Paris, Texas (Wim Wenders, 1984)

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Uma reflexão: a reconstrução após as cinzas

Por Diego Y. Anami*

O que é “Paris, Texas”? Paris é o nome de um terreno no Texas, onde Travis Clay Henderson (Harry Dean Stanton) foi concebido. Por isso ele compra este terreno e passa a carregar uma foto dele. Mas, o que é “Paris, Texas”? Pode ser visto como sendo, para Travis, a origem, e o filme Paris, Texas pode ser visto como sobre a trajetória de retorno e reconstrução dele confrontando o passado. Nesse sentido, a origem se faz primordial, os rumos que o protagonista segue partem de uma reflexão acerca de sua própria origem, seus pais, seu passado, para remendar as cicatrizas, ele busca respostas em si mesmo, sobre família, maternidade, amor.

As imagens em Super-8 não mentem. Travis, seu filho Hunter (Hunter Carson), seu irmão Walt (Dean Stockwell) e a esposa deste, Anne (Aurore Clément), assistem as imagens deles juntos com Jane em um fim de semana na praia alguns anos antes. Todos felizes, Super-8 registrando a família feliz, praticamente um álbum de recordações.

Este fragmento de cerca de quatro minutos – metalingüístico, granulado, com câmera na mão, típico filme caseiro de família – é um destaque dentro de Paris, Texas, afinal é um trecho que se passa em outra esfera temporal; outro contexto, demonstram a felicidade (que destoa do resto do filme) e as memórias que são premissas para a história de reconstrução que é Paris, Texas.

Trata-se de uma obra sobre a reconstrução da vida de Travis. Ele é encontrado em um deserto texano perambulando mudo, a partir daí acompanharemos sua trajetória, ele esteve anos desaparecido e agora lidará com o retorno à sociedade, o confronto com o passado e com sua família despedaçada. É interessante o fato de sermos conduzidos à história do protagonista aos poucos, na mesma medida em que ele vai se deparando com seu passado, vamos nos deparando com os elementos da história, a linha narrativa do filme seguindo a perspectiva de Travis gera empatia e é interessante, há um grande passado que é premissa do filme, porém, enquanto o protagonista não se confronta com tal, nós não o sabemos. Portanto, mesmo que Paris, Texas utilize uma narrativa linear clássica, há uma forma um tanto fragmentada no modo como somos conduzidos pela história junto com o pouco comunicativo Travis.

Em sua trajetória nesse road movie, ele “reaprende” o convívio social, e tenta dominar os estratagemas que compõem a comunicação para assim reatar-se com seu irmão, Walt, e posteriormente com o filho, Hunter. E, por último, há Jane (Nastassja Kinski), enquanto memória ela é viva ao longo do filme todo, por foto, Super-8 e nos diálogos. A todo momento nos é sutilmente lembrado que há uma última ponta solta do passado a ser atada.

Quando, após 97 minutos de filme, Jane aparece efetivamente em cena, estamos diante de um daqueles personagens apaixonantes, que roubam a cena, ficam em nossa memória, quase sendo de carne e osso (sobre essa empatia de determinados personagens, recomendo o texto Eu te apresento…).

Jane é a Mãe, Paris, Texas desenvolve uma reflexão sobre tal, colocando a Mãe como a base da estrutura familiar, aquela que realmente cria e deve criar o filho, vide a relação de Travis com sua mãe de quem sempre fala, de Hunter com Anne (que cria o garoto como uma mãe) e de Hunter com Jane (a mãe biológica). Jane é Amor, pela perspectiva do protagonista, e esta é, em grande parte do filme, a perspectiva dominante na narrativa; o olhar de Travis é muitas vezes o olhar do espectador, o sentimento dele por Jane está sujeito fortemente à identificação por parte de quem assiste o filme, em virtude do modo como a narrativa se desenvolve e da empatia do personagem. Jane é Felicidade, mesmo que seja na memória, no passado retratado muito bem pela metalinguagem (marca autoral recorrente em Wenders) pelo filme Super-8 ao qual os personagens assistem. Felicidade; os bons tempos, que passaram…

As três cenas em que Jane aparece, compõem o belo desfecho do filme. As cenas entre ela e Travis destacam-se pela emoção e pela técnica certeira, o plano frontal, com uma delicada composição de quadro, e com Jane no meio da tela, é absoluto. Há a perspectiva de Travis, que a vê sem ser visto, assim como nós que assistimos ao filme, que a vemos na subjetiva frontal. Aliás, nossa identificação com o protagonista não é apenas na perspectiva, há a tensão, a apreensão e a expectativa que nos acompanham. Nesse momento, já se foram mais de noventa minutos de filme, tendo gradativamente crescido nossas emoções num sutil desenvolvimento de Jane, no início memória ou assombração, mas cada vez mais viva e com a presença necessária, até se culminar na cena em que os dois conversam.

Paris, Texas nos convida a pensar sobre a felicidade, a família e o amor, e sobre o potencial nefasto que temos para com tudo isso. Trata-se de uma tragédia, que Wenders nos passa sem efetivamente mostrar cenas da destruição e nos mostrando apenas um pequeno trecho da época feliz. O que importa neste retrato da tragédia não é tanto o fogo ou o incêndio, são as cinzas com as quais se pode sentir o fogo, sentir o incêndio. Wenders nos mostra a pós-tragédia da família Henderson de forma que conseguimos visualizar tudo o que deve ter se passado antes e, o melhor, podemos assistir à redenção, a reconstrução após as cinzas.

*Diego Y. Anami é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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