Uma apropriação crítica dos novos meios

Fábio Oliveira Nunes (ou Fabio FON) é Doutor em Artes na Escola de Comunicações e Artes da USP e Mestre em Multimeios (Multimídia) na UNICAMP. Atua como artista multimídia, designer digital e professor universitário, operando entre outras áreas, nos estudos de hipermídia, web arte, arte mídia e poéticas da visualidade. Um dos seus estudos mais importantes é Web Arte no Brasil, realizado a partir de 1999, referência na abordagem de trabalhos artísticos brasileiros na rede Internet. Atualmente dedica-se à pesquisa da arte tecnológica crítica. Site pessoal: http://www.fabiofon.com.

Resumo

A produção em artemídia baseia-se na apropriação dos meios tecnológicos já existentes, conferindo-os novos propósitos e destituindo a funcionalidade originalmente estabelecida. Esse abandono dos propósitos iniciais dos meios é alegórico de uma recusa de se submeter à lógica dos instrumentos de trabalho e de um projeto tecnológico já instituído. Neste sentido, podemos entender a apropriação e experimentação dos meios como metáforas da própria idéia de crítica social, já que o uso convencional da mídia por si só reflete uma condição de hegemonia. Neste texto são trazidas algumas questões sobre este contexto crítico, referenciando a trabalhos de artistas brasileiros e estrangeiros.

1. Apropriação dos meios

Em pleno carnaval do ano de 1990, em 28 de fevereiro daquele ano, um grupo de artistas brasileiros situados na cidade paulista de Campinas e capitaneados por Paulo Laurentiz, entre os quais podemos citar Anna Barros, Lúcio Kume, Mario Ishikawa, Milton Sogabe e Regina Silveira, realizaram o evento L´Oeuvre du Louvre. Tratava-se de uma transmissão via fax para o Museu do Louvre de Paris, onde os artistas procuravam invadir com várias mensagens o tão conhecido espaço de arte (PRADO, 2003:50). A ação – realizada unidirecionalmente e também batizada de “invasões poéticas” – suscitou um espírito de provocação, ao realizar este bombardeio poético em uma das instituições de arte mais conhecidas do mundo – fama esta que se confunde com a própria herança artística do ocidente, dada a importância de seu acervo. Assim, partindo da apropriação artística do fax – naquele momento, equipamento praticamente restrito ao uso corporativo, para envio de documentos entre grandes empresas ou instituições públicas – os artistas sugerem uma tomada simbólica de um dos ícones da arte clássica através de um recente meio de comunicação.

Paulo Laurentiz: L’Oeuvre du Louvre (1990)

A ação de L´Oeuvre du Louvre é exemplar para pensarmos na estratégia artística recorrente entre as poéticas dos novos meios, constituindo em certa medida ao próprio conceito da chamada artemídia (ou media art), na qual os meios são tomados a fim de discutir eles próprios: apropria-se dos meios e destituem-se seus propósitos mais convencionais. O papel do artista dos novos meios é destruir a funcionalidade originalmente estabelecida e criar novos percursos estéticos que poderão estabelecer um novo olhar sobre experiências humanas e sociais. É justamente pensando neste contexto, com o emergir de meios tecnológicos de comunicação mediando o dia-a-dia, que as idéias da Estética da Comunicação em 1983 são estabelecidas por Mario Costa e Fred Forest, inicialmente. Depois deles, tornam-se também adeptos do movimento Horácio Zabala, Roy Ascott e Derrick de Kerckhove, entre outros nomes. Esse movimento seria proposto como:

Uma meditação filosófica de uma ordem geral sobre a nova condição antropológica e conseqüentes novas formas de experiências estéticas possibilitadas pelas tecnologias de comunicação, e sobre as novas direções nas quais as tradicionais categorias estéticas (forma, beleza, o sublime, gênios, etc.) são conduzidas. (COSTA, 1991, p.124)

Mario Costa diz que a tecnologia é elemento externo ao que é intrinsecamente humano, quando comparada à técnica que, por sua vez, é inerente à figura do indivíduo criador. Os resultados da técnica estão ligados ao artista, pois dele – e apenas dele – advém os resultados. Já as tecnologias não são dependentes do homem – o que é diferente das idéias dos meios como extensão do homem, de Marshal McLuhan[1]:

A passagem das técnicas às tecnologias, na produção artística, constitui uma verdadeira e própria mutação. As imagens, as palavras, o movimento, os sons são tecnologicamente produzidos e tecnologicamente conservados e recriados. Tudo isso é subtraído ao corpo, deixa de ser um resultado de suas operações. Com a passagem da técnica, como prolongamento do corpo, à tecnologia, como suas funções separadas, o artista é posto diante de uma desapropriação do próprio corpo como instrumento da arte, e a arte modifica profundamente a sua essência (COSTA, 1995, p.45).

O movimento propõe uma união entre a tecnologia e o humano, através da apropriação dos meios de comunicação. Nesta confluência surgiria uma “mutação antropológica” nascida de uma lógica própria – a interação e uma nova fenomenologia dos acontecimentos – e da diluição das fronteiras entre “o que é ou não de si”. A Estética da Comunicação é uma das primeiras teorias em torno de uma nova fenomenologia de eventos em que a presença, a relação espaço-tempo e mesmo outras propriedades habituais do objeto artístico, como o belo e a forma tomam novas condições.

Além disso, na introdução do livro Sublime Tecnológico de Costa, FABRIS (1995, p.07-11), ao abordar a Estética da Comunicação, comenta as relações desta com algumas experiências das vanguardas históricas e neovanguardas, apontando que o próprio Costa relaciona sua proposta com o Futurismo, Dadaísmo e o Grupo Fluxus; com a exploração do acontecimento; com a arte conceitual e o fenômeno da desmaterialização; com a poética de obra aberta pelas possibilidades de interação e assim por diante. E ainda, a própria concepção da Estética da Comunicação que, baseada em dez princípios fundamentais, busca indiretamente re-configurar as linguagens já estabelecidas, um ideário que se configura como um manifesto, prática tipicamente modernista. É certo que a própria inserção dos novos meios invariavelmente rompe com os paradigmas da arte no domínio estético, e mais do que exaltar, a Estética da Comunicação anuncia os propósitos desta quebra, mapeando a área fluída das novas tecnologias.

Há vários trabalhos de arte-comunicação que irão apresentar essa nova fenomenologia, trabalhando com Slow Scan TV[2], ligações por meio de satélites e/ou na associação das telecomunicações com a informática – a arte telemática. Segundo PRADO (1997a), o primeiro evento a reunir artistas com o uso das telecomunicações através de uma conexão bidirecional via satélite, aconteceu no ano de 1977, através do evento Send/Receive Satellite Network, organizado por Willoughby Sharp, Liza Bear e Keith Sonnier, localizados em New York (EUA). Conectados a eles, estava o grupo localizado em San Francisco (EUA), coordenado por Sharon Grace e Carl Loeffler. Os artistas mantiveram-se conectados por três horas na primeira edição do evento e a ação foi transmitida em emissoras de ambas as cidades. Ao contrário das facilidades que dispomos hoje para transmissão de imagens em direto por meio de webcams na rede Internet, a transmissão fazendo uso de satélites foi algo muitíssimo dispendioso e complexo. Um outro ato pioneiro, também no ano de 1977, foi a abertura da VI Documenta de Kassel através de uma performance transmitida via satélite para TVs da Alemanha em que o artista Douglas Davis instigava os espectadores a pensar nos limites da tela em seus “últimos nove minutos” (que dá título do trabalho). No mesmo trabalho foram apresentadas performances de Nam June Paik e Joseph Beuys.

Douglas Davis, The Last Nine Minutes (1977)

Desta apropriação dos novos meios, surge a definição de artemídia (ou media art), que irá englobar desde o vídeo (a televisão) aos meios mais recentes, como tecnologias móveis (arte wireless) e artes da rede (web arte). A denominação mídia é aplicável ao aparato eletrônico-informacional da contemporaneidade, composta de jornais, revistas, televisão e sites noticiosos de grandes grupos, que colabora para uma visão de que esse gigantesco corpo e hegemonia são sinônimos. A apropriação deste espaço que por si só – pelas suas finalidades em relação à mass media – já contribui para um ruído poético em meio a tantas vozes homogêneas.

É bom que se diga que o que temos não é apenas uma discussão de suportes instrumentais, onde se espera o uso de dispositivos novos e condizentes com o seu tempo presente, mas a eminência da discussão estética contemporânea em meios igualmente contemporâneos. Porém, esses meios são produzidos com finalidades industriais para a produção massiva. Mesmo as ferramentas mais específicas para produção são pensadas a partir de um uso comum e convencional. Ao falar sobre as imagens limítrofes da produção contemporânea e sua relação com os meios, MACHADO (2004, p.04) salienta:

Experiências (…) que lidam com questões essenciais da arte, como o estranhamento, a incerteza, a indeterminação, a histeria, o colapso, o desconforto existencial não estão obviamente no horizonte do mercado e da indústria, ambientes usualmente positivos, otimistas e banalizados. Algoritmos e aplicativos são concebidos industrialmente para uma produção mais rotineira e conservadora, que não perfura limites, nem perturba os padrões estabelecidos.

Os artistas propõem a reinvenção dos meios, que é alegórica de uma recusa de se submeter à lógica dos instrumentos de trabalho e do projeto tecnológico já instituído. Neste sentido, podemos observar que a apropriação dos meios pode ser vista como uma metáfora da própria idéia de crítica social, visto que, a mídia por si só já é emblemática de uma posição de hegemonia. A mídia possui um poder onipresente, estendido pelas teias do universo eletrônico, especialmente pelo ciberespaço e, ao mesmo tempo, faz uso de uma linguagem rotineira, pré-determinada e previsível, formatada para a média da população. Essas condições constituem-se num evento de grandes proporções que não se limita aos meios e linguagens em si, mas se confunde com a própria sociedade.

2. Ruídos na sociedade tecnológica

Já nos anos 70 do século XX, o artista francês (de origem argelina) Fred Forest já pensava através desse viés, através de sua “Arte sociológica” que, junto com Hervé Fischer e Jean- Paul Thenot, declarava que “nossa sensibilidade é manipulada pelos meios de comunicação em massa”. Forest é conhecido através de ações em que procurava o choque com o receptor a fim de sensibilizá-lo: um exemplo é a ação ocorrida em outubro de 1973, no centro da cidade de São Paulo, onde o artista percorreu as principais ruas comerciais com cartazes e placas em branco, sem qualquer texto ou imagem. Com o agrupamento de transeuntes curiosos, a ditadura militar da época rapidamente encarou o caso como algum tipo de manifestação política e manteve o artista preso por algumas horas. Em outra ação semelhante, o artista alugou uma página inteira do jornal francês Le Monde, que se apresentava completamente em branco, na qual existia a possibilidade do leitor preencher o espaço com o que quisesse e, em seguida, enviar ao artista. Ainda na mesma linha, o artista também conseguiu convencer uma emissora francesa a transmitir, num intervalo de um noticiário de grande audiência, seus 60 segundos de branco – um minuto sem qualquer imagem na tela. Forest ocupa o espaço da mídia de massa, sob a forma insólita do vazio informacional, como maneira de problematizar o próprio meio através de uma estratégia explícita de choque com a sensibilidade do receptor: sua proposta, ao ocupar um meio não convencionado como artístico, recusa uma estrutura já estabelecida e propõe o que seria impraticável.

Fred Forest: O Branco invade a cidade (1973)

A presunção dos meios como âmago da sociedade contemporânea estará presente em vários trabalhos de Forest e até mesmo em seu próprio casamento: o Tecno-casamento (também referenciado como Ciber-casamento), realizado em 1999 com a artista Sophie Lavaud. A iniciativa de realizar o – assim anunciado – primeiro casamento através da Internet, acaba sendo sintomático de uma sociedade que se vê por meio da tecnologia, se fundindo e confundindo com a própria. Nesta situação, o enlace matrimonial é também “um trabalho de arte colaborativa e interativa, e uma experimentação em uma cerimônia on-line”, segundo o então noivo. Os artistas tiveram o evento transmitido através de um site da rede, como também possuíam avatares (os alter egos virtuais) que acompanhavam os movimentos de seus correspondentes em carne e osso em um ambiente surrealista em 3D, simultaneamente. A Internet não só abrigava os espectadores da ação como também, alguns dos participantes do casório – como as testemunhas. E como já seria esperado, o público podia felicitar os recém-casados e até mandar flores on-line. Já em um dos seus trabalhos mais recentes, Forest propõe ironicamente que os visitantes do ambiente virtual Second Life joguem o seu lixo no interior do mundo virtual. A ação Dump your trash in Second Life (2008) convida os indivíduos a prepararem seu próprio “saco” de dejetos a serem destruídos, pensando em valores da contemporaneidade.

Fred Forest, Dump your trash in Second Life (2008)

É interessante notar que essa postura nos novos meios está carregada de conceitualismos que enaltecem o contexto em diversas esferas em que o trabalho de arte poderá atuar. Neste sentido, BOURRIAUD (2006, p.69) parte da concepção de que o artista é um indivíduo que “toma um trem em movimento”, ou seja, que habita as circunstâncias que o presente oferece para transformá-lo em um contexto de vida e, em seguida, torná-lo seu próprio universo de criação. Segundo o teórico francês, a modernidade contemporânea instaurou novas circunstâncias sociais, tão significativas que partem para serem protagonistas de uma produção questionadora cada vez mais recorrente a partir dos anos 90 do século XX. Essa produção é observada através de um critério de coexistência em que toda obra de arte cria um modelo de sua própria sociedade, seja transpondo o âmbito do real ou se traduzindo nele.

Ora, quando nos deparamos com a experiência do site de web arte JODI (http://www.jodi.org), de 1994, temos a medida exata de uma sociedade, ao mesmo tempo, tecnológica e aterrorizante. JODI – um clássico na produção artística para a rede Internet – foi heterodoxo em muitos sentidos: trazia páginas – inclusive sua abertura – com mensagens de código-fonte, ícones sem qualquer sentido, imagens e elementos intermitentes, tudo sem qualquer explicação – não havia qualquer texto ou sugestão do que realmente se tratava. Sem nada que nos faça crer o contrário, a situação diretamente nos parece algum ataque de vírus – suscitando no usuário um temor daquilo que nós podemos chamar de contaminação de seu terminal. O conteúdo, prioritariamente estético, desta produção dos artistas europeus Joan Heemskerk e Dirk Paesmans contraria qualquer proposição “bem-intencionada” da rede, onde os sites deveriam funcionar com clareza, legibilidade e eficiência. Muito ao contrário: revelam-se os pavores comuns das relações em que cada vez mais as máquinas estão envolvidas.

JODI – http://www.jodi.org (1994)

Mas além dos vírus, o nosso cotidiano mediado por máquinas, o equipamento que freqüentemente falha, os softwares repletos de erros de programação, as rotinas repetitivas e inumanas ou as interfaces mal-resolvidas são algumas das justificativas para trabalhos em que a metalinguagem se sobressai criticamente. FLUSSER (2002, p.15) diz que para toda crítica em torno das imagens técnicas nascidas no interior de uma caixa preta – quando somente podemos assimilar seus inputs e outputs, com suas intenções ocultas – deviam visar ao “branqueamento” desta caixa. Os discursos metalingüísticos partem deste interior oculto para torná-lo um espaço denso e ininteligível, como no site de web arte JODI, ou mesmo em alguns trabalhos da artista brasileira Giselle Beiguelman, quando convida seus visitantes a realizarem uma coleta dos erros tecnológicos, como no site <Content=No Cache>[3] (2000) e mais tarde em Esc for escape[4] (2004) – um projeto cross media (envolvendo diversos meios como telões pela cidade de São Paulo, celular e Internet) trazendo um “bestiário” com os erros mais comuns nos mais distintos equipamentos como caixas eletrônicos, DVD Players, telefones etc. Da artista, há também Desmemórias[5] (2005), apresentado na Mostra Cinético_Digital, no Itaú Cultural, em São Paulo, em que cria um filme interativo sobre os vestígios tecnológicos de um passado recente. Estes trabalhos estão buscando nos direcionar para nossas relações conturbadas com a tecnologia e o contexto inóspito que pode surgir destas relações.

3. Abordagens críticas

Alguns dos trabalhos do artista americano Perry Hoberman, pioneiro na artemídia – atuando com performances e instalações interativas – são exemplares para a discussão de nossas relações conturbadas com a tecnologia e o contexto inóspito que pode surgir destas circunstâncias. Zombiac (2000), por exemplo, consiste em uma instalação com diversos terminais de computadores, novos e antigos, alguns datados dos anos 70 e outros bem mais recentes, distribuídos pelo espaço expositivo. A tela de cada monitor foi substituída por uma superfície translúcida de plástico que possui uma luz verde embutida. O equipamento é dotado de diversos sensores – de presença (movimento) e de som – bem como autofalantes, que emitem diferentes ruídos, estando, ainda, montado sobre uma plataforma giratória, podendo assim, mudar rapidamente sua face para qualquer direção.

Cada terminal, constituído da maneira mencionada, possui algoritmos e comportamentos semi-randômicos que permitem que no meio desta multidão de computadores, um ou mais deles inicie uma “conversa” emitindo ruídos e seqüências de emissão de luz verde. A partir do momento que algum deles inicie, os seus vizinhos giram a face para o monitor ativo e passam a capturar seus flashes e sons, motivando-se a responder imediatamente. Daí, ao passo que os vizinhos dos vizinhos também captam emissões, instauram-se turbilhões de conversas, que podem ser dos mais variados ritmos (nas palavras do artista[6]: diálogo, argumento, bate-papo ou pequena conversa), iniciando e terminando de maneira inesperada, criando grupos espontâneos de constante reconfiguração. O artista diretamente relaciona o comportamento de seus terminais como atitudes similares àquelas que são corriqueiras em eventos sociais como uma festa de abertura de exposição ou um coquetel, no qual a ação é pautada pelo caráter espontâneo e completamente imprevisível.

Mas é interessante ver também que as ações do sistema independem – ao menos num primeiro momento – da contemplação ou da presença do receptor. As conversas se estabelecem e se findam sem que haja a interferência de qualquer indivíduo. Porém, a partir do momento que alguém adentra o espaço dos terminais e passa por entre eles, conseqüentemente, seus movimentos e sua localização passam a serem capturados pelas máquinas e elas oferecerão alguma reação: som de vozes sintetizadas, arquivos de áudio adulterados ou chiados de modem, flashes intermitentes de luz verde. Hoberman fala sobre o seu trabalho:

Numa primeira olhada, os visitantes talvez percebam um arranjo de workstations genéricas. Então, à medida que os monitores trocam flashes um com o outro, a percepção de um estranho tipo de comunicação emerge. Finalmente, desviando-se através da instalação, os visitantes podem ter uma sensação de algo próprio do homem (apesar da sensação de ser um intruso) inteligentemente ouvindo e direcionando, tentando comunicar, estabelecendo contato [7].

Perry Hoberman, Zombiac (2000)

O título do trabalho nos sinaliza para a intenção de pensar a inteligência artificial de maneira mais geral: o nome Zombiac é visivelmente a aglutinação de Zumbi e Eniac – sigla do primeiro computador criado, em 1946, que significa Electronic Numeric Integrator And Calculator[8]. Existe a intenção de explicitar o percurso desde Eniac até os primeiros nuances que temos hoje da inteligência artificial, criando aqueles que seriam, em relação a uma sociedade tida inteligente, os zumbis. Mas quem realmente seriam os zumbis já que os elementos ativos (inteligentes) desse micro-cosmo são os terminais, são eles que estabelecem contato, iniciam e findam relacionamentos e são eles que inspiram uma comunicação aparentemente plausível? Não somos nós, enquanto receptores, somente intrusos: a significância da nossa comunicação e do nosso pensar aqui é nula.

A abordagem crítica sobre a tecnologia, conduzida por Hoberman não se finda em Zombiac. Em Accept (2003), o artista retoma essas considerações, tomando corpo de modo mais direto. Nesta exposição, o artista reúne uma gama de trabalhos nos mais distintos meios – antigos e novos – discutindo nossos dilemas atuais, conforme está em seu site, um mundo com o poderio cada vez maior da tecnologia, onde nosso poder para fazer uso criativo destas mesmas tecnologias está sendo ameaçado das mais variadas formas. Restrições e vigilância estão presentes no software, hardware e redes que usamos diariamente ao mesmo tempo em que estaria em processo a tentativa de tornar-nos um exército de lucrativos e passivos consumidores.

Accept se compõe dos seguintes trabalhos: Your Time is Valuable, trabalho realizado a partir de um computador, sensor de presença e uma tela LCD – na qual são apresentados, a partir do momento que o visitante se encontra em sua frente, números que descrevem, em porcentagem, o quanto teria sido visto ou assistido em relação a outros meios como o cinema; Art under contract, trabalho composto de um computador e uma pequena caixa de metal que possui um visor que é aberto por alguns instantes (e apresenta uma imagem) apenas quando o visitante aceita um “contrato de licença do usuário final” similar àqueles presentes ao instalar qualquer software, disponível a ser clicado no espaço expositivo; Ok/Cancel, série de imagens impressas onde apresentam onipresentes janelas de sistemas operacionais  (Windows 98, Macintosh OS X e outros) em insólitas situações; My Life in SPAM, série de imagens impressas, criadas através da superposição de mensagens eletrônicas comerciais não-solicitadas – os chamados SPAMs – capturadas desde 1998 até 2002, totalizando cerca de 6.000 mensagens; The Great Indoors, um monitor 3D de alta tecnologia (que dispensa o uso de óculos) dialoga visualmente com silhuetas coloridas de figuras, animais e objetos, constituídas de plástico e fibra de vidro (as silhuetas pretas são repetidas em azul e vermelho translúcidos), revivendo os interesses do artista nos anos oitenta em visão estereoscópica e fenômenos óticos; Total Information Awareness, trabalho constituído de duas versões, sendo que em ambas as duas esferas mecânicas, sob a imagem de olhos, rolam de um lado a outro, de cima a baixo, em todos os sentidos, como “um olho que tudo vê”.


Perry Hoberman, My life in SPAM/Accept (2003).

4. Preocupações presentes

O primeiro desafio de uma produção crítica em novos meios está em atuar no sentido contrário a um possível deslumbramento tecnológico. Como já é sabido, os novos meios são muitíssimo atraentes. O deslumbramento frente a eles é algo que pode nos alcançar sem que nos seja possível tomar consciência: a própria cultura do consumo se alimenta justamente na inovação tecnológica e nas novas possibilidades que cada nova bugiganga high-tech poderá nos proporcionar. Ao mesmo tempo, para aqueles que estão mais atentos aos avanços da tecnologia, cada novo software, cada novo recurso disponível, na maioria das vezes implica em uma satisfação que pode ser grande o suficiente para protagonizar a relação do indivíduo com a tecnologia.

Entretanto, o artista deve estar atento no fato de que a tecnologia implica em um emaranhado jogo entre poderes e restrições, um universo nos quais os resultados não são apenas vinculados ao artista, mas também ao contexto de possibilidades (técnicas, econômicas, sociais) que a tecnologia traz em seu interior. Na tecnologia, o contexto emerge e realiza simbioses mútuas. Temos uma relação que é encadeada pelos softwares até o mercado da companhia que o produz – pelo hardware até o contexto que estes componentes são produzidos, onde compatibilidades são reflexos de acordos comerciais e suas novidades dependem da aceitação de mercado. Mesmo a produção de software em código aberto (livre) só existe em função da política restritiva da produção comercial – é o jogo de negá-la, reforçando o que já existe.

O segundo e mais complexo desafio é conseguir ao mesmo tempo em que se foca determinada circunstância, conseguir se livrar do caráter puramente referencial. Não é um desafio específico das tecnologias, mas um obstáculo comum a toda arte que almeja um despertar crítico. Uma postura muitíssimo objetiva acaba anulando o trabalho poético enquanto manancial de múltiplos sentidos, como deve ser esperado nas chamadas obras abertas, como é referenciada por Umberto ECO (apud PLAZA, 2003:11), “como uma mensagem fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados em um só significante”.  Referenciando a Julio PLAZA (2003), ao propor três aberturas na relação autor/obra de arte/recepção, o autor cita a necessidade de “vazios”, “reticências e sugestão” como caminhos para elevar a percepção da obra de arte e citando Mallarmé, conclui: “Nomear um objeto é suprimir três quartas partes do gozo de um poema”. Bem, se alguns pontos precisam ser direcionados, é necessária a busca de um equilíbrio, a fim de que não se perca seu caráter essencialmente estético.

BIBLIOGRAFIA

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006.

COSTA, Mario. Technology, Artistic Production and the ‘Aesthetics of Communication’, LEONARDO, Cambridge, Vol. 24, n. 2. pp. 123-125. 1991.

COSTA, Mario. O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento, 1995.

DONATI, Luisa Paraguai. Análise semiótica do site Jodi. In: CADERNOS DA PÓS-GRADUAÇÃO. Ano I, vol.1, n°2. Campinas: Instituto de Artes/Unicamp, 1997. pp. 103-111.

FABRIS, Annateresa. [Prefácio]. In: COSTA, Mario. O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento, 1995. pp. 7-17.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

MACHADO, Arlindo. Arte e mídia: aproximações e distinções. E-Compós – Revista da Assoc. Nac. dos Prog. de Pós-Graduação em Comunicação, n.1, dezembro de 2004. 15 p.

McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem (Understanding media). 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1971.

PLAZA, Julio. Arte e interatividade: autor-obra-recepção. In: ARS – Revista do departamento de Artes Plásticas ECA/USP Ano1, n° 2. São Paulo, ECA/USP, 2003. pp. 09-29.

PRADO, Gilbertto. Cronologia de experimentações artísticas nas redes de telecomunicações. In: Trilhas, Instituto de Artes, Unicamp, Campinas, n.6, pp.77-103, 1997a.

PRADO, Gilbertto. Dispositivos interativos: imagens em redes telemáticas. In: DOMINGUES, Diana (org.). A Arte no Século XXI: A Humanização das Tecnologias. São Paulo: Editora da Unesp, 1997b. pp. 295 – 302. Disponível em: <http://www.cap.eca.usp.br/wawrwt/textos/gilbertto6.html>. Acesso em 20 de junho de 2007.

PRADO, Gilbertto. Arte telemática – Dos intercâmbios pontuais aos ambientes virtuais multiusuário. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.


[1] McLUHAN (1971, p.61): “Com o advento da tecnologia elétrica, o homem prolongou, ou projetou para fora de si mesmo, um modelo vivo do próprio sistema nervoso central”. COUCHOT (2003:93) parte para uma outra definição da distinção entre tecnologia e técnica: a técnica passa a ser tecnologia a partir do momento em que não é mais empírica, mas “solidária” da ciência.

[2] Slow Scan TV (SSTV) é um método de transmissão de televisão em varredura lenta, para intercâmbio de imagens fixas utilizando transmissões de rádio ou mesmo a linha telefônica.

[3] Disponível em: http://www.desvirtual.com/nocache/. Acesso em 12 de agosto de 2008.

[4] Disponível em: http://www.desvirtual.com/escape/ . Acesso em 12 de agosto de 2008.

[5] Há uma versão do trabalho em: http://www.pucsp.br/~gb/desmemorias/. Acesso em 10 de agosto de 2008.

[6] As considerações de Perry Hoberman sobre Zombiac e demais trabalhos, estão disponíveis em sua página pessoal em: http://www.perryhoberman.com . Acesso em 10 de junho de 2008.

[7] Tradução livre de trecho da página do site do artista: http://www.perryhoberman.com/pages/zombiac/text.html (acessada em 20/07/2008).

[8] O autor também propõe Zombiac como uma sigla: Zone Of Monitor-Based Inter-Amnesiac Contact, literalmente, algo como, “Zona de contato inter-amnéstica baseada em monitores”.

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