Má Educação (Pedro Almodóvar, 2004)

Má Educação: afirmação e reformulação em Almodóvar

Não é difícil pensar em Pedro Almodóvar ao se falar em cinema espanhol contemporâneo. Pelo contrário. Aos 59 anos, o diretor de Castilla – La Mancha contabiliza mais de 16 longas metragens finalizados, uma série de curtas pra cinema e TV e é reconhecido não somente na Espanha, mas em todo lugar que sua obra é exibida. Famoso pela estética, pelas temáticas polêmicas que aborda e por suas personagens femininas – histéricas, sensuais, fortes, imaturas, sensatas, divertidas, dramáticas, extremamente humanas – Almodóvar, ao longo de mais de 30 anos de carreira, variou o tom crítico e “alternativo” de suas obras. Seus primeiros filmes, intimimamente relacionados com o movimento da Movida Madrileña, apresentam personagens e tramas bastante peculiares. Tabus da sociedade, dramas familiares, desejos e anseios pessoais: Almodóvar se consagrou com seus melodramas coloridos, apimentados, quase sempre com um toque de humor, pelo modo como dirige e sua proximidade com as atrizes que encarnaram personagens inesquecíveis, muitas delas declaradamente musas do diretor: Carmem Maura (Pepa de Mulheres a beira de um ataque de nervos, 1988), Penélope Cruz (Raimunda de Volver, 2007), Cecília Roth (Manuela de Tudo sobre minha mãe, 1999) Victoria Abril (Andrea Caracortada de Kika, 1993), Marisa Paredes (Becky Del Parámo em De salto alto, 1991).

Apaixonado por cinema, Almodóvar costuma citar outros filmes e diretores em sua obra. A cada filme novo lançado, críticos e fãs se debruçam sob sua filmografia em busca de suas marcas autorais, das temáticas que o diretor resgata de seus antigos trabalhos para repensar, reformular e, por fim, recriar. Nesse sentido, os filmes de Pedro não são vistos somente como obras em si, mas componentes de uma filmografia, uma trajetória que acusa mudanças e afirmações de como compreender e lidar com o mundo e com a sétima arte.

Má Educação (2004) chama a atenção por suas diferenças e semelhanças com o resto da filmografia de Almodóvar. Ausente de humor e com toques de noir, a narrativa é centrada nos conflitos entre personagens masculinos, características estas que destoam, em certa medida, do resto da filmografia. Má Educação, entretanto, é facilmente reconhecida como obra de Almodóvar. Tendo como tema central um caso de pedofilia ocorrido em um colégio interno administrado pela Igreja, o filme traz o que talvez seja a maior marca do espanhol, termo chave para entender seus filmes, o que virou o próprio nome de sua produtora: o desejo.

O palco, a TV, os camarins, a vida de quem interpreta, são temas que aparecem freqüentemente em suas obras. A narrativa de Má Educação conta com a construção de um filme dentro de outro. Almodóvar costura, dentro de sua obra, a obra de Enrique Goded (Fele Martínez), o personagem cineasta. Enrique recebe das mãos de Angel (Gael Garcia Bernal) o roteiro de “La visita”. Angel diz ser Ignácio, um amigo de colégio de Enrique, seu primeiro amor. Separados na época, o cineasta já não o reconhece: algo o impede de acreditar que Angel – seu nome artístico, sendo ele ator – seja mesmo o garoto por quem se apaixonou e do qual foi afastado. Pelos enquadramentos, a trilha musical, a interpretação de Bernal, Angel é um personagem misterioso e obscuro e Enrique, na figura de um detetive, intenta descobrir a verdade.

“La visita” fora escrita pelo verdadeiro Ignácio (Francisco Boira) que tornou-se um travesti viciado em heroína e relata os acontecimentos de sua infância no colégio. Quando pequeno, o garoto, que retribuía os sentimentos de Enrique, era assediado pelo diretor do colégio, padre Manolo (Lluís Homar). O desejo do padre pelo garoto o leva a expulsar Enrique do colégio. Angel é, na verdade, irmão de Ignácio. Este chantageava padre Manolo com o roteiro que escreveu, ameaçando contar tudo à imprensa sobre o crime do padre. No reencontro com Ignácio – que perdera por completo suas feições angelicais de quando era criança – o padre conhece Juan (Angel) por quem se apaixona e juntos, os dois tramam a morte de Ignácio e Angel. Juan com o roteiro em mãos e se passando pelo irmão, busca Enrique no intuito de conseguir um papel em “La visita”.

Diferentemente de 8 e 1/2 (1963) de Fellini, no qual não se sabe, devido a uma construção de estrutura em abismo, quando o filme é de Guido, o personagem cineasta, quando é de Fellini, diretor de 8 e 1/2, Almodóvar articula Má Educação e “La visita” – que Enrique acaba por rodar, com Angel interpretando a si mesmo, ou melhor, a Ignácio, que no roteiro torna-se Sahara, um travesti que interpreta Sara Montiel – de modo a deixar claro qual filme é o seu e qual é o de Enrique Goded . As transições, de uma narrativa a outra, se dá por meio de artifícios pouco sutis: máscaras, tipografia trabalhada – as letras dos créditos, vermelhas e instáveis, lembram cortes e sangue – transposição de um rosto para outro – dos garotos jovens aos personagens adultos – plano que se parte ao meio, como uma folha rasgada, entre outras intervenções gráficas que, somadas à direção de arte e fotografia, tornam Má Educação um espetáculo visual.

O colégio interno, como palco do crime de padre Manolo, é na verdade um fator representativo dentro do filme. A Espanha, em toda sua beleza, cores e sabores, em sua tradição e contradição, está longe de ser mero pano de fundo na filmografia de Almodóvar. O diretor faz de seu país personagem central e atuante nos conflitos que se desenrolam.

Má Educação coloca em debate o papel da religião na formação dos indivíduos, a pedofilia, a ganância, o desejo, o vício e até mesmo, em determinada cena, o estupro, retratando-os – uns em maior medida, outros em menor – como questões a serem repensadas, encaradas com um novo olhar.

Longe de ser a melhor obra de Almodóvar, o filme é, todavia, um contraponto aos que afirmam que o diretor tornou-se simplesmente repetitivo em projetos cada vez mais caros e que seus filmes perderam a pulsão de antes, o olhar desafiador. Almodóvar, em suas revisões, demonstra mudanças em seu modo de olhar a Espanha e suas obras, mas ainda está distante de cair na mediocridade de muitos autores que já somam décadas de atuação no cinema.

Juliana Panini Silveira é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Este post tem um comentário

  1. Author Image
    Marcos

    Texto muito bom e tirou uma duvida minha sobre essa diferença entre 8 1 / 2 e Má Educação.

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