Paris, Texas (Wim Wenders, 1984)

A sutileza e a força de Wim Wenders

Por Felipe Abreu*

Travis (Harry Dean Stranton) está sumido há quatro anos, até que Walt (Dean Stockwell), seu irmão, recebe uma ligação dizendo que ele está em um hospital próximo ao México, no interior do Texas. Desorientado, praticamente mudo e sem lembrança de vários acontecimentos o protagonista é levado até Los Angeles pelo irmão. Em sua casa, Travis encontra Hunter, (Hunter Carson) seu filho. A partir disso, começa a se aproximar dele e vai à busca da esposa para tentar reconstruir sua família e a si mesmo.

Paris, Texas é o décimo oitavo filme de Wim Wenders e é até hoje um de seus mais reconhecidos e admirados. Conquistou quatorze prêmios, incluindo a Palma de Ouro de 1984. Com este filme, que conquista a qualquer um que o assiste, Wenders mostra mais uma vez a sua habilidade em apresentar narrativas envolventes e delicadas.

Um fator muito marcante neste filme é a narrativa que vai sendo construída aos poucos, junto com a memória do personagem principal. Sam Shepard constrói uma história que prende o espectador, que tem a cada momento novas informações reveladas, construindo assim uma trama envolvente e muito bem resolvida.

Esta revelação controlada permite nuances sutis no desenvolvimento do filme. É marcante acompanhar o crescimento e a recuperação de Travis. Um momento esplêndido do filme é a sua busca pela figura paterna. Folheia em revistas à procura de alguma imagem paterna e obtém, no meio do processo, a ajuda da empregada da casa, Carmelita (Socorro Valdez), que diz que só existem pais pobres ou ricos. Após decidir ser um pai rico, Travis é transformado na caricatura de um sujeito de classe alta. Chapéu, colete e andar decidido. E é com essa imagem completamente irreal que ele consegue estabelecer uma relação paterna com Hunter.

O humor sutil e delicado vai guiando o filme. Personagens muito bem construídos e com personalidades únicas constroem um envolvimento fantástico com quem acompanha suas histórias. O jogo entre a maturidade de Hunter e infantilidade de Travis em certos momentos é essencial para construir uma visão próxima e verdadeira de quem é visto na tela.

A trilha musical conduz com leveza as mudanças de clima da narrativa. Às vezes áspera e forte, outras leve e delicada, se posiciona perfeitamente na intensificação de climas e sentimentos. O blues tocado só com cordas se encaixa perfeitamente tanto na crueza do deserto quanto nos momentos mais tenros. Percebe-se a atenção especial dedicada ao som logo nos letreiros iniciais do filme. Nomes em um fundo negro acompanhados pelo blues triste que nos guiará durante toda a jornada.

O retrato das paisagens americanas feitas por Robby Müller é embasbacante. O fotógrafo faz questão que vejamos tudo. O único plano detalhe do filme é feito logo no início quando Travis fecha sua garrafa de água. Antes e depois disso temos imagens amplas e incríveis do deserto e das cidades americanas, a começar pelo plano geral de introdução, o deserto de Mojave visto de cima, belo e inóspito. A representação de Houston também marca. A vemos pelos olhos de Hunter, que observa os grandes e novos prédios que se contrapõe a amplitude do deserto visto pelo seu pai.

As cores também são impressionantes. Em todos os momentos há uma vivacidade absurda, que vai, junto com a trilha musical, construindo o clima do que está sendo representado. Vermelhos e verdes, fortes e saturados, dão o tom da fotografia interna, que se utiliza das cores citadas para construir o humor do protagonista e dos outros personagens. Um momento importante neste aspecto é quando Travis observa o encontro de Hunter com sua mãe de um estacionamento. Tudo está verde e não podemos ver o rosto de Travis escondido pela sombra. Essa coloração intensa deixa o espectador incomodado e triste, como o personagem.

No retrato das paisagens exteriores planos muito abertos e iluminados constroem uma consciência geográfica que impressiona pela beleza e pela força. Ver o deserto de maneira ampla e vermelha (as cores, apesar de não tão alteradas quanto nas cenas de interior, têm seu contraste e saturação destacados) nos deixa, de certa forma, com a mesma visão de Travis ao caminhar sem rumo por aquela vastidão.

O contraste e as sombras também estão muito bem colocados. Silhuetas e recortes que escondem rostos, mas mostram muito mais, fecham a construção de uma fotografia exemplar e original que deu a Robby Müller o prêmio de melhor fotografia em 1985 no “Bavarian Film Awards”.

O trio de atores que constitui o centro da trama tem atuações irretocáveis. Hunter Carson desempenha impressionantemente bem o papel de uma criança real como poucas vistas no cinema, o personagem é complexo e ele alcança tudo que lhe é demandado. Consegue manter momentos de maturidade e mantém a sutileza característica do filme quando é disputado pelos dois pais, Travis e Walt.

Harry Dean Stranton tem como grande momento seu diálogo com Nastassja Kinski(no papel de sua esposa Jane). A sintonia entre os dois é flagrante e auxiliada pela construção do espaço, pela fotografia e pela montagem constitui um dos diálogos entre um casal mais marcantes e originais do cinema. Nastassja não pode vê-lo e fica até certo ponto sem saber com quem fala, mas desde o início demonstra forte emoção em ouvir aquela história, de maneira delicada, porém intensa, ao disfarçar as lágrimas do “cliente”. Ao assumirem que falam um com o outro entra a grande participação de fotografia. As luzes se apagam para que possam se ver pelo vidro especial que os separa. A única luz que resta, de um abajur, é focada no rosto de Harry Dean e quando Nastassja se aproxima seus rostos de fundem formando um só, deixando o espectador de queixo caído. Deste momento até o fim do filme Nastassja se mostra uma atriz incrível marcando sua participação com uma força impressionante.

É raro encontrar na história do cinema um filme tão forte e delicado. Com atuações marcantes e um conjunto técnico impecável tem uma narrativa que marca a qualquer um que a vê, querendo seguir os personagens mesmo quando o último plano se apaga.

*Felipe Abreu é graduando em Audiovisual pela Universidade de São Paulo (USP).

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