Adeus, Dragon Inn (Ming-Liang Tsai, 2003)

Wanderson Lima*

Uma das maiores dificuldades que encontro quando penso em fazer a crítica de um livro ou de um filme, de alguém que acompanho com interesse, é diferenciar se, de uma obra a outra, ele evoluiu (e qual o teor dessa evolução) ou se ele se cansou e está a fazer paródia de si mesmo. No caso de Tsai Ming Liang, a impressão que tenho, e que contraria frontalmente parte da crítica de cinema tupiniquim, é que sua obra vem se depurando de maneira formidável – e apresento como prova do que afirmo esse Adeus Dragon Inn (2003).

Cena do filme "Adeus, Dragon inn"

Comparado a outros cineastas que surgiram naquele mesmo espaço do globo, um Wong Kar-Wai ou um Hou Hsiao-hsien, Tsai Ming Liang pode parecer severo, geométrico, ou mesmo indiferente e frio. De fato, o universo de Tsai é rarefeito e com motes bastante reconhecíveis: a chuva, a solidão e Hsiao-Kang (Lee Kang-Sheng), este “homem sem qualidades” (Musil) da pós-modernidade; sua câmera, parada, registra sem muito julgar; falas, muito poucas. Mas nesse realismo árido, de seres arredios, cabe também a comicidade e até o delírio – como vemos nos momentos musicais de O buraco (1998) e O sabor da melancia (2005). Além disso, Tsai não julga esse mundo sem diálogo e sem alma como um arrogante moralista; pelo contrário, há respeito, em alguns momentos um esgar de piedade.

Adeus, Dragon Inn, minimalista em todos os âmbitos, atinge uma depuração tal que raras vezes se viu numa tela de cinema. São mais de 80 minutos de – como posso chamar? – insinuações imagéticas e apenas dois breves diálogos, sendo o primeiro quase delirante (um personagem diz a outro que há fantasmas naquele lugar e ainda assevera tratar-se de fantasmas “japoneses”) e o último insignificante para a economia do filme. Mais interessante, pois, que perguntar o que se passa no filme é indagar onde se passa o filme, pois se trata de uma película que propõe uma exegese dos ritos que decorrem em um recorte espacial. Tal recorte é… a própria sala de cinema. Sim, trata-se de mais uma declaração de amor ao cinema, mas da qual o lirismo e a nostalgia migram para o segundo plano. O filme de Tsai é, na verdade, uma investigação das trocas simbólicas, conscientes ou não, que ocorrem no cinema enquanto espaço físico. Em vez de desenvolver uma narrativa linear, o filme empreende “estudos de caso” em sujeitos que freqüentam e/ou trabalham no cinema.

Cena do filme "Adeus, Dragon Inn"

Há, em primeiro lugar, a história da bilheteira manca que se apaixona pelo projetista e busca agradá-lo com muito sacrifício (ela sobe com dificuldade uma enorme escada para deixar uma guloseima que o ingrato não come). Há o silêncio cheio de sentidos nos olhos e nos gestos dos homossexuais que vão ao cinema em busca de uma aventura erótica (e aqui vale registrar como Tsai evita a facilidade da caricatura). E há ainda dois atores que vão prestigiar o filme em que atuam, e que são os únicos a viver de fato a emoção da história (de Kung-Fu) que é projetada.

Tsai opõe inteligentemente o caráter épico do filme projetado ao prosaísmo de faits divers* que passam na sala de cinema, onde imperam a timidez, certo medo do outro e, conseqüentemente, a incomunicabilidade, que é o grande tema deste cineasta malaio.

Cena do filme "Adeus, Dragon Inn"

A homenagem que Tsai Ming Liang faz ao cinema é, pois, severa como seu estilo e, assim, despida de qualquer utopia de transformação social via sétima arte. Trata-se de uma árida e bela elegia sobre as fraquezas humanas, ou melhor, sobre nosso medo e nosso desejo de se comunicar.

O domínio de Tsai sobre o ritmo de um filme em que, à primeira vista, nada acontece é digna de registro. Quase ao final, ele filma demoradamente, com câmera estática, a sala vazia, banhando de sentidos um silêncio que se estira quase à exaustão. Mais adiante, este silêncio polissêmico aportará numa possibilidade – a reverência –, já que ficamos sabendo que o cinema será fechado. Isto nós dói ainda mais porque nossa bilheteira manca vê na saída, talvez pela última vez, o projetista. Numa cena de rara plasticidade, nossa manca segue na chuva (sempre a chuva!) com seu caminhar dificultoso. Aos poucos, o som da chuva vai arrefecendo e em seu lugar ouvimos uma voz melodiosa, a cantar uns versos que falam da lembrança de um idílio, à luz da lua, num campo de flores. Ironia perversa do diretor? Não, apenas um presente de Tsai à manca – ou imaginação dela compensando sua vida estreita, tão estreita.

Ming Liang afina seus recursos, filme a filme, com o propósito claro de sondar cada vez mais fundo o drama humano da solidão e da incomunicabilidade. Até o momento – escrevo sem ter assistido aos seus dois últimos filmes, respectivamente de 2006 e 2009 –, suas reiterações não me soam banais. Quem lhe pede uma revolução a cada filme, pede o que Tsai não quer, por índole artística e coerência ética, nos ofertar.

*Faits Divers : é uma expressão francesa (em português, “fatos diversos”) que invadiu o jargão do jornalismo no mundo todo. Designa fatos curiosos, pitorescos, que não se enquadram nas tradicionais seções do jornalismo (Política, economia, esportes etc).

*Wanderson Lima é escritor e professor  de literatura na UESPI. Co-edita a revista dEsEnrEdoS e mantém o blog O Fazedor.

Wanderson Lima é escritor e professor de literatura da UESPI. Co-edita a revista dEsEnrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog O Fazedor (http://blogdowandersonlima.blogspot.com/ ).
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