Na Estrada (Walter Salles, 2012)

O filme de lugar nenhum

Por Renan Lima *

Uma imagem em movimento. Pés caminham sobre uma estrada de terra. O primeiro plano do novo filme de Walter Salles, adaptação da cultuada obra beat On the Road, de Jack Kerouac, traz pés cansados que caminham ofegantes sobre um árido chão de terra. Não existe referência. Um enquadramento que não dimensiona começo, meio ou fim, apenas um vazio de estrada preenchido por pernas ainda desconhecidas.

Depois de chegar e sair das mãos de alguns importantes diretores (Godard, Gus Van Sant e o próprio Coppola, produtor executivo do filme), a obra chega, enfim, às mãos do diretor brasileiro, especialista no gênero (road movie), com a responsabilidade de adaptar para o cinema uma obra, considerada por muitos, “indirigível”. A adaptação por si só, já era um problema grande para José Rivera (roteirista), ao adaptar um universo confuso e extasiante do alter-ego de Jack Kerouac, o personagem Sal Paradise. No livro, esse frisson de início do pós-guerra americano antecipa o “sexo, drogas e rock’n roll” dos anos 60, com uma história completamente efusiva, um claro sentimento de aproveitar o máximo hoje sem saber o que esperar do amanhã (carpe diem).

Sal Paradise (Sam Riley), após a morte do pai, conhece Dean Moriarty (Garrett Hedlund), um sujeito atraente que, por sua própria persona, ora calma e relaxante, ora enlouquecedora, o conquista imediatamente. Daí em diante ambos vivem aventuras, com amigos e garotas itinerantes, permeadas por drogas e experiências sexuais, atravessando o país em um automóvel.

Diante da obra de Kerouac e do cinema de Walter Salles já se criava, entretanto, um paradoxo. O cinema de Salles, explorador do gênero, possui certo puritanismo, certo receio em ilustrar imageticamente cenas de sexo e de violência. Em outras palavras, o choque se deu pelo histórico do diretor com filmes melhor cuidados e muito menos “sujos”, em contraponto com o extravasamento e eloquência que o livro pedia. Com capacidade e sorte, o filme ficou minimamente dosado pelo romance.

No repertório de Walter Salles algumas características são recorrentes: ausência da figura paterna e fortalecimento da materna (Central do Brasil, 1998 e Linha de Passe, 2008); trajetória enquanto metáfora de transformação, seja física ou emocional (Terra Estrangeira, 1995 e Diários de Motocicleta, 2004); e um olhar crítico para uma formação familiar desestruturada e, muitas vezes, arcaica (Abril Despedaçado, 2001). Em Na estrada, observamos um pouco de cada uma delas, em maior ou menor grau.

Existe no longa uma preocupação com o universo retratado e com a realidade da época que esses jovens estão vivendo. Logo no início, Sal e Dean vão a uma apresentação de Jazz no subúrbio de New Jersey, onde já se percebe um choque de etnias, não só  pela enorme presença de negros como pelo fato do espetáculo ser guiado por um, visivelmente cultuado pelo público. Nessa sequência, Salles faz uma homenagem bastante explícita a um filme do qual é assumidamente fã, Memórias do Subdesenvolvimento (1968), de Tomás Gutiérrez Alea. De qualquer forma, a riqueza desse choque entre brancos e negros ganha força no filme, pelo impacto visual e pelos diálogos, na naturalidade com que isso é encarado.

Dean, um bon vivant, mantém relações com algumas mulheres, como Marilou (Kristen Stewart), que se contenta com a condição de “amante” e Camille (Kirsten Dunst), que de início pensa viver um conto de fadas, mas, posteriormente com dois filhos para criar e o temperamento forte de Dean, vê sua vida transformada em um inferno.

O filme, como o livro, tem esses personagens bastante fortes e enigmáticos, mas envoltos em uma narrativa onde nada parece acontecer. Existem idas e vindas e o amadurecimento dos personagens é visível, mas não se percebe novas motivações, eles continuam cometendo as mesmas ações, diversas outras vezes. O que se constitui é uma reflexão de Sal a respeito de Dean e de seu pai, já que os dois, de certa maneira, acabaram abandonando-o: o primeiro de uma maneira mais física e objetiva, que deixa o amigo doente no México; o segundo, de um modo emocional e subjetivo, com a morte prematura,  deixando Sal e sua mãe. Dean, já no fim da jornada, bastante debilitado pela vida extasiante e pelo uso das drogas volta a procurar Sal, mas este, finalmente, se vê na condição de abandonar o amado amigo.

A trajetória de Dean e Sal, no filme de Salles, permite uma interessante metáfora com a “marcha para o oeste” (esse oeste idealizado na cidade de Denver). Eles se tornam desbravadores de um país a ser descoberto, bem como os heróis retratados nos westerns de Ford e Hawks. No caso de Na estrada, esse desbravamento está muito mais intrínseco ao sentimento de liberdade do que na busca pela riqueza, como se apresentava nos filmes de velho oeste.

A câmera na mão aproxima a narrativa de um caráter mais documental, com enquadramentos bem próximos aos rostos dos personagens e uma fotografia estilizada num amarelo árido que prioriza a luz natural. Mesmo nas internas, a câmera tenta ser esse terceiro olhar, numa tentativa um pouco vouyer de fazer parte de fato dos acontecimentos.

O trabalho de direção de arte do final dos anos 40 e início dos anos 50, traz uma reconstrução histórica com detalhes bastante verossimilhantes, seja nos objetos e na cenografia das casas dos personagens ou nos automóveis, bares, mercearias e outros ambientes bastante convincentes. A maquiagem, carregada até certo ponto, delineia certa “feiúra” e um ranço para esses personagens. Na casa de Old Bull Lee (Viggo Mortensen), todos estão meio sujos, meio cansados, parados no tempo, enfim, todos meio mortos. Entretanto, esse visual aparenta normalidade no contexto do filme, ninguém julga esse estado físico e emocional.

A montagem acompanha o ritmo alucinante da câmera frenética, que tenta não perder nada. Como falado no começo, a montagem é atuante no plano de pés caminhando em uma estrada de terra, no corte no eixo, na respiração de Sal, na pausa, no corte que respeita a imagem e não o contrário. Em momentos de respiro, principalmente com Sal, os planos são maiores e dão maior importância ao pensamento do escritor, enfatizado pela voz over. Na estrada, os cortes são mais rápidos e dão a dimensão do universo liderado por Dean, um ambiente livre e sem muitas regras.

O jazz dá o tom da trilha sonora que ocupa boa parte da história. O som do filme é também bastante carregado pela voz over de Sal, cansada e nostálgica, dos tempos iniciais de escritor e da amizade com Dean. O ruído forte dos chinelos de Sal em contato com a estrada, a aridez, e toda a ambiência de um clima semi-desértico, são representados por uma rica composição sonora.

Personagens bem construídos, frutos de boas interpretações, de todos os atores. A se destacar, Garret Hedlund como Dean, o personagem catalisador e ambíguo, que mantém relações com algumas mulheres, e eventualmente realiza desejos homossexuais para obter algum dinheiro. Esse fato deixa mais interessante a incerteza sobre a sexualidade de Dean, uma discussão que filme e livro não fazem mas que também não se julga necessária.

O filme passa longe do moralismo, mas a ausência de um olhar crítico, um tanto quanto questionador em determinadas sequências, acaba gerando certa superficialidade em determinadas situações, como quando Ed Dunkle (Danny Morgan) abandona sua esposa, ou quando Dean abandona Sal doente no México. Essas atitudes passam sem atenção pelos personagens e pelo olhar fílmico, como eventos desimportantes.

A obra de Salles é boa enquanto material cinematográfico, com uma técnica bastante apurada, de um cineasta com repertório bastante rico, entretanto, talvez o filme seja um pouco datado, adaptação de uma obra que foi mais importante no seu período do que hoje. Contudo, a obra escrita de Kerouac e a obra audiovisual são materias independentes. Importantes em alguma instância nos seus devidos tempos e para seus respectivos públicos: os beats e os estradeiros.

Renan Lima é graduado em Audiovisual pelo Centro Universitário Senac e atua como Assistente de Direção.

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