Wim Wenders

A passagem do vídeo para o cinema não se resume a mudar de formato, apenas. As características da imagem eletrônica carregam diversas diferenças em relação à película fotoquímica, que vão muito além de texturas e definição, não permitindo aos realizadores audiovisuais uma postura indiferente.

O filme sempre será o passado que, assim, deve ser revelado. O vídeo, por sua vez, é instantaneidade. A imagem eletrônica se apresenta na hora, podendo ser exibida simultaneamente à captação ou até mesmo apagada ao simples toque de um botão. Está ligada ao cotidiano, ao volátil, ao fluxo de pensamento. E a produção que incita não foge disso. As possibilidades de experimentação são estimuladas pelo suporte e suas características: o tamanho reduzido, a economia, a menor importância dada ao planejamento (por ser simultânea e monitorada) valorizando o improviso (em relação ao cinema). A captação do movimento perde o seu caráter místico e ritual e se torna aleatoriamente instigante.

Cineasta adepto dos planos pictóricos e requintados, Wim Wenders vê no vídeo um contraponto ao cinema tradicional, sem se desfazer de suas características. Ele utiliza esse conflito entre naturezas de imagens diferentes como um recurso para trabalhar grandes possibilidades expressivas nos personagens, que “parecem estar sempre deslocados, em trânsito, despatriados, sem relações estáveis e duradouras” (CARVALHO, A MATSUZAWA,R 2008: p3).

Em filmes como Notas sobre Roupas e Cidades (1989), Tokyo Ga(1985) e Reverse Angle (1982) a instantaneidade permite a Wenders, sob alguma influência de Godard, a utilização de uma estética na qual a obra está desligada do conceito de “obra-prima”, não sendo necessariamente completa, estando mais ligada a um fluxo de pensamentos, a uma subjetividade do autor que vaza à tela.

Wenders viu os terrores da guerra, a perda da identidade do povo alemão, a utilização da potência expressiva cinematográfica como propaganda nazista, o estabelecimento de um caos de incertezas, a solidão de um agora que não necessariamente aponta para um depois (quiçá tranqüilo e planejado). Seu cinema reflete essa incerteza e essa insegurança – não necessariamente de uma forma negativa – e Wenders encontra na imagem eletrônica mais um meio de capturar de forma expressiva tais sentimentos.

O vídeo também se apresenta, em seu trabalho, retratando a naturalidade e o cotidiano dos artistas cubanos em Buena Vista Social Club, onde imagens superconstruídas, do cinema tradicional, seriam inadequadas para exemplificar a forma que esses artistas tratam sua arte: um cinema do agora para retratar uma música do agora.

Num intuito de exemplificar as constatações a respeito de Wim Wenders frente ao aparato cinematográfico, desenvolvem-se a seguir considerações acerca de algumas de suas obras.

Nick’s Film – Lightining Over Water (1980)

Em Nick’s Film (Lightining Over Water) os desdobramentos de um relacionamento que se desenvolve em meio a câmeras, equipes e maquinários, e que tem a morte constantemente presente nos diálogos e nas imagens, são expostos com seu potencial expressivo imersos na intertextualidade que brota das associações entre as mídias utilizadas. Cenas de vídeo, imbricadas em meio a película (35 mm), resultam em registros granulados, distorcidos, numa mutação constante da corporeidade da imagem. Esteticamente, a exploração do vídeo por Wim Wenders se dá num caminho que questiona a relação do próprio cineasta com a representação da realidade. A câmera de vídeo nos dá a impressão de estar ligada continuamente, registrando tempos mortos, transições e a postura de toda uma equipe que lida com o pesado equipamento do cinema tradicional. Segundo o próprio diretor, na montagem do filme foi que se constatou que “nessas imagens em vídeo havia muito mais verdade do que nas claras imagens de 35 mm”. A câmera de vídeo tem a peculiaridade de não necessitar de um sistema de uso tão exigente como a de 35 mm. Enquanto a câmera de maior porte interrompe a filmagem para uma troca de chassis, ou simplesmente para que os elementos em cena sejam devidamente capturados, a de vídeo, empunhada pelo diretor de fotografia (Tom Farrel), nos expõe através de imagens as entrelinhas de momentos nos quais a acessibilidade técnica da imagem eletrônica se torna construtora de significações. Enquanto as imagens em 35 mm são mais limpas e estabilizadas por um tripé, o espaço caótico da varredura eletrônica tem uma expressividade ligada à instabilidade, às mudanças de espaço físico, às transições e às discussões entre Wenders e Nick sobre a conduta que será tomada em seguida.

A metalinguagem é notada na obra através de um certo tom confessional colocado por Wenders quanto à impossibilidade de se fazer o filme, mediante ao exaurir da vida do próprio Nick. Tal problemática é bastante evidenciada nas várias situações em que ambos os cineastas estão em cômodos diferentes e Wim Wenders ouve calado as tosses e os resmungos de um Nick que lida com o câncer de pulmão. Em certas partes, o diálogo entre os dois apresenta a preocupação latente de Wenders em relação à sua atuação no processo de morte que suas lentes evidenciam naqueles momentos. Há um sensível esforço por parte de ambos os cineastas em demonstrar como estão organizando o filme e quais os caminhos que estão sendo tomados.

Outra aplicação das potencialidades desse sincretismo midiático pode ser notado nos momentos em que trechos de antigos filmes de Nicholas Ray (Nick) são projetados em uma sala de sua própria casa, estando a câmera de Wim Wenders no interior deste cômodo, registrando a exibição. No momento no qual We Can’t Go Home Again (Nicholas Ray, 1976) é projetado, Nick ressalta a utilização de variados suportes (35 mm, 16 mm, super-16, super-8) na composição deste filme. Dessa forma, um autor que utilizou de maneira inovadora as evoluções tocantes à construção da imagem participa de uma re-apropriação de imagens pré-existentes, articuladas por Wenders quando resolve colocar Nick diante de sua obra, ambos na diegese de uma outra obra fílmica que se desenvolve.

É interessante notar como Wim Wenders subverte os protótipos de documentário e ficção para nos revelar um hibridismo também de gêneros. Wenders nos apresenta uma espécie de diário filmado (idéia compatível com outras de suas obras como Quarto 666, Notas sobre roupas e cidades, Tokyo Ga) com características tais como: a subjetividade do enfoque, a metalinguagem, a experimentação, o processo de criação e o de imersão, o discurso em voz off/over (não autoritário) e a montagem multi-midiática, dentre outros aspectos.

Quarto 666 (1982)

Não deve haver alguém mais apto no mundo a falar sobre o que é fazer cinema do que, de fato, um diretor. E por que não 16 deles? É exatamente o que acontece nesta brilhante obra de Wim Wenders. Isso em meio a um Festival de Cannes, somado a um momento extremamente propício – o início da década de 80 – quando o vídeo e a televisão, já consolidados, vêm com força avassaladora, novas tecnologias tomando a frente do cenário audiovisual, parecendo, talvez, superar o suporte mais forte até então, o cinema. E é disso que o filme trata: Wim Wenders, talvez preocupado com essa situação, junta diversas opiniões intelectuais sobre o tema, gerando uma discussão sobre qual seria o futuro do cinema.

O filme se inicia com um belo plano fixo de uma grande árvore, também imóvel. Essa árvore, segundo a própria locução, trata-se de um cedro com idade por volta de 150 anos. Assim sendo, pôde acompanhar toda a história do cinema, desde o advento fotográfico aos dias de hoje.

Após essa breve introdução inicia-se uma série de depoimentos dos mais diversos diretores, cada um em sua própria língua. Jean-Luc Godard expõe sua opinião de forma nebulosa, mas consegue se fazer entender. Fala-nos que a TV alcançou esse status por ter nascido nos EUA, atrelada à publicidade. Para ele, o cinema pode até estar morrendo, mas “todos morremos”; Paul Morrisey concorda que a linguagem do cinema morrerá, pelo fato de, para ele, já terem definhado o romance, o teatro e a poesia. O cinema de hoje não mais enfoca os personagens. “A TV faz isso”; Mike de Leon compara a história do cinema com a história mundial, ou seja, a morte do cinema deve estar ligada à morte do mundo; Monte Hellman nos fala da perda da aura do cinema, exatamente por sua reprodutibilidade exacerbadamente facilitada, dizendo que não vai mais ao cinema com freqüência e grava os filmes em casa. Nunca os assiste, entretanto; Noel Simsolo diz de forma enfática que o cinema não morreu, mas hoje em dia as pessoas o fazem de forma imbecil. E desliga o gravador (presente no quarto) com uma certa raiva, talvez por não ter falado realmente o que queria. A câmera inibe; Herzog nos dá uma aula de mise-en-scéne: tira os sapatos e desliga a televisão, constante no cenário, para depois começar a conversar. Isso a fim de, posteriormente, poder nos mostrar que a televisão, por mais forte que seja, pode ser desligada se incomodar; nossa conterrânea Ana Carolina vai além a e cita a morte do autor; Spielberg faz questão de mostrar a que tipo de cinema está vinculado, o comercial, mesmo que apareça ali criticando-o. Fala apenas de cifras e dólares; já Antonioni, em pé, dá uma aula de cinema. Se há novas tecnologias aparecendo, com especificidades próprias, tudo o que se pode fazer é adaptar-se a elas; aparece, então, finalmente Wim Wenders, que ao invés de dar seu próprio depoimento, coloca uma foto de outro diretor, Yilmaz Güney, e seu respectivo depoimento, gravado em fita. Isso pelo fato de este não poder aparecer por ter sido extraditado em seu país. A opinião dele é que o cinema artístico está perdendo espaço para o cinema industrial e apenas conseguiria se manter com força se rendendo às regras financeiras desse outro cinema, não que isso seja necessariamente bom. É o último depoimento.

No final, vemos novamente aquela árvore, num outro enquadramento, sob outra iluminação. O enquadramento fixo, mostrando a árvore parada com carros passando parece dizer que apesar de o mundo mudar – como tudo no quadro muda – o cinema, assim como aquela árvore, permanece vivo e presente. Talvez num ambiente e momento diferentes, mais densos, mais escuros, como o próprio quadro final o é. Entretanto em pé e pronto para qualquer um que nele queira se apoiar. Espera somente, talvez, alguém que faça dele um bom uso e o ilumine novamente.

Paris, Texas (1984)

A partir dos anos 80 o modo de representação do objeto filmado, antes presente no cinema clássico com seus campos e contra-campos bem estabelecidos e planejados, passa a se desgastar, e as mais diversas estratégias inovadoras de decupagem e mise-en-scéne começam a surgir com autores preocupados com a preservação do cinema como linguagem criativa e original. Muita coisa já havia sido feita no meio cinematográfico. Os grandes mestres como D.W. Griffith, Sergei Eisenstein, Jean Renoir e Orson Welles já haviam explorado os conhecidos mecanismos que regem a relação da câmera com o objeto a ser filmado, e vice-versa. Suas geniais criações no campo da linguagem cinematográfica haviam sido reproduzidas e esgotadas pelos cineastas do mundo inteiro. Em época de forte desenvolvimento da linguagem do vídeo e da TV, poucos autores carregavam a ânsia de elaborar novas técnicas de trabalhar a questão do “olhar” no cinema.

Analisaremos aqui de que forma Wim Wenders, autor de constante inquietação da pesquisa de inovações tanto estilísticas quanto estruturais, se permite inventar um novo procedimento de construção cênica, quebrando com os padrões clássicos de direção no cinema. Em seu premiado filme Paris, Texas, reformulando o ato de filmar um plano clássico de reencontro entre um homem e uma mulher, Wenders problematiza a relação do cinema com suas próprias instâncias de produção ao criar uma interação cênica alternativa desse casal, usando como artifício para isso uma locação em um espaço de peep-show. De maneira extremamente criativa, o diretor coloca os atores encenando em dois espaços diferentes. Separados por uma tela-espelho, o personagem Travis conversa com sua mulher por intermédio de um telefone. O espaço de Travis é escuro, permitindo que ele veja sua mulher, no outro espaço (iluminado), sem ser visto. O recurso do campo e contra-campo não somente é interrompido pelos cortes como também por uma tela de vidro especial que permite esse inteligente jogo de luz e sombras. Através desse inovador dispositivo, Wenders cria uma belíssima seqüência dramática, de forte carga emocional. Ao mesmo tempo é repleta de originalidade, revolucionando a questão do “olhar”, da decupagem e da interpretação no cinema moderno dos anos 80.

Notebook on Clothes and Cities (1989)

A obra foi encomendada pela Pompidou, uma empresa francesa, que queria um filme sobre o “Mundo da Moda” no Japão. Wenders, então, escolheu Yohji Yamamoto, renomado estilista japonês, para ser o protagonista desse diário. Pela proposta nada exagerada, poderia se esperar um filme simples. Wim Wenders, entretanto, nos traz uma obra cheia de inquietações sobre o mundo além do referente à moda.

O filme se passa no final dos anos 80, período imerso à constituição de uma linguagem videográfica. O que Wenders faz é juntar essa nova linguagem com a cinematográfica, dando início a um hibridismo, uma aproximação de mundos distintos. Antes, até, da escolha da forma, o simples fato de um alemão, subsidiado por uma empresa francesa, fazer um filme sobre um japonês já se dá como um fato heterogêneo. A solução foi usar essa mistura formal e a língua universal, o Inglês, aproximando os séculos XIX e XX dos anos 80, o Ocidente do Oriente. Uma cena aparece como síntese dessa idéia: em uma mesa podemos ver, em primeiro plano, um livro de fotografia de Sander sendo folheado por Wenders e no fundo, do lado direito, um monitor com a imagem de Yamamoto, folheando o mesmo livro, mas no sentido oposto (no Japão lê-se assim), apresentando as “diferenças do Ocidental e do Oriental” (CARVALHO, A e MATSUZAWA, R p.5).

Foi em Filme para Nick que Wenders começou a usar o vídeo, mas parece que é em Notebook on Clothes and Cities que ele se convence dessa incorporação, mostrando filmicamente essas vantagens. Dentre elas estão: replay, zoom, possibilidade de maior número de takes de um mesmo plano, menor custo, mobilidade da câmera e menor intimidação perante o objeto fílmico. Wenders faz essas proposições confrontando imagens em película às de vídeo.

Em uma cena dos bastidores do desfile de Yamamoto, Wenders opõe uma imagem bem organizada de sapatos, em película, a um plano-seqüência em vídeo, no qual a câmera passeia em meio aos sapatos desorganizados.  É demonstrada nesse plano a mobilidade da câmera de vídeo, que permite uma imagem mais próxima da verdadeira, o plano-seqüência aproximando-a ainda mais do realismo de Bazin.

Em outra cena, o diretor se utiliza da mesma forma de contraposição para mostrar outra vantagem do vídeo: a possibilidade de mais takes para um mesmo plano. Yamamoto vai inaugurar sua loja e faz uma assinatura na entrada. A imagem em película é única, de assinatura em apenas um take; já em vídeo, ele assina e apaga mais de três vezes, possibilitando uma maior opção de escolha na montagem.

Entretanto, Wenders não deixa de questionar a imagem digital. Em algumas cenas, ele corta de um plano em vídeo para o mesmo plano aproximado em zoom. Com essa aproximação observam-se as linhas de varredura questionando a existência de uma imagem formada.

“A imagem de TV se ‘escreve’. Não é uma imagem unitária, já que se forma à base de linhas. Tentei fazer um filme que, de certo modo, seja lido ‘entre linhas’ (WENDERS, W A lógica das imagens: 1990 apud CARVALHO, A e MATSUZAWA, R 2008)

“Aprendemos a confiar na imagem fotográfica. Podemos confiar na eletrônica?” (WENDERS, W Notebooks on Clothes and Cities)

O ensaio, escrito por Luiz Gustavo Palma e José Eduardo Ruiz, foi realizado a partir de um seminário elaborado pelos mesmos e também Thiago Philipe Gonçalves, Matheus Cury e Nilo Arruda.

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