A Pele – Um Retrato Imaginário de Diane Arbus

– Um pouco sobre o filme

“…e Alice só gostava das coisas extraordinárias.” (Lewis Carroll – Alice o País das Maravilhas)

Esta frase de Lewis Carroll¸ não define somente o universo da personagem Alice, mas também o da fotógrafa norte-americana Diane Arbus que teve sua biografia adaptada para filme A Pele – Um Retrato Imaginário de Diane Arbus (Steven Shainberg, 2006).

Fiz esta comparação entre Alice e Diane Arbus pela seguinte razão: os realizadores de A Pele se utilizaram dessa definição, que Diane deu ao seu trabalho: ela o via como um Alice no País das Maravilhas para adultos. E Alice é história favorita de Diane, tanto na infância, quanto na fase adulta. Há diversas referências à história de Lewis Carroll (em objetos, figurino, cenário e diálogos), algumas sutis e outras nem tanto, durante todo o filme. Elas começam a aparecer quando Diane se descobre fotógrafa, pois é a partir dessa descoberta que ela pára de se sentir deslocada e o seu mundo se torna tão maravilhoso quanto o país de Alice.

Os termos “retrato” e “imaginário” do subtítulo antecipam o será visto no filme. Retrato “é uma pintura, fotografia ou outra representação artística de uma pessoa” (Wikipédia). Grande parte da produção fotográfica de Diane é constituída por retratos de pessoas que estavam fora daquilo que chamamos de “normalidade”: são irmãs siamesas, anões, travestis, gigantes… O incomum sempre a encantou, logo ela, tão “normal”, vivendo naquele mundo dito “perfeito” de classe média estadunidense… Ou seja, o subtítulo “brinca” com o fato do filme ser um retrato – representação – de uma retratista. Já o termo imaginário brinca com fato de não haver aquele realismo tão valorizado na grande maioria dos filmes biográficos. O espectador já sabe que aquela não será uma adaptação realista, tornando o filme ainda mais curioso, a meu ver. O seguinte letreiro nos créditos iniciais reforça o subtítulo: Este filme fala de Diane Arbus, mas não é uma biografia histórica. Arbus viveu de 1923 a 1971, e é considerada por muito, uma das maiores artistas do século XX. Certamente, seus retratos modificaram a fotografia americana para sempre. O que estão prestes a ver, é um tributo a Diane: um filme em que inventa personagens e situações que estão além da realidade para expressar talvez o que tenha sido a maior experiência interior de Arbus em seu extraordinário caminho.

Penso que esta “livre adaptação” seja mais condizente com Diane ao invés de ser um filme que propõe “narrar os fatos reais”, uma vez que o termo “convencional” não combinava com a fotógrafa. Sem contar que descrever fantasticamente a experiência particular de alguém é um ato extremamente perigoso, é a visão particular de alguém em relação à experiência particular de outro alguém : é algo invasivo, de certa forma.

– Barthes e Bellour em A Pele

Olhar, gravar, inscrever, reproduzir, imitar, revelar, imaginar” (Bellour, p. 75)

O objetivo deste texto é olhar o filme a partir dos conceitos encontrados nos livro A Câmara Clara (Roland Barthes) e em trechos do livro Entre-Imagens (Raymond Bellour). Escolhi quatro fragmentos do filme para melhor elucidar esta minha percepção:

§         Cena 1: Diane e Allan, seu marido, estão no estúdio fotografando modelos para uma propaganda.

A cena começa com Allan pedindo a opinião de Diane sobre o enquadramento (seis modelos impecáveis, trajando roupas de donas-de-casa de classe média, passando roupa), eles entram por baixo do pano e há um corte para um plano próximo do rosto dos dois e outro corte para a subjetiva deles de dentro da câmera (por baixo do pano), então vemos as modelos enquadradas, um pouco difusas e de cabeça para baixo. Neste momento, ouvimos Allan dizer: “Os clientes vão amar.” Vê-se novamente o rosto de Allan e Diane e ela diz: “Vá em frente, tire a foto.” A subjetiva de dentro da câmera volta e então vemos, a objetiva sendo encaixada . Há outro corte para as modelos e então, percebemos que a foto foi tirada, pois ouvimos o som do flash e vemos um rápido fade in white (tal como a luz de um flash disparado).

Escolhi esta cena por dois motivos, o primeiro deles é porque o espectador compartilha da visão do Operator (o fotógrafo). Barthes comenta em seu livro que não conheceu a foto sob a perspectiva do fotógrafo, uma vez que não chegou a entender aquela emoção, pois não bastava ter uma câmera fotográfica, o autor defende que é necessário que haja o domínio da técnica. Não se está sendo discutida a “beleza” da foto, uma vez que amadores também podem tirar fotos “bonitas”, porém, eles não têm a real dimensão do processo físico do fazer fotográfico. O espectador pode não ter o domínio da técnica, mas entende que para que aquela foto exista, é necessária toda uma construção (o studium, de acordo com Barthes) o posicionamento das luzes, da câmera, a escolha da lente… Ou seja, o espectador entra em contato com o studium do fotógrafo no momento em que a foto foi feita: “Reconhecer o studium é fatalmente encontrar as intenções do fotógrafo, entrar em harmonia com elas, aprová-las, desaprová-las…” (BARTHES, p. 48), o que faz com que o espectador passe a entender as intenções do fotógrafo, ao invés de ficar imaginando-as ao entrar em contato com a fotografai revelada.

O outro motivo que me fez escolher esta cena foi o fato das modelos estarem completamente estáticas, tal como uma fotografia, o que me fez pensar em Bellour: “Se nesse movimento com o qual se procura sem cessar animar sua terrível fixidez, o cinema ganhasse condições de pensar em desacelerar o seu?” (p. 78). Antes mesmo da foto ser tirada, o espectador sabe que aquelas modelos sorridentes serão fotografadas exatamente do modo como elas aparecem (o plano da subjetiva de Diane quando Allan pede sua opinião). Eu sei que aquele momento em que elas aparecem é formado por 24 frames por segundo, porém, tenho a sensação de que é apenas um único frame, justamente pela “imobilidade” das garotas. Ou seja, o cinema “desacelerou”, ou pelo menos se tem esta ilusão nesse momento do filme, indo contra essa frase de Bellour. Sendo A Pele um filme sobre uma fotógrafa, essa “desaceleração” a meu ver, é uma forma de lembrar de que o cinema – a imagem em movimento – provém da fotografia – imagem estática. Isso se repete em outro momento do filme que será abordado daqui a pouco (o retrato de Lionel).

§         Seqüência 2: Diane com a venda nos olhos.

“…fechar os olhos é fazer a imagem falar no silêncio.” (BARTHES, p. 84). Esse trecho de A Câmara Clara é perfeito para este momento do filme, pois esta seqüência em que Diane coloca a venda em seus olhos, é o momento em que ela passa realmente a entender o porquê de se sentir incompleta, foi quando ela deu vazão aos seus pensamentos e se libertou de convencionalismos (herança de sua criação) que a impediam de fotografar aquilo que realmente a tocava, ao invés de ficar à sombra do marido.

São três etapas para esta “libertação”: Diane entra na piscina, é como se fosse a primeira etapa para que imergisse num outro mundo. Segunda etapa para essa imersão: antes de entrar na piscina, Diane havia tomado um chá – penso que este chá seja de alguma substância alucinógena (como se isso também fosse necessário para a “libertação”) – pois a visão que ela tem é extremamente surreal; sendo ainda uma referência ao líquido que Alice bebe e a faz diminuir de tamanho. A terceira e última etapa, é o retorno de uma lembrança de quando Diane era uma menina de aproximadamente cinco anos de idade. Quando Diane está dentro da piscina começa a ter a seguinte visão: há um coelho branco, um corte, e então vemos um animal empalhado, câmera faz uma leve pan, é quando vemos Diane com um olhar aterrorizado: ela está numa sala com seus pais. Uma empregada entrega para ela uma bandeja em que há um guaxinim morto, na pata do animal há uma chave dourada. Em Alice a chave dourada abria uma porta para o jardim da Rainha de Copas, encontrar esse jardim foi a meta de Alice quando estava vagando pelo País das Maravilhas. A chave dourada de Diane abre uma pequena porta e dessa porta ela vê um filme sendo projetado na parede do quarto de quando ela ainda era menina, o filme projetado é a lembrança de quando ela percebe que se interessa pelo “diferente”, mas não pôde levar isso adiante, pois a mãe a repreende, então passa a ignorar esse seu interesse até o momento em que encontra Lionel.

§         Cena 3: Diane com Lionel na casa de Scarlett (a dominatrix).

É uma cena curta que me fez pensar sobre o punctum (um determinado elemento da fotografia que punge, toca, quem a vê). Anteriormente comentei sobre o studium do fotógrafo, agora me utilizo desta seqüência para discorrer sobre o que seria a foto a perspectiva do Spectator. A fotografia em si, não existe nesta seqüência, porém, há uma fala específica de Diane que logo me remeteu ao comentário de Barthes em relação à foto de James van deer Zee: Retratos de Família (1926).

Lionel (Robert Downey Jr) leva Diane ao apartamento de Scarllet, é a primeira vez que eles saem do prédio. Scarlett os recebe vestindo meias-calça e espartilho, seus seios estão à mostra. Logo vemos que ela é uma dominatrix, dentro do apartamento está um homem nu, calçando um sapato social e meias pretas. Ele é calvo, magro e menor que Scarlett.  Enquanto Diane e Lionel estão sentados no sofá, Scarlett passa a dançar com o homem. Diane observa encantada. Então, Lionel pergunta para Diane se ela quer ir comer alguma coisa, ela responde “Agora? Não quero ir a nenhum lugar agora. Isso é fantástico!” E comenta depois: “Veja as meias dele.” Interessante que dentre toda a cena o que mais chamou a atenção de Diane foram as meias dele, simples meias pretas e sociais. Havia todo um studium, pode-se dizer, Scarlett, a dominatrix, com maquiagem e roupas chamativas, ele nu e menor que ela – isso foi o punctum para mim, pois realçou ainda mais a relação de submissão dele ante a Scarlett, houve uma “inversão” de papéis, própria dessa relação dominatrix/dominado – mas para Diane o punctum, caso aquela cena fosse fotografada, seria as meias dele. Da mesma forma que para Barthes, o punctum foi os sapatos de presilha da negra grávida, em pé atrás da poltrona na fotografia de James Van Deer Zee.

§         Cena 4: o retrato de Lionel.

Esta citação de Barthes se encaixa perfeitamente no que pretendo analisar nesta seqüência: “…o punctum é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um futuro anterior cuja a aposta é a morte.” (p. 142) Quando li A Câmara Clara pela primeira vez, lembrei deste filme, não exatamente por esta passagem, mas o livro como um todo. Então reli e fiquei impressionada com este trecho, pois ele é a síntese de tudo o que pensei em relação A Pele: vemos Lionel morrer duas vezes durante o filme, a primeira é quando olhamos o seu retrato e a segunda quando ele “some” no mar.

Lionel é apresentado aos poucos aos espectadores. Ele é o principal personagem criado para expressar talvez o que tenha sido a maior experiência interior de Arbus em seu extraordinário caminho o primeiro retrato de Diane. Isso volta à questão do studium, pois me fez pensar no processo de construção da foto, não em si na técnica, mas na questão das intenções do fotógrafo. E no caso de Diane, há a seguinte frase dita pela própria: “Para mim o sujeito de uma fotografia é sempre mais importante que a fotografia. E mais complicado…” Ou seja, Lionel, pode ser uma metáfora de como a fotógrafa se relacionava com os seus spectrum (objetos fotografados): estabelecendo uma relação de confiança.

A hora do retrato é outro momento em que novamente, o cinema se “desacelera” (como comentei anteriormente), a cena se desenrola da seguinte forma: Lionel se senta na cadeira, olha fixamente para Diane que está sentada na sua frente. (campo/contra-campo) Ela prepara a câmera. Plano próximo de Lionel. Som do flash. Fade in white e então vemos o retrato surgindo, não é algo instantâneo, mas sutil. Ele fica estático por alguns segundos. (Seria um único frame?) Há um fade out wihte e o corte para a seqüência da praia.

Diane sabia dessa morte dupla (diegeticamente), daí a seriedade da cena, confusão de sentimentos deve tê-la acometido – “o fotógrafo tem que lutar muito para que a fotografia não seja a morte.” (BARTHES, p. 28) – confusão que também atinge o espectador. Aquele foi o único retrato que Diane fez de Lionel, uma vez que ela tentou fotografá-lo durante todo o filme, mas nunca chegou a concretizá-lo (o espectador suspeita mas não tem certeza, pois apesar dela sempre levar a câmera ao visitá-lo, nunca a vemos fotografando e em um certo momento, ela esconde vários filmes, então questionamos o porquê de esconder, o que aumenta a nossa suspeita, então descobrimos que eram apenas fotos do prédio, quando Allan, num ato de ciúme, as revela).

–          Considerações finais

Essas são as duas vias da fotografia. Cabe a mim escolher, submeter seu espetáculo ao código civilizado das ilusões perfeitas ou afrontar nela o despertar da intratável realidade.” (BARTHES, p. 175)

Diane escolheu afrontar, daí o reconhecimento em relação ao seu olhar diferenciado do mundo… Ela fotografou a realidade que a sociedade estadunidense – grande admiradora de ilusões – fazia questão de ignorar.

A Pele só não é um filme excelente por não afrontar por completo, do mesmo modo como fez Diane. Os realizadores imaginaram e representaram a experiência pessoal de Diane ante a sua entrada no mundo da fotografia, o que é uma proposta incomum, mas não estenderam essa inventividade em relação à linguagem cinematográfica, pois A Pele é um filme clássico, de enquadramentos comuns em sua maioria, com uma montagem linear e um recurso comum para prender a atenção do espectador: a relação entre Diane e Lionel ser um romance. No entanto, o filme se encaixou perfeitamente com o que eu pretendia analisar, utilizando-me de  algumas das idéias de Bellour, mas sobretudo, dos conceitos apresentados por Barthes em A Câmara Clara, ou seja, o punctum e o studium, a necessidade de tampar os olhos para que consiga ver e também a questão da morte ao se fotografar… Dentro desse viés A Pele ganha uma nova cor, tornando-se grande e válido de ser assistido.

–          Fotografias de Diane Arbus

(Child a toy hand in Central Park – 1962)

(A woman with pearl necklace and earrings – 1967)

(A jewish giant at home with his parents – 1970)

Bibliografia

CARROLL, Lewis, Alice no país das maravilhas, São Paulo, Editora Brasiliense, 1972

BARTHES, Roland, 1915-1980. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1997

BELLOUR, Raymond Entre-Imagens, Editora Papirus, Campinas – São Paulo, 1997

http://www.greeneone.net/arbus/

http://www.artphotogallery.org/02/artphotogallery/texte/arbus_text.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Retrato

http://pt.wikipedia.org/wiki/Diane_Arbus

http://www.imdb.com/title/tt0422295/

Ana Caroline Bittencourt é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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Este post tem 5 comentários

  1. Author Image
    Eduardo FIdeles

    Assisti ao filme e é realmente impressionante a sensibilidade de Diane ao perceber a essência das pessoas e lugares e retratá-la em suas fotografias, colocando o personagem como a parte mais importante da fotografia e não somente esta em si

  2. Author Image
    Pimentel

    Ótimo artigo, eu já tinha visto o filme, mas não conhecia Daiane.
    Pesquisando para um trabalhao da faculdade encontrei esse artigo que me ajudou bastante. Tanto para saber de Daiane, quanto para descifrar algumas partes do filme que passaram por mim sem serem decifradas.

  3. Author Image
    marcos

    teu texto é muito bonito e eu fiquei com mais vontade de ver esse filme depois de ler seu texto! um abraço!

  4. Author Image

    O filme é angustiante e instigante… apesar de um certo descorforto não consegui parar de vê-lo, rsrs
    Depois fui rever fotos de Diane e encontrei este texto… que delícia e que surpresa dos diálogos que são traçados entre a fonte e os teóricos, ficção, realidade, alucinação e questionamentos…
    Parabéns!!!

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