem, de diversos video artistas brasileiros. Impossível não perceber uma raiz sintomática dentro dessa estética, é nessa tentativa de compreensão e aproximação que esse texto se debruça.
Na série de vídeos “There’s Nobody Here”, Wagner Morales simula três ausências. Na primeira, um personagem subjetivo recebe mensagens em sua caixa postal de mulheres solitárias, ao mesmo tempo em que vemos imagens banais da cidade pela janela de um carro em movimento. Na segunda, o próprio Wagner é quem está ausente e recebe mensagens de pessoas a sua procura, enquanto o vemos dirigindo um carro. Na terceira, existe apenas a observação, caótica e até mesmo perdida em si mesma. Esses pequenos vídeos, já exibidos tanto em festivais como em museus, não funcionam simplesmente como “videoarte”, não são meras configurações sensoriais de um ambiente, mas operam como um tratado, um ensaio contemporâneo sobre a ausência e suas possíveis consequências, em qualquer âmbito ou território em que isso possa se fazer sentir. O artista aqui subverte qualquer possível interpretação através do “cinema”, transformando a sua obra simplesmente em um conceito universal que através do audiovisual tenta se fazer ouvir. É possível lembrar de Chris Marker, que talvez seja, juntamente com Alan Resnais, quem primeiro criou esse gênero contemporâneo de ensaio. As obras de Marker não são simples documentários, simples registros. Como Morales e esses demais artistas, Marker tem a capacidade de argumentar em qualquer gênero de discussão usando apenas suas observações do mundo. Está tudo aí fora para se ver, não é mesmo? O que seria mais poderoso nos dias de hoje do que ter uma câmera? As possibilidades políticas e afetivas que o vídeo encontra dentro desse contexto vem viabilizando cada vez mais novas e importantes dinâmicas de representação.
Nos primeiro planos de “Teoria da Paisagem”, de Roberto Bellini, vemos imagens contemplativas de algumas árvores e nuvens, no que parece ser um belo entardecer de uma cidade. Então ouvimos uma voz, que questiona aquelas imagens. É a voz de um policial norte-americano. Ele pergunta para Bellini, que grava aquelas imagens, o motivo daquela filmagem. Surge então, de maneira espontânea e inesperada, um discurso autoritário sobre a representação. O que primeiramente seria um vídeo contemplativo, acaba se tornando um discurso político. Bellini é esperto e continua sua conversa com o policial, sem nunca o filmar, gerando assim seu contra-discurso. Vemos então imagens contemplativas durante toda a duração do vídeo, e ao fundo ouvimos a discussão entre o artista e a autoridade. A visão afetiva e a visão autoritária. Contemporaneidade e alienação invadindo o ambiente particular do artista, sem nem mesmo ele ter chamado por isso. Bellini e todos nós estamos sujeitos a essa autoridade. A observação aqui encontra o que primeiramente seria um obstáculo, mas o artista transforma isso em discussão, realizando uma obra representativa e extremamente poderosa em sua análise.
O princípio da observação talvez seja ainda mais representativo na obra de Marcellvs. Com uma estética quase que minimalista, a série “VideoRizoma”, baseada no conceito do rizoma de Gilles Deleuze, é um profundo exercício de observação e abstração. Através dos registros espontâneos de alguns sujeitos anônimos, Marcellvs traça pequenos estudos sobre o deslocamento e o ritmo. Em seu mais famoso vídeo, Man.Road.River, a figura de um homem, ou ainda a figura de sua representação videográfica, atravessa um pequeno rio caminhando a pé. Esse deslocamento opera como um mergulho abstrato, a figura física do homem vai aos poucos se fundindo com o ambiente, gerando uma sensação hipnótica única, tudo isso em apenas um único e longo plano. Esses video rizomas de Marcellvs são pequenos protestos pelo tempo. Alheio ao resto do mundo audiovisual, das mídias televisivas e da video arte videoclíptica primitiva, o tempo morto aqui não é o tempo da alienação, é o simples tempo da vida, dilatado em sua própria abstração audiovisual e assim revelado para nós.
Já Cao Guimarães, talvez o nome mais famoso desse grupo, tem como principal característica a multiplicidade de olhares. O que mais instiga na filmografia de Cao é sua capacidade de “encontrar filmes” em qualquer lugar. Depois de assistir a boa parte de sua obra, a sensação que temos é que Cao Guimarães pode fazer um filme sobre qualquer evento, seja ele grande ou pequeno, seja ele representativo ou não. O artista encontra sempre uma brecha, mesmo em um emaranhado de banalidades e imagens ainda sem significados, Cao vai lá e atiça a vida, faz vibrar o que quer seja, realizando um vídeo sobre formigas carregando confetes de carnaval, duas crianças brincando em uma tarde chuvosa, bolhas de sabão que reservam dentro de si certas deformidades, e assim por diante. Não importa o tema, o personagem, o território, qualquer que seja o ambiente em que o artista se encontra, sempre existe algo a ser gravado, um microcosmo que no olhar, e na lente, daquele indivíduo, tem um mundo de ritmo e representação a ser ainda descoberto. Podemos notar também que a obra de Cao funciona como um resumo da observação que sintetiza os sintomas desse grupo de artistas e também de vários outros, certas dinâmicas e olhares que compartilham entre si dessa mesma síndrome. Mas que observação é essa? Como nasce esse olhar?
A principal característica que notamos aqui é o poder de reconfiguração sensorial e geográfica desses artistas através de observações particulares, seja de uma rua vazia, seja de um caminho percorrido por um corpo, seja de imagens banais vistas pela janela de um carro; o sentido original, uma vez manipulado, adquire possibilidades infinitas. Até onde pode ir uma imagem? Que exercício mais instigante para o cinema, e para as artes visuais em si, se não o de experimentar e potencializar o poder de um plano? O diferencial dessa nova videografia é justamente esse poder de abstração que parece extremamente libertador. Aonde existe um filme? Em um bolha de sabão que estoura, outro em uma bolha de sabão que se forma, como nos mostra Cao Guimarães. Na autoridade de uma paisagem, na frieza de outra, como nos ensina Roberto Bellini. Na brincadeira entre algumas ausências como revela Wagner Morales em sua série de vídeos, e assim por diante. Em um país aonde tantos filmes de ficção com uma dramaturgia primitiva e repetitiva acabam ganhando praticamente todo o espaço reservado ao audiovisual, é preciso celebrar o olhar desses artistas, é preciso compreender a política do tempo e do ritmo em que eles se inserem e consequentemente a política que defendem, construindo assim uma videografia inédita e que já reserva um espaço não só na história do cinema, mas na história da arte como um tudo.
Se aqui eu critico o cinema curta-metragem de ficção, ou pelo menos sua funcionalidade enquanto dramaturgia e a pobreza de sua linguagem, existiria uma solução básica que resolvesse esse “problema de olhar” em que se insere a nossa narrativa? Talvez Felipe Bragança, uma espécie de junção do vídeo experimentalismo com a dramaturgia de ficção, seja a resposta para isso. A obra de Felipe e Marina Meliande, sua principal parceira em vários projetos, parece ser, no exato momento, a que mais desafia qualquer gênero de interpretação e categorização. Construída a partir de uma poesia sobre o cotidiano, ao mesmo tempo em que nos deparamos com personagens de uma ficção, de uma história já pré-estabelecida, a linguagem aqui obtém seu ápice na abstração, na impossibilidade de interpretação que gera possibilidade de uma emoção ainda pouco experimentada dentro da sala de cinema. Influenciados principalmente pelo cinema contemporâneo de Naomi Kawase, Apichatpong Weerasethakul, Karin Ainouz, dentre outros, Felipe e Marina vão aos poucos inaugurando uma nova forma de olhar e de se relacionar com o que se vê. Um rosto não é simplesmente um rosto. Um abraço não é simplesmente um abraço. Originando um novo e poderoso sentido, aonde qualquer gesto, qualquer corpo, qualquer luz que entre pela janela ou que ilumine uma árvore, exala por si só uma nova energia, capaz de uma infinidade de sentimentos e emoções. Absorver essa nova dinâmica entre imagem e som, esse afeto em seu estado bruto, tem se tornado um feliz e raro testemunho dentro da nossa filmografia nacional.
O novo vídeo brasileiro instiga, agride, revela novas formas de se portar a partir de velhas imagens. Subverte a videoarte primitiva, gerada a partir de vícios do videoclipe e imagens pseudo potentes, dando lugar a conceitos e filosofias universais de extrema importância para a linguagem. Infelizmente grande parte desses artistas acaba tendo maior reconhecimento fora do Brasil. Fica aqui o pedido por uma curadoria nacional mais especializada, são poucos os grandes festivais em que existe uma categoria para o video arte ou para o video experimental em que uma seleção realmente relevante é formada.
E o futuro? O que no reserva? Flertando com a mobilidade, a mídia e a memória, podemos identificar novos artistas nascendo, jovens que ainda não tem o tamanho reconhecimento dos video artistas já citados aqui, mas que devido um interesse comum por certas estéticas e discussões bastante atuais vem ganhando aos poucos um reconhecimento merecido. Dellani Lima, Igor Amin, Vinícius Cabral, Gabriel Sanna, Joacélio Batista, dentre outros, compartilham um obra que além de extremamente contemporânea em suas preocupações políticas, estéticas e afetivas, vem mantendo um diálogo intenso e construtivo entre si, costurando uma nova tendência que promete gerar belos frutos. Mas vamos guardar esses nomes para um outro texto dedicado aos mesmos, com os devidos méritos e observações.
Sites Recomendados:
http://www.wagnermorales.com/
http://www.robertobellini.com/
http://www.caoguimaraes.com/
Arthur Tuoto (http://www.arthurtuoto.com ) trabalha com vídeo, fotografia e novas mídias. Conta com exibições em mais de 40 festivais e exposições no Brasil e ao redor do mundo. Já publicou textos na Revista Muro, Revista Zoom e Revista Juliette. Mantém o blog Sans Soleil (http://sanssoleil.wordpress.com/) sobre estética e política.
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