Por Marcella Grecco*
Faz um tempo que a conceituada revista eletrônica de cinema Contracampo realizou uma pesquisa entre mais de 100 pessoas relacionadas à arte cinematográfica pedindo a elas que listassem seus filmes nacionais prediletos. Mais do que um resultado qualitativo, esperava-se encontrar algumas mudanças com relação às outras listas do gênero outrora realizadas. Entretanto, aparentemente, a elite dos filmes nacionais não pretende ceder espaço neste ranking tão facilmente.
Até mesmo aqueles que não acompanham o cinema nacional de perto conseguiriam acertar alguns dos nomes da seleção: de Glauber Rocha tínhamos “Terra em Transe” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. “Vidas Secas” de Nelson Pereira do Santos e “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla também estavam lá. Não há como negar a importância histórica e cultural destes e dos outros filmes selecionados. Todos, cada um a sua maneira, apresentam um retrato fiel da realidade brasileira da época e, a maior parte, é representante do Cinema Novo, movimento que teve seu auge durante os anos 60 e objetivava a construção de um cinema nacional.
Jovens, preocupados não com a bilheteria e a produção em série de filmes, procuraram fazer cinema com o que testemunhavam. A proposta era um cinema moderno, livre da categoria de espetáculo e entretenimento, capaz de denunciar problemas e injustiças sociais. A Bahia e o Rio de Janeiro despontaram como grandes produtores desse novo cinema e temas como religiosidade, vida no sertão e miséria eram muito comuns. Ao retratar conflito e crise, um filme deste período merece destaque: São Paulo Sociedade Anônima, de 1965, faz jus à sua posição entre os 10 melhores filmes nacionais, apresentando um recorte bastante específico do Brasil, deixado de lado por outros cinemanovistas.
Escrito e dirigido por Luís Sérgio Person, o filme se debruça sobre a sociedade paulistana entre os anos de 1957 a 1961, coincidindo, quase que por completo, com os anos de mandato do presidente Juscelino Kubitschek. Pelo dia a dia de Carlos, interpretado por Walmor Chagas, acompanhamos a agonia e a angústia da classe média desta cidade em desenvolvimento. São Paulo é peça fundamental no filme e não mero pano de fundo; a cidade oprime, comprime, reprime, e, apesar do período de industrialização e otimismo financeiro, o caráter das pessoas parecia em involução.
Carlos não é um herói, um exemplo a ser seguido. Ele possui uma vida amorosa conturbada e passa por cima de certos valores para subir na vida. Luta por uma posição de prestígio. Faz parte da classe média e é subordinado à elite estrangeira que invadia o país na época. Ao mesmo tempo, explora a mão de obra do trabalhador para ter sucesso na carreira. Entretanto, também não é um vilão. É como se o fim justificasse os meios. Através de inteligentes jogos de câmera e uma perspicaz montagem, invadimos a intimidade de Carlos enquanto este relembra, como num diário, os últimos cinco anos de sua vida.
São Paulo Sociedade Anônima nos apresenta outro viés no Cinema Novo despertando a atenção para os problemas na grande cidade: desigualdade social, solidão, sentimento de impotência, repressão, angústia… Segundo Bernardet (1967) “é a denúncia dessa massa atomizada sem perspectiva, sem proposta, unicamente preocupada em elevar seu nível de vida e, portanto, inteiramente à mercê da burguesia que a condiciona. Em sua indefesa total, Carlos tem os braços abertos para o fascismo”.
Possuidor de uma estética moderna, o filme guia o espectador para a reflexão. Não há verdades absolutas e a noção de tempo é muito trabalhada. Carlos é solitário e introspectivo. Ele perambula, vagueia e tem um olhar cansado e desinteressado pela cidade: já faz parte do maquinário. Precisamos mergulhar no seu psicológico e dar sentido ao filme. Este é bastante regional e, talvez, alguns detalhes fujam da compreensão daqueles que não habitam na cidade, como a importância da Corrida de São Silvestre, por exemplo. No entanto, apesar deste caráter, configura entre os melhores filmes nacionais, mostrando que também é possível construir um retrato nacional basicamente pela força de um tema e a engenhosidade de um diretor.
Trecho do filme:
*Marcella Grecco é mestranda em Multimeios na UNICAMP.
Referências Bibliográficas
BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
RAMOS, Fernão (org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art/Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Algumas publicações enganam – se ao informar que a produção foi da Lauper. Na verdade foi da SÓCINE LTD sendo Produtor o RENATO MAGALHÃES GOUVEA. Há um livro básico da Editora Aplauso “Radiografia de um filme” de autoria do Ninho Morais.