Noite de Kino: Reflexo

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Reflexo

Noite de Kino. São Paulo, mais precisamente Cinemateca, 24 de agosto, estávamos prontos pro tema, numa espécie de corrida com a câmera, os atletas deveriam gravar e editar em menos de 48 horas sobre o tema dado: política viva! Política? É tão amplo, tão aberto e perigoso, como dizer de algo que nem eu bem sei se sei. Como falar de uma abstração tão presente, mas às vezes tão invisível? Aceito o desafio, pusemo-nos logo pra pensar, o que queremos fazer? Eu, Yasmin e Camila, mal sabíamos o que nos esperava, o verdadeiro idílio perigoso ao qual nos meteríamos. Ok. O que temos em mãos? Uma São Paulo inteira num domingo, o que era ainda melhor, mais vazia, mas não menos instigante.

Decidimos por visitar lugares históricos e falar sobre o esvaziamento de valores e de história desses lugares, ou melhor, lugares marcados por uma data específica e que contivessem uma carga política extremamente forte, pontos na cidade marcados na História do Brasil, e ali, fazer uma espécie de intervenção, de constatação do que restou, o hoje alienado carregando o fardo do passado histórico. Pensamos no DOPS (órgão de repressão durante a ditadura), na Praça da Sé, palco das Diretas Já, o Teatro Ruth Escobar, o teatro onde os atores de Roda Viva, peça de Chico Buarque, foram espancados na ditadura, Rua Maria Antônia, palco da Batalha da Maria Antônia, um enfrentamento entre estudantes em 1968, o Teatro Oficina, útero de peças emblemáticas para a história cultural do Brasil como O rei da Vela, eram tantos lugares, tão distantes uns dos outros, e nós contávamos com cash mínimo, metrô, e vontade, apenas. Logo de cara uma sorte imensa: uma mulher pediu pra sentar conosco na Cinemateca, não queria sentar sozinha, estava sozinha, e começamos conversar, todos, e descobrimos que era performer, atriz também, Adriane Gomes. É ela, pensamos, e logo aceitou o convite, extremamente atenciosa e disposta a dividir com a gente essa batalha da câmera, do tempo, do tema, da criatividade. Foi-nos referência máxima de sensibilidade e ordenação de nossas idéias, deu-nos suporte artístico e logístico, enfim, uma feliz coincidência.

Sob algumas orientações do Professor Alessandro, decidimos por cercar o tema de forma menos abstrata e mais específica, falaríamos de política no dia-a-dia em lugares com peso histórico, ponto. E a Adriane seria a passante, a transeunte, e por fim, a performer. O trabalho não poderia demorar para se iniciar, e o fizemos tão crentes de que seria um longo dia, mas não sequer imaginávamos o que nos aguardava.

Gravamos algumas cenas na Maria Antônia, rua emblemática onde se encontra as universidades Mackenzie e USP, antigamente escola de Filosofia, hoje, centro de recreação, lá, enfrentaram-se os estudantes, integrantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) versus os estudantes da Universidade de São Paulo, alinhados mais à esquerda. Pancadaria e morte: a vítima, um estudante secundarista de 20 anos, José Carlos Guimarães. Depois, a Sé, dentre pregações, homens bêbados, turistas, Adriane subiria ao marco zero e pregaria política, muda, já que na edição o som era tão somente o ensurdecedor sino da catedral. Essa cena quase nos resultou em prisão: subir no marco zero é proibido! Obviamente não era uma depredação pública, era uma intervenção pública, e só. O policial que quase nos cantou voz de prisão estava estátua atrás da gente, a vigia e a ordem nos perseguia. Em seguida, o DOPS, uma emoção macabra, as celas expostas com fotos de prisioneiros, pareciam celas medievais, portas grossas, ferros pontiagudos; não foi permitido gravar nada, mas sentir tudo aquilo foi-nos cena forte e sangrenta, uma seqüência de horror, que hoje é mascarada com visitas guiadas e iluminação própria, é o show de horror, o entretenimento da dor.

Nessas andanças pelo centro, vimos de tudo de política viva, ou ausência dela: mendigos, crianças abandonadas, todos esses elementos perturbadores, característicos de uma cidade grande, contraditória e suja.  Culminamos na Paulista, o centro financeiro de São Paulo, reduto de todo tipo de gente, todo tipo de política. Lá seria o clímax do vídeo com a performance da Adriane portando um vestido espelhado, com luzes refletindo, em meio a carros e pedestres, seria a redenção. Antes disso, deparamo-nos com Verdi, um senhor culto, um mendigo sóbrio, ácido e pessimista. Praguejava coisas como “tem de jogar uma bomba no congresso nacional”, coisas do tipo, mostrou-nos lúcido e inteligente, extremamente crítico, politizado, uma contradição, a personificação da política viva, errante…um são em pele de louco.

Mais que sair para gravar algo, o importante foi sentir o tema antes de qualquer coisa durante esse processo. Poder com sinceridade discursar visualmente sobre o que é, ou pelo menos o que vimos de política viva, dentre um território tão grande, em cima de uma linha tênue, oscilante, que é política. Confrontarmo-nos após tantas revelações nesse dia, dar atenção àqueles que são invisíveis, ouvir os loucos, não tão loucos assim, sentir o peso da vigia, da ordem e segurança pública, tudo isso mexeu com a gente, nos deixou mais preparados, e emocionados também. Na exibição, o que vimos, foram curtas e curtas, uns subjetivos e alienados, outros engajados inconsistentes, outros alegres, pirotécnicos, fracos, mas uns verdadeiros e emocionantes. O bom foi ver a diversidade de olhar, as multifacetadas formas de se produzir com pouco, criativa e intuitivamente, talvez um reflexo da própria universidade, reduto de ensino e de fraquezas, nós, como estudantes audiovisuais temos grande dilema e desafio: produzir com pouco, criativa e diversamente, apontar nossas câmeras para o que vemos, e refletir, o que somos. A Noite de Kino foi isso.

Matheus Chiaratti é graduando em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

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