Sweeney Todd, o barbeiro demoníaco da Rua Fleet (Tim Burton, 2007)

O reino de Tim Burton não é deste mundo, mas mantém um compromisso rigoroso com ele. Como muitos representantes da estética romântica do século XIX, Burton conseguiu transformar o escapismo numa atitude criativa e crítica. Ganhamos muito se entendemos que a apologia da fantasia presente nos filmes burtonianos não é uma forma de alheamento do mundo, nem uma forma passiva de acomodação às circunstâncias; pelo contrário, é uma estratégia de leitura do mundo às avessas: o mundo paralelo que ele cria dá a medida do que nos falta aqui, ou do que aqui temos mas não precisaríamos.

Para concretizar essa leitura de mundo às avessas, Burton tem uma fórmula de base, que se repete ao longo de sua filmografia: rasgar o cosmo em dois mundos e pô-los em confronto, conferindo ao trespasse entre um mundo e outro a condição sine qua non da individuação (Jung), do crescimento interior das personagens. Assim ocorre com Jack, de O fantástico mundo de Jack, transitando entre a Cidade do Haloween e a Cidade do Natal; com Vitor, de A noiva-cadáver, transitando entre o Mundo dos Vivos e o Mundo dos Mortos; Com Charlie, de A fantástica fábrica de chocolate, confrontado a Londres em que se situa seu casebre com o mundo fantástico da fábrica de chocolate; com Ed Bloom, de Peixe Grande, dividido entre a fábula e o fato.

Essa transição entre um mundo e outro lembra o tema da viagem – e não de qualquer viagem, mas somente daquelas que alçam à condição de rito, por implicarem transformação interior do indivíduo, passagem de um status a outro. Assim, se quisermos reduzir o cinema de Burton a um denominador comum, podemos dizer que este denominador é a encenação de ritos passagem. Ritos que implicam sempre dilemas éticos.

Cisão entre mundos e dilemas éticos: se acrescentarmos a estes dois pontos o artificialismo da encenação (já se disse muitas vezes, ora como elogio, ora como crítica, que Burton é um cineasta de estúdio) entenderemos que Burton deve não só a estética romântica, mas ao expressionismo alemão. Longe de mim, não obstante a admiração que tenho por Burton, querer compará-lo, em termos de complexidade, a um Murnau.  Mas esta cisão de mundo, esta apologia do incomum, do esquisito, do disforme, do aberrante, tanto em Burton como nos expressionistas, está a serviço do questionamento de nossos padrões éticos. Não se trata, nem de longe, de um maniqueísmo simplificador. Tim Burton é um desses artistas, hoje raros na sétima arte, que empresta dignidade ao entretenimento. Se hoje é possível demarcar um ponto eqüidistante entre o “cinema de autor” e a indústria da diversão cinematográfica, sugiro que este ponto atende pelo nome de Tim Burton.

Para habitar este mundo cheio de suspeições, Burton criou personagens que trazem inscritas em si, no corpo e nos gestos, as marcas desse mundo dilemático, personagens em que interior e exterior se negam continuamente: os feios de alma nobre; os mortos mais ativos e humanos que os vivos e toda uma galeria de inadaptados sociais. A este respeito, sugeri em outro texto[1] que os monstros e os humanos esquisitos que povoam o cosmos burtoniano são, em maior ou menor grau, reedições do Corcunda de Notre-Dame, figura que sintetiza a fusão, preconizada pela estética romântica, entre o sublime e o grotesco. Burton faz de seus esquisitos protagonistas, figuras sublimemente grotescas, seus alter-egos, doando-lhes uma dignidade humana e moral ímpares. É difícil não se render a figuras como Edward (o Mão-de-tesouras) ou Vitória (a noiva-cadáver). Mas se Edward e Vitória representam diferentes facetas de Burton, o que dizer da personagem Sweeney Todd?

Sem dúvida, o filme Sweeney Todd (2007), visto sob o ângulo da construção estética, é obra claramente da lavra burtoniana; desta vez, a fusão entre o sublime e o grotesco se encarna num musical com elementos do gênero gore (a explosão incontida de sangue) cuja evolução, como em outros filmes do diretor, depende menos do enredo (previsível até certo ponto) que do construção do ambiente e da composição do personagem, isto é, a mise-en-scène é que se encarrega prioritariamente dos simbolismo e das sutilezas[2]. Do ponto de vista da fabulação, também é fiel ao receituário burtoniano da encenação de um rito. Mas neste filme o dilema ético debatido nos deixa órfãos de uma catarse que estávamos acostumados a vivenciar nos filmes de Burton. Era fácil nos identificar com Edward, com Jack e com Vitória: feios talvez, deslocados certamente, esquisitos ao extremo – mas todos senhores da razão, todos com propósitos edificantes, todos, em maior ou menor grau, vítimas. Sweeney Todd, mais um protagonista de Burton encarnado pelo impagável John Deep, não permite esta catarse fácil. As fábulas de Burton – seus filmes, animações ou não, encenam o rito sob estrutura da fábula –  sempre foram cruéis, no sentido de não afastar o feio e a dor do seio das relações amorosas ou familiares; mas Sweeney Todd acresce a esta crueldade um ceticismo implacável, pois agora a viagem não cura nem melhora: é a vingança que dá o último grito.

Van Gennep, numa obra pioneira[3], aponta que o rito de passagem constitui-se de três momentos básicos: separação, margem e agregação. Deslocando a idéia do eminente antropólogo para o nosso foco de interesse, podemos simplificadamente dizer que, em muitos dos filmes de Burton, testemunhamos inicialmente a desagregação do herói de seu mundo habitual (separação); após isto, vem uma fase de isolamento e purgação do indivíduo em outro espaço (margem); por fim, o herói se reincorpora ao seu mundo inicial com um novo status (agregação). Ora, esse período de marginalidade do herói, nos filmes de Burton anteriores a Sweeney Todd, era de uma purgação positiva para o protagonista. Jack, ao retornar da Cidade do Natal para a Cidade do Hallowen, cresceu interiormente; o mesmo se diga de Vítor, depois da visita ao Mundo dos Mortos. Em relação ao personagem Sweeney Todd não se pode dizer o mesmo; depois de 15 anos longe de Londres e de sua amada, graças aos desmandos de um juiz prevaricador, ele volta cheio rancor e com sede de sangue.

Em Sweeney Todd, Burton não mostra como foi a experiência do herói na margem, isto é, não mostra uma única imagem da estada de Sweeney na Austrália. Este detalhe é significativo se lembrarmos que em filmes como O estranho mundo de Jack, A noiva-cadáver e A fantástica fábrica de chocolate, a margem onde o herói purgava – o “outro mundo” que a viagem lhes proporcionava – era indispensável ao desenvolvimento das histórias. Jack precisava comparar seu mundo ao do Papai Noel; Vitor precisava comparar o Mundo dos Vivos ao dos Mortos; Charlie sua pobre casa à encantadora fábrica de Willy Wonka. E por quê? Porque é este confronto de mundos que propicia a individuação dos personagens. Se, portanto, Burton não filma o “outro mundo” em Sweeney Todd – isto é, a Austrália – duas ilações podem ser tiradas: 1) como já dissemos, o personagem Sweeney Todd não amadureceu lá, ao contrário, tornou-se uma pessoa pior; 2) não é possível estabelecer uma contraposição entre os dois mundos – Inglaterra e Austrália -, pois ambos são mundos degradados. Apenas nas memórias de Todd, quando este ainda vivia ao lado de sua amada, e no sonho idílico da senhora Lovett é possível estabelecer um contraste com este pesadelo monocrático que é a Londres que Sweeney habita (contraste este que a fotografia representa brilhantemente).

É bem verdade que, no desfecho, salvam-se a criança (Toby) e o casal de apaixonados (Anthony e Johanna). Mas o sacrifício que Toby faz para salvar-se, de alguma forma, macula sua pureza. Resta a possibilidade de redenção por meio de um amor entre escombros, amor que Sweeney, mais por conta de sua hybris que por maldade dos homens, foi incapaz de sustentar. O vermelho de Sweeney não é o da paixão, não “vem do coração”, mas salta em jatos espetaculares das jugulares de suas vítimas, numa fúria e intensidade proporcionais à sua sede de vingança[4], rompendo o monocromatismo que é a marca exterior daquela Londres e o selo interior de seus mesquinhos habitantes.

Wanderson Lima é poeta e ensaísta. Professor de literatura da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. É co-editor da revista dEsenrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog O Fazedor (http://blogdowandersonlima.blogspot.com/).


[1] Ver o meu texto “Burtonland”, em que esboço uma visão de conjunto das singularidades do universo fabular de Tim Burton. In: revista dEsEnrEdoS. Disponível em: <http://www.desenredos.com.br/ensaio_wander_38.html>

[2] Luiz Carlos Oliveira Jr., no ensaio “Retrato de Mortos-Vivos”, chama Burton e os irmãos Coen muito convenientemente de “cineastas do retrato”. Segundo Oliveira Jr., “os cineastas do retrato privilegiam a arte da descrição sobre a idéia de narrativa. O que lhes interessa, acima de tudo, é uma maneira de descrever e aprimorar as figuras. Mais do que a ação, eles devem sublinhar a máscara, os jogos de aparência, os detalhes de vestimenta, os maneirismos do personagem”. In: revista Contracampo. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/91/artretratos.htm>.

[3] VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.

[4] Apenas quando Sweeney corta a garganta da “mendiga” Lucy Barker, sua esposa que fora tomada pelo juiz Turpin, e que ele julgava morta, não se assiste ao espetáculo de jorro de sangue. O simbolismo aqui sugere que a vingaça volta-se contra o vingador, destrói o destruidor, transforma o ódio em remorso.

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