Uma Noite Na Ópera (Sam Wood, 1935)

Os Irmãos Marx desconstroem as convenções sociais e vão tirar sarro no lugar mais inesperado para o grupo de humor anárquico: uma ópera.

Por Thiago Consiglio*

Uma Noite na Ópera é um filme dos Irmãos Marx que conta a história de dois amantes, Rosa Castaldi e Ricardo Baroni (Kitty Carlisie e Allan Jones, respectivamente), atores de ópera que querem ficar juntos mas não conseguem devido à falta de aceitação do rapaz na ópera que a mulher protagoniza. Durante o filme, os Irmãos tentam ajudar o casal fazendo com que o tenor que contracena com Rosa, Rodolfo Lasspari (Walter King), seja retirado da peça e Ricardo incorporado, dando ao casal uma chance.

O longa-metragem foi o primeiro gravado pelos Irmãos Marx na produtora MGM, o que traz algumas diferenças em relação aos seus trabalhos anteriores. Os filmes gravados anteriormente, na Paramount, eram estrelados pelos quatro Irmãos Marx: Groucho, Chico, Harpo e Zeppo, sendo que o último filme nesta produtora foi o último com a participação de Zeppo.

Já na MGM, Allan Jones interpreta o que pode ser considerado o papel de Zeppo nos dois primeiros filmes desta fase, em Uma Noite na Ópera, de 1935, e Um Dia nas Corridas, de 1937. Jones é um personagem com um caráter mais sóbrio em relação aos demais e que tem abertura para um par romântico.

Os filmes na Paramount eram trabalhos inspirados nas peças teatrais em que o grupo atuava na época, às vezes sendo baseados nas sequências de esquetes de comédia, sem necessariamente uma estrutura narrativa forte, o que inspirou o famoso produtor da MGM, Irving Thalberg, a sugerir aos Irmãos que contrariassem isso nas histórias posteriores. A opinião do produtor levou a um aumento da popularidade do grupo, pois a partir daí eles criaram trabalhos que geravam empatia no público, tanto em termos de narração coesa quanto em termos de um par romântico dedicado, o que trazia uma aproximação nos públicos masculino e feminino.

Vale lembrar que estamos falando de uma época em que os produtores eram muito mais relevantes à obra cinematográfica de Hollywood do que os próprios diretores, eram eles quem davam as cartas. Por isso o diretor Sam Wood não será mencionado durante a análise, sua relevância se dava somente de acordo com as fichas que usava que lhe eram entregues pelo produtor Thalberg.

Comédia anárquica

O filme dos Irmãos Marx pode ser considerado uma comédia de caráter anárquico. Isso se dá porque seus trabalhos, desde as peças que inspiraram alguns dos filmes do começo da carreira deles, são feitos de várias gags (piadas) que se seguiam sem uma estrutura narrativa necessariamente coesa, até a chegada do grupo na MGM. A falta de hierarquia entre as piadas aparentava uma organização anárquica, onde as piadas vão acontecendo de acordo com o que os autores julgavam ser a melhor opção.

Isso não significa que o caráter anárquico tenha desaparecido após essa mudança, pois os filmes dos Irmãos também são compostos de vários fragmentos que as diversas personalidades abrangem. A principal motivação deles é o humor que se dá de forma a dessacralizar ideais impostos pela sociedade. Para eles, não existe algo do que não se possa tirar sarro, se quisessem desconstruir algo com a comédia, eles fariam.

Neste filme, por exemplo, vemos um pouco dessa característica pelo tema em que está inserido. Eles estão em um ambiente de Ópera e da alta sociedade e tiram sarro daquilo que há de mais sacramentado em termos de estrutura rígida, que são os campos da ópera no sentido de “arte elevada”, e a alta sociedade que, como seu nome diz, também é considerada acima das demais.

O local que dá palco a esta narrativa é completamente inapropriado aos Irmãos se pensarmos nestes “costumes elevados e sagrados”, mas é exatamente aí que devemos enxergar as situações dos personagens. Eles não participam desta sociedade, são de diversas origens externas e por isso podem agir como quiserem. Eles não fazem papel de burgueses que tem costumes diferentes, mas são como eles mesmos, pessoas de fora do contexto que têm a capacidade de enxergar com outros olhos aquilo que para os burgueses é a tradição em si, algo que não pode ser tocado.

A partir da premissa que já desconstrói temas tradicionais e inquestionáveis, como a Ópera e o círculo da alta burguesia, os Irmãos atacam as convenções sociais, que é a rede que conecta todos estes ambientes. Mas há de se esperar que esse “ataque” tenha algum propósito, e os protagonistas carregam um tom de “revolta” ao retirarem o véu que cobre esses temas, tão fechados, expondo-os perante o público. Para alguns, se há comédia a crítica diminui em termos de poder efetivo, mas neste caso vemos que ela serve de carruagem para uma crítica social importante.

O que seria a convenção social senão um acordo pré-estabelecido entre as partes envolvidas para que todos ajam da mesma maneira de modo a não serem marginalizados? Essa noção nós podemos observar na obra O Contrato Social, de 1762, do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau. Para ele, o homem, ao sair do estado de natureza e iniciar o processo civilizatório, propôs um acordo que valesse a todos para que vivessem em um tipo de harmonia. Interpretando desta forma, podemos enxergar que as convenções sociais também são produtos sociais e que os indivíduos têm papel importante a desempenhar, uma vez que dentro deste contrato existem tanto direitos como deveres e a não-aceitação dessa “regra” leva à sanções.

Através deste jogo complexo de características é que se forma a convenção social e que os protagonistas aparecem para questioná-las implicitamente através das gags. Uma cena que representaria isso seria quando a orquestra está prestes a se apresentar e os irmãos Harpo e Chico (personagens Tomasso e Fiorello, respectivamente) acrescentam às partituras a música “Take Me Out To The Ballgame” e jogam baseball com os instrumentos. Eles fazem o que querem, não reconhecem as convenções sociais, tomando ainda a atitude de debochá-las e não se importam com a sanção social.

“As partes contratantes”

A base sólida que os Irmãos Marx têm é construída de alguns fragmentos das personalidades e dos valores agregados, muito distintos entre si. Os personagens que participam da história são criados a partir das personas dos atores que já são muito antes estabelecidas de outros trabalhos.

Groucho Marx, que neste filme faz o papel de Otis B. Driftwood, é o mais conhecido dos irmãos, eterno “rabugento”, suas palavras são ácidas e funcionam como uma metralhadora apontada para quem quer que esteja contracenando com ele. Já Chico Marx traz consigo um sotaque fajuto italiano, é malandro, bobo, charlatão e está sempre tentando levar vantagem. O último irmão, talvez o que mais se destaca, é Harpo Marx, que em muitas cenas fica em destaque trazendo situações memoráveis. Ele é inocente, “palhaço”, amável e assim é o que mais tem simpatia com o público através de suas pantomimas (técnica de atuação que envolve gestos exagerados, mímicas, trabalhos corporais, etc), já que é mudo e se comunica através de uma buzina que mantém sempre em seu bolso. Poderia-se até considerar que Harpo é o Id do grupo, que segundo a teoria da estrutura da psique humana apontada por aquele que é considerado o pai da psicanálise, Sigmund Freud, é a parte impulsiva, instintiva, guiada pelas necessidades básicas humanas. Com estas características encontramos Harpo, que envolto delas tem o toque da inocência que as completa.

Aproveitando-se disso, o grupo apresenta o vilão da história através de uma interação com Harpo. O tenor Lassparri aparece em sua primeira cena agredindo o pobre irmão mudo sem um motivo aparentemente forte. Com esta primeira cena nós ficamos do lado do agredido – que traz consigo as características do Id e é inocente – e assim o agressor já nos parece ser uma pessoa de caráter duvidoso. Fica implícita a posição que o espectador deve tomar, Lassparri está marcado para o público, uma vez que, como diz o ditado, não causa uma boa primeira impressão.

Dentre os demais personagens que compõem a trama estão a Sra Claypool (Margaret Dumont), Rosa Castaldi, Ricardo Baroni e Herman Gottlieb (Siegfried Rumann). Margaret faz o papel do qual parte toda a premissa do filme: ela quer fazer parte da alta sociedade e chama Driftwood para ajudá-la. A atriz é conhecida do grupo pois já trabalhou em vários outros filmes com eles e já foi  chamada pelo próprio Groucho em entrevista como sendo “praticamente o quarto irmão Marx”. Já Rosa e Ricardo fazem o par romântico que é ajudado por Fiorello e Tomasso a ficar juntos. Para isto, precisam que Ricardo seja aceito na ópera em que Rosa contracena com Lassparri, o tenor principal e alvo dos irmãos, pois sem ele no caminho, Ricardo pode ter sua chance de ser revelado e de ficar com Rosa.

Não podemos esquecer da cena em que Rosa está partindo com a Companhia no navio e começa a cantar para o público, mas depois percebemos que é para Ricardo. O rapaz começa a cantar de volta para ela de lá debaixo, e ambos fazem um dueto que traz uma beleza extraordinária. Pouco antes, Lasspari responde ao pedido dos fãs para cantar, dizendo que não o faz porque não está sendo pago. Implícito nesta cena está o valor que é dado à arte pelas personagens e pelo filme. Veremos este tema voltar futuramente em uma cena com os Irmãos durante a viagem no navio.

Por fim, dentre os personagens principais, resta comentar sobre Gottlieb que faz o papel do diretor da Companhia. Aparentemente pode parecer que seu papel é sem importância, mas há uma anedota dos Irmãos Marx que é transmitida em uma cena que ele participa. Segundo contam, o produtor Irving Thalberg era extremamente importante no meio cinematográfico, mas tinha o costume de deixar as pessoas com quem se reuniria (roteiristas, diretores etc.) esperando por ele, às vezes até demais. Uma vez isso aconteceu em uma reunião com os Irmãos, o que fez com que resolvessem aprontar. Quando o produtor voltou, encontrou os Irmãos todos nus, assando batatas em uma fogueira improvisada com troncos em seu escritório. Aparentemente esse episódio fez com que eles ganhassem a simpatia do produtor, já que sua reação foi de um ataque de risos. Isto seria inimaginável para uma pessoa da importância de Irving. (tjc.org) Os Irmãos, mais uma vez, renegaram as convenções e a hierarquia e fizeram como os personagens em seus filmes. Vale dizer que essa anedota nasceu de declarações que Groucho fez.

Atemporalidade

Este filme, considerado por muitos como o auge da obra dos Irmãos, contém muitas cenas inesquecíveis e emblemáticas que não podemos deixar de mencionar. A cena da cabina do navio, por exemplo, pode representar toda a comédia dos atores. Nesta cena, mais e mais pessoas entram pela porta sem aparentemente uma ordem ou um espaço que de fato vá suportá-las, enxergamos elementos anárquicos, que desconstroem a ética comportada da classe alta em um cruzeiro, só que agora eles também vão “brincar” com as leis da física. No fim, mais de 15 pessoas estão dentro de um espaço que seria considerado pequeno até para uma só pessoa, tudo isso enquanto Driftwood está esperando pela Sra Claypool para uma conversa que seria a sós na cabina.

Outra cena que desconstrói a ordem, desta vez jurídica, e continua com o processo anárquico dos Irmãos, é a cena em que Fiorello e Driftwood estão discutindo o contrato do tenor Ricardo. Ambos não aparentam entender muito do sistema burocrático, mas ao mesmo tempo leem coisas que são totalmente impraticáveis, o que os leva a cada vez ir rasgando as cláusulas até que sobre somente o espaço para assinar.

E uma das sequências que talvez mais se destaque no filme é a em que Fiorello, Tomasso e Ricardo estão no convés e fazem um pequeno show improvisado para os demais passageiros, e sem dúvida, também para o espectador. Primeiro é Ricardo quem canta e interage com os tripulantes, a forma dele é a mais tradicional e seu talento não nos é novidade, porque este já havia cantado anteriormente. A novidade aparece quando, de repente, Fiorello senta ao piano. Para alguns isso pode ser uma surpresa, mas os espectadores atentos vão se lembrar da conversa entre ele e Ricardo no começo do filme, em que é citado rapidamente que Fiorello tocou piano em um conservatório. De qualquer forma, o caminho que este personagem tomou e sua personalidade de malandro contribuíram para a surpresa deste ato.

Depois da belíssima música que Fiorello apresenta, Tomasso é quem senta ao piano e com sua pantomima apresenta uma peça cheia de aspectos humorísticos, como o momento em que sua mão fica mole ou quando ele ajusta o banco e não consegue se sentar. Logo em seguida este vai para a harpa e toca outra bela peça. Nesta cena nos deparamos com uma beleza tão forte, que podemos até nos esquecer que estamos diante de um filme de comédia, em que não se espera trabalhos estéticos como o desta cena, mas risadas. Ali estão dois personagens que saem por um instante de seu papel e se tornam figuras emblemáticas. Quando assistimos, dá para se perceber que estamos diante de uma obra de arte.

Como o filósofo alemão Arthur Schopenhauer aponta em sua teoria, a apreciação estética da obra de arte também pode ser levada para a própria vida e a natureza. Quando o observador está tão envolvido na apreciação artística (ou da natureza em si, que o autor praticamente considera como arte) ele encontra um estado de observação em que ele deixa por um breve instante de ser um ser humano que sente fome e dor, para se tornar algo transcendente. A existência que é cheia de dor e sofrimento, segundo o filósofo, é superada através dessa apreciação, mesmo que esteticamente. Por coincidência, a forma artística que o pensador mais estimava era a música, como é o caso da cena citada.

Por fim não podemos desconsiderar que apesar dos Irmãos Marx desconstruírem as convenções sociais, eles não simplesmente criticam tudo o que existe. Nesta mesma cena das músicas, todos terminam dançando aparentemente por nenhum motivo a não ser a própria felicidade. Como os personagens Fiorello, Tomasso e Ricardo, que são de origem humilde e assim que chegam ao convés se esbaldam com a comida oferecida, os Irmãos também fazem parte do contexto, se reconhecem nas pessoas que dançam com eles. Ali se encontra o povo, a classe trabalhadora, diferentemente do interior do navio em que o outro Marx, Groucho, está tentando acompanhar a Sra. Claypool, que quer ascender na escala social. Lá dentro há tradição e ordem, lá fora a felicidade não depende de dinheiro ou das convenções.

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*Thiago Consiglio é redator publicitário, graduado em Comunicação Social – Jornalismo, trabalhou com curtas-metragens independentes e escreve para o blog colaborativo Mescla Mutual (http://mesclamutual.blogspot.com).

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