O estranho mundo de Zé do Caixão (José Mojica Marins, 1968)

Por Samuel Douglas Farias Costa *

Personalidade mítica e conhecida do cinema nacional, o cineasta José Mojica Marins, muitas vezes confundido com seu personagem ícone Zé do Caixão, é um pioneiro do cinema de gênero em um período de novas propostas e rupturas dentro do cinema brasileiro. Em diálogo com o cinema marginal, movimento que buscou radicalizar as formas de linguagem e estética (estética do lixo) dentro do período de censura a partir da década de 60, seus filmes articulam e oscilam entre experimentações, violência, sexo, terror e uma versão não acadêmica, talvez até anti-acadêmica, de uma filosofia de bases niilistas e existencialistas, presente, sobretudo, na figura popular e folclórica do coveiro Josefel Zanatas (Zé do Caixão).

“Quem sou eu? Não interessa. Como também não me interessa quem é você. Ou melhor, não interessa quem somos. Na realidade o que interessa é saber o que somos. Não se dê ao trabalho de pensar, porque a conclusão final seria loucura, o final de tudo para o início do nada. A coragem inicia onde o medo termina. O medo inicia onde a coragem termina. Mas será que existem a coragem e o medo? Coragem do quê? Medo do quê? Do tudo? O que é o tudo? Do nada? O que é o nada? A existência. O que é a existência? A morte? O que é a morte? Não seria a morte o início da vida?  Ou seria a vida o início da morte? Você não viu nada e quer ver tudo. Viu tudo, mas não viu nada. Teme o que desconhece e enfrenta o que conhece. Por que teme o que conhece e enfrenta o que desconhece? Sua mente confusa não sabe o que procura, porque o que procura confunde a sua mente e nasce o terror. O terror da morte. O terror da dor. O terror do fantasma. O terror do outro mundo. Agora, vê no terror que nada é terror. Não existe o terror, no entanto, o terror o aprisiona. O que é terror? Ah, não aceita o terror porque o terror é você!”

Seguida por uma canção título escrita pelo diretor e interpretada por Edson Lopes e o grupo de samba Titulares do Ritmo, esta é a proposta filosófica de Zé do Caixão verbalizada pelo mesmo nos primeiros minutos do filme O estranho mundo de Zé do Caixão (1968). Ao realizar este filme, José Mojica Marins já havia formado uma estética trash, de acordo com um gênero de horror subdesenvolvido, em trabalhos anteriores, hoje considerados clássicos do terror nacional. Estes são À meia-noite levarei sua alma (1964) e Esta noite encarnarei no teu cadáver (1966), as duas primeiras partes de uma trilogia que só foi finalizada recentemente com Encarnação do demônio (2008).  Dessa forma, o filme de 1968 é mais voltado à consolidação da filosofia do personagem e uma proposta experimental do que a uma marca estética, que, em certa medida, já estava consolidada. Ao entrarmos no estranho mundo de Zé do Caixão nos deparamos com a filosofia niilista e cética do personagem e os experimentos cinematográficos de Mojica que passeiam pelo clássico (cinema mudo, influências do expressionismo) e o contemporâneo (bar com jovens dançando ao som de rock e bandidos golpistas).

O estranho mundo de Zé do Caixão (1968) é composto por três curtas-metragens: O fabricante de bonecas, Tara e Ideologia. O primeiro narra a história de Mestre Bastos, um idoso fabricante de bonecas reconhecido pelo seu trabalho aprimorado e detalhista, sobretudo, pelo aspecto realista dos olhos de suas criações. Ao saber que o idoso guardava seu dinheiro em sua oficina, um grupo de assaltantes planeja invadir o local para roubá-lo. Ao por em prática o plano, eles se deparam também com as belas filhas do mestre, que o ajudavam na confecção, e decidem estuprá-las. Porém, as coisas não caminham como eles esperavam. No papel de um dos assaltantes está Luís Sérgio Person, diretor de São Paulo, sociedade anônima (1965) e que percorreu diversos gêneros cinematográficos pela sua carreira, dentre eles, o drama, a comédia erótica e o terror.

O segundo seguimento, Tara, conta a história de um vendedor de balões obcecado por uma bela e jovem mulher. Ele a persegue e observa dia a dia sem que ela perceba. Por fim, ele só tem a oportunidade de concretizar os seus desejos após a morte da jovem. Dentre os três, este é o curta que reúne mais elementos e referências ao cinema clássico. A marca estilística deste é o cinema mudo e o expressionismo alemão, facilmente nos lembramos de Nosferatu (1922) de Murnau.

Ideologia é o seguimento mais marcante e trash. O professor Oãxiac Odéz (José Mojica Marins) convida um professor rival e sua esposa até a sua sombria casa para que possa comprová-los a sua absurda teoria materialista contra a razão e o amor, na qual o ser humano se reduz ao instinto. Odéz submete o casal convidado a uma série de experiências sádicas que envolvem dor, tortura física e psicológica, canibalismo, resistência física e outras bizarrices que buscam provar uma animalização do ser humano.

Mojica vai além da estética suja do cinema marginal, ele chega ao grotesco, ao escatológico, ao horror que constrange, incomoda e choca o espectador. Este já não pode continuar em sua zona de conforto. Em O estranho mundo de Zé do Caixão, o terror e o medo não é do fantasma, do zumbi ou do vampiro, mas é do homem para com ele mesmo. O horror às atrocidades e ao sadismo que estão presentes tanto na realidade (lembremos que o filme foi realizado no período da ditadura militar), quanto no cinema de Mojica.

Na década de 60 e 70 do século XX, o cinema nacional estava muito atrelado às discussões acadêmicas sobre a busca da identidade nacional brasileira, o processo de modernização do país, o mundo do trabalho, entre outras questões. Mojica, mesmo dialogando com questões sociais, fazia isso dentro de uma estética e linguagem do horror trash. Alheio ao status das discussões acadêmicas e intelectuais, sua perspectiva sempre foi mais popular e folclórica. Talvez, essa seja uma das razões pela qual o seu trabalho tem um maior reconhecimento fora do Brasil. A questão é que, goste ou não de seus filmes, a sua contribuição é inegável dentro da história do cinema nacional.

*Samuel Douglas Farias Costa é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e redator do blog “Avant, Cinema!” http://avantcinema.wordpress.com/.

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