Vermelho como o céu (Cristiano Bortone, 2006)

Venda Preta

Por Iuri Leonardo dos Santos

“Não temos mais medo. Com os olhos vendados, somos invencíveis.”

Já de início, a produção italiana de 2006 “Vermelho como o Céu”, reconhecido em festivais como os de Durban, Flanders, Hamburgo, Hamadã, Montreal, Palm Beach, Sidney e, eleito o melhor filme pelo júri popular da 30ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, nos informa tratar-se de uma história baseada em fatos reais. Entretanto, os fatos que ouvimos no decorrer de seus curtos 96 minutos são tão encantadores, diria mais, fantasiosos – creio que esta mais que “superação” seja a palavra síntese da obra – que em alguns momentos nos questionamos até que ponto aquilo pode ter acontecido “de verdade” ou se não passa de parte de alguma fábula imaginada por aquelas mentes tão sonhadoras, orquestradas com sensibilidade e amor por ele: Mirco Barelli, o jovem protagonista de 10 anos.

O filme se passa em 1970, inicialmente na cidadezinha de Pontedera, região da Toscana na Itália – com aquelas paisagens belíssimas em pleno verão -, onde Mirco, apaixonado por cinema (paixão esta aparentemente compartilhada por seu pai), mora com seus pais. Encantado com o rifle de seu pai, como daqueles cowboys dos filmes que tanto gosta, o menino acaba por sofrer um terrível acidente e acaba praticamente cego, passando a enxergar apenas sombras nada nítidas. A partir daí, é transferido para o Instituto Cassoni em Gênova, específico para meninos que sofrem de deficiência visual, pois de acordo com as leis italianas da época ele não poderia mais estudar nas escolas ditas “normais”, ficando, assim, bem longe de seus pais. Neste ponto, o filme começa a tocar numa ferida social e política profunda: a segregação. E mais, levanta questionamentos chaves como o que é a normalidade afinal, explicitados nas discussões incisivas travadas entre o amargo e ressentido diretor do Instituto, também cego, mas cheio de preconceitos em relação a capacidade dos próprios deficientes visuais (segundo ele impossibilitados de exercerem seu pleno direito a liberdade), e Don Giulio, o padre mais jovem. E, ao longo do filme o que esses garotos cegos vão fazer é nos mostrar (e não provar, essa é a grande sacada do filme, a naturalidade, a não necessidade de ficar o tempo todo provando que eles são normais) que são, antes de tudo, garotos, cheios de vida e sonhos, alegres e muito travessos, diga-se de passagem, independentemente de suas condições físicas.

“Rosso Como il Cielo”, título original em italiano claro, é, indubitavelmente, um filme tocante: sensível, poético e repleto de lirismo, e sem ser apelativo, crédito ao diretor. Cristiano Bortone opta pela simplicidade, a naturalidade e a alegria ao invés de apenas, e sem o mínimo senso de ética, explorar a deficiência visual desses garotos incríveis em prol de uma dramaticidade forçada. O filme é sim emocionante, disto não resta dúvida (temos as lágrimas em diversas passagens como prova), mas não só nos momentos de maior potencial dramático (lindíssimos, profundos) em que vemos Mirco descobrir com Felice, Francesca e Don Giulio, novos mundos, representados pela “descoberta” (e não é exagero dizê-la) dos quatro outros sentidos, destacadamente o tato (o marrom áspero como a casca de uma árvore, na linda cena em que Mirco fala das cores à Felice) e a audição (a história gravada que apresenta a Don Giulio como trabalho nada convencional sobre as quatro estações, intitulada “A chuva termina, o sol aparece”), como também nas cenas mais simples em que sequer lembramos de sua digamos assim “condição”: Mirco levando Francesca na garupa da bicicleta até o cinema; os garotos que zombam da irmã do carismático Felice durante o banho; os meninos e Francesca indo ao cinema escondidos e se divertindo com a risada peculiar de outro espectador; a descoberta do primeiro amor, puro e inocente, entre Mirco e a linda Francesca; a criatividade dos garotos na construção coletiva das tocantes fábulas sonorizadas, em que até Valério, o “antipático” e briguento (quem nunca estudou com algum garoto assim no primário) acaba se rendendo, e é nesse sentido, que nos faz lembrar um clássico do cinema italiano de 1989, eternizado na memória de qualquer pessoa que o tenha visto, “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore.

Em termos estéticos destaque merecido ao som, como não poderia deixar de ser é claro, tanto a trilha sonora (daquelas que temos a nítida sensação de ter sido feita exclusivamente para aquele filme, não se encaixando em nenhuma outra obra) quanto à edição, realizada com total maestria. Os sons e ruídos das mais diversas naturezas captados no filme, como o canto dos passarinhos, o barulho da água caindo do chuveiro e do vento pela fresta da janela, a luta épica com escumadeiras, talheres e panelas, os hilariantes sons produzidos por Felice como zangão e o dragão do castelo, entre tantos outros, são realmente impressionantes, de uma pureza que beira a cristalinidade. Emocionante. Digno de contemplação.

A fotografia também é belíssima, contando com uma iluminação primorosa que valoriza tanto os tons quentes da Toscana, sempre ensolarada, quanto os mais frios do sóbrio e marmorizado Instituto. Os enquadramentos são minuciosamente pensados, em alguns momentos dotados até mesmo de certo preciosismo, sendo muito interessante e feliz a opção pela lente desfocada, embaçada, nos momentos em que a câmera representa a subjetiva de Mirco após o acidente, simulando o mundo como o garoto o vê de fato. Entretanto, nada supera as interpretações.

Os garotos do Instituto, todos, sem exceção, presenteiam a nós espectadores com atuações brilhantes, não por grandes cargas dramáticas, mas pela verdade e felicidade que transmitem nas mínimas coisas, nos gestos e palavras ditas, ou não ditas às vezes, proporcionando os momentos mais inspiradores do filme a meu ver. Mesmo assim, diante de um elenco coletivo tão bom, ainda há espaço para destaques individuais como Simone Gulli, intérprete de Felice, o gordinho simpático e amigo que por inúmeras vezes rouba completamente a cena, e o ótimo Luca Capriotti, que interpreta o protagonista Mirco com uma entrega impressionante. A dupla travessa lembra, em algumas passagens, os imortalizados personagens de Cervantes em “Dom Quixote”: Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro, Sancho Pança. Outro que esbanja talento parecendo muito confortável em seu difícil papel, de padre conformado a verdadeiro ativista em pouco tempo, é Paolo Sassanelli, o Don Giulio. Certa tristeza em relação ao personagem de Norman Mozzato, que vive o diretor do Instituto, de visível talento mais em certo grau desperdiçado devido ao mau desenvolvimento estrutural do personagem, tanto seu histórico como as próprias características de sua personalidade.

Enfim, o filme atua como um incômodo ponto de partida para uma reflexão pessoal e profunda de cada um de nós que tocamos ele, nos fazendo questionar valores, nossos conceitos e, por que não dizer, nossos pré-conceitos também, bem como nosso posicionamento diante da vida e do mundo como um todo. Ao subverter sim – afinal quantos filmes ouvimos ou tocamos ao invés de simplesmente nos contentarmos em vê-los – tirando o som de uma posição meramente ilustrativa, complementar a imagem, e posicionando-o como primordial na obra, possibilita a total liberdade de expressão e imaginação dessas crianças tão cativantes. A mim, como estudante de cinema atraído pelo visual, lança um verdadeiro desafio: ser menos imagem e mais som, na busca por um equilíbrio dinâmico. Vivenciar o segredo dos músicos que ao tocarem fecham os olhos para sentir a música mais intensamente, tornando-a maior, como se fosse uma sensação física. Como diria Don Giulio à Mirco diante de suas negativas quanto a participar das atividades escolares: “Você tem cinco sentidos. Por que usar só um deles?”.

Quanto ao final do filme, depois de ter assistido quatro vezes da maneira convencional, aceitei o convite daquelas excepcionais crianças durante a apresentação de fim de ano que não se restringe, de modo algum, a seus pais diegéticos. E pela primeira vez finalmente entendi a linda história que contavam, o quão metafórica era, de como ao fecharem os olhos se tornavam invencíveis e venciam os seus maiores medos, seus maiores e mais ferozes dragões, e de como a liberdade e a imaginação de cada um deles poderia transformá-los verdadeiramente em lindas gaivotas brancas que voariam pelo espaço. Pouco importa o quão clichê seja, e nem mesmo que seja falado em italiano. Não tenha dúvida: vede os olhos. Os sons e os sentimentos são universais.

*Iuri Leonardo dos Santos é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos

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Este post tem 5 comentários

  1. Author Image
    MÍRIAM sUZANA OLIVIERI

    Sou professora de um Centro de Atendimento para pessoas com deficiência Visual e, não estou encontrando o filme nas locadoras para assistir com meus alunos. Gostamos muito da síntese, mas gostaríamos de assistir integral. É possível encaminhá-lo através do meu e-mail? Aguardamos, abraços Professora e alunos de Centro de Atendimento Professor Carlos Neufert. -Jacarezinho, Paraná.

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    gisele costa

    Fui professora de Música em uma escola especializada para deficientes visuais, e realizei pesquisa de mestrado e publiquei um livro sobre o significado da música para aquele público. O filme, muito profundo do ponto de vista humano, oferece uma reflexão relevante ao educador de Arte, sobre estética, valor e metodologia da educação musical e artística, além de despertar questionamentos sobre a educação especial e a educação inclusiva, tema em pauta hoje em dia.

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    Samara

    muito bom!vlw ajudo,,,

  4. Author Image
    Juliana

     estou prestes a pegar este filme. Se eu conseguir eu encaminho

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