Paris, Texas (Wim Wenders, 1984)

A reflexão pela música de Ry Cooder em Paris, Texas

Por Pedro Marcondes*

Wenders deixou a cargo do guitarrista norte-americano Ry Cooder a composição da banda sonora de Paris, Texas (1984), escolhendo sabiamente por um músico apto a transitar entre diversos gêneros musicais, sendo capaz de explorar ricamente influências da folk music e de outras vertentes sonoras típicas a porção sul norte-americana tais como o blues e a tex-mex music (também conhecida como música tejana, com raízes na cultura ibérica). Originário de Los Angeles, Ry Cooder tornou-se especialista na técnica de slide guitar (também conhecida como Bottleneck guitar, uma vez que no princípio o efeito era executado com o auxílio de uma garrafa deslizando pelas cordas do violão), característica fundamental que permeará fortemente a trilha sonora do filme, a começar pela introdução deste com a execução de trechos que retomam a canção “Dark was the night, cold was the ground” de Blind Willie Johnson.

A escolha de Ry Cooder para os primeiros minutos da película, a música mais famosa de Blind Willie, é também a mesma que relata a crucificação de Cristo. A melancolia e nítida “secura” do som apresentado pelo violão de Cooder trazem-nos paralelos com o árido clima texano, assim como a busca da redenção de um homem consigo mesmo em meio a desolação do deserto. É valido lembrar ainda que Blind Willie nasceu em Marlin, há apenas três horas de Paris- TX, podendo assim constituir-se como uma fiel representação diegética da música típica local, além de ser uma lenda do blues e um dos grandes mestres do slide guitar.

Ao longo de vários pontos do filme Cooder retoma Dark Was The night, Cold was the Ground (pude pontuar mais de vinte destas situações ao longo das duas horas e vinte seis minutos de obra), estabelecendo uma montagem conjunta aos grandiosos planos gerais do ríspido Texas apresentado a nós. Outro elemento curioso é que dificilmente diálogos são intercalados conjuntamente a música, quando se dá tal ocorrência geralmente são em desfechos de cena.

Blind Willie Johnson – Dark was the night, cold was the ground

Cooder opta também pela escolha da música Canción Mixteca do lendário conjunto de violinistas mexicanos Mariach Vargas de Tecalitlán (que ficou bastante conhecido por sua participação em mais de duzentas películas), deixando em vista as evidentes influências da tex-mex music e dos cantes regionais em concordância com o ambiente apresentado por Wenders. Curioso é que parcela desta canção é trazida ao público por intermédio da projeção de vídeos que apresentam o protagonista Travis Henderson (Harry Dean Stanton) sua esposa e filho em uma viagem ao litoral, com grande similaridade ao formato do vídeo-clipe. Durante a cena olhares entre pai e filho, permeando sentimentos como a insegurança e empatia em ambos, arrematam conjuntamente a toda mise en scène a constituição de um dos mais belos fragmentos apresentados por Wenders em Paris, Texas. Mesmo a letra de Canción Mixteca assinala fortes paralelos com a narrativa da obra e com seu protagonista (Como estou longe da terra/De onde nasci/Imensa nostalgia invade/Meu pensamento/E ao me ver tão só e triste/Como uma folha ao vento/Quisera chorar/Quiserma morrer de sentimento).

Cancion Mixteca

Entretanto é valido ressaltar que tanto Dark Was The night, Cold was the Ground quanto Canción Mixteca são apresentadas ao público como músicas instrumentais, executadas unicamente por um violonista, disposição a caracterizar a solidão e o sentimento de desencontro em relação ao que é coletivo, a redenção e reflexão individual (como em uma peça musical executada singularmente). Um outro fator que não deve ser ignorado é o “respeito ao silêncio” com longos planos marcados pela sonoridade ambiente (principalmente o vento) como um entendimento da reflexão pessoal (a percepção sonora de nosso meio).

Cooder angariou com Paris, Texas a indicação de melhor trilha sonora pelo BAFTA. Talvez seu grande mérito esteja fortemente vinculado ao cuidadoso trabalho conceitual desenvolvido com o ambiente apresentado na película de Wenders, utilizando-se de peças musicais de artistas regionais e explorando o minimalismo nos arranjos em paralelo ao contexto de desolação evidenciado (seja psicológico, seja físico por intermédio do deserto texano). No entanto a mais valiosa lição desta trilha, a que me custou algum tempo para que eu visse a refletir e compreender, é, sobretudo, a utilização da música como uma ferramenta cíclica, repetitiva, assim como sentimentos que invariavelmente nos invadem e perturbam. O mero uso estético do som está descartado em vista de uma harmonia que possibilite a reflexão e o compreendimento do outro.

*Pedro Marcondes é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos.

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