Lacan com Spielberg – O Olhar Abjeto da Nova Lei

Ivan Capeller[1]

Resumo: Uma análise do filme Minority Report – A Nova Lei, de Steven Spielberg, a partir do conceito de olhar-objeto, precedida por uma breve revisão da recepção das ideias de Jacques Lacan pela teoria do cinema, bem como de sua crítica.
Palavras-chave: cinema; psicanálise; olhar-objeto

Spielberg with Lacan: Minority Report’s Abject Gaze

Abstract: An attempt to read Steven Spielberg’s Minority Report through the concept of gaze as an object, opened by a brief revision of the way that cinema theory absorbed Jacques Lacan’s ideas as well as criticized them.

Keywords: cinema; psychoanalysis; gaze

O desvão cinematográfico do olhar

O psicanalista interpretado por Bruce Willis em O Sexto Sentido (The Sixth Sense, de M. Night Shyamalan) empenha-se com todo o seu profissionalismo e sabedoria científica na compreensão do verdadeiro significado das alucinações a que seu paciente de oito anos de idade é constantemente submetido – apavorantes visões de pessoas que haviam acabado de morrer de forma violenta sem que o tivessem compreendido ainda, imagens sangrentas de gente que relutava em reconhecer seu próprio fim. O Sexto Sentido começa dando-nos a impressão de que assistiremos à narrativa de um processo terapêutico de cura pela psicanálise – trabalho a ser realizado através da elaboração verbal deste complexo imaginário de fantasmas e de sua austera redução à dimensão puramente simbólica de seus elementos constituintes, atenuando seus efeitos traumáticos e almejando a gradativa desaparição dos sintomas. Porém, sentado em sua poltrona, o psicanalista conscientiza-se da insustentabilidade de sua posição e da impotência radical de seu empreendimento, já que até mesmo a velocidade e o ritmo de assédio das horripilantes imagens que assolam seu paciente são muito mais impactantes do que o lento trabalho de elaboração simbólica próprio ao trabalho de análise. Podemos observá-lo no instante preciso em que, percebendo-se como já morto, compreende o sentido terminal do encontro que tivera com esse último paciente. E é justamente neste instante que percebemos que seu olhar e seu silêncio ao longo do filme não representavam realmente sua profunda interioridade subjetiva, refletindo na verdade o vazio opaco e superficial de um espectro. A própria irredutibilidade final do fantasma a todas as suas possíveis determinações simbólicas (velho tema dos filmes de terror desde O Exorcista) é levada neste filme às últimas consequências.

Neste embate entre a razão simbólica que deve ordenar e conferir sentido às imagens e um imaginário incontrolável e perturbador, há uma diferença radical entre a representação cinematográfica clássica da ameaça espectral e suas versões mais contemporâneas: enquanto o cinema de um Hitchcock (Vertigo, 1958) ou de um Tourneur (Cat People, 1942) estruturava-se a partir de uma razão interpretante mobilizada para a esconjuração simbólica de fantasmas imaginários, apresentando espectros ou fenômenos assustadores e inexplicáveis apenas com a intenção de anular seus possíveis efeitos perturbadores e relegá-los ao desvanecimento completo no final do filme, o cinema contemporâneo prefere acentuar a descrição labiríntica das múltiplas armadilhas imaginárias em que o mais experiente analista pode acabar se enredando.

Essa inversão de ênfase entre os aspectos simbólico e imaginário de um filme é uma característica presente não só na prática cinematográfica contemporânea como também em sua teoria, cada vez menos confiante nos modelos de orientação marxista e semiológico/estruturalista próximos da psicanálise lacaniana que ficaram conhecidos sob a denominação de teoria do aparato (ou dispositivo) cinematográfico. Tais modelos recorreram à idéia lacaniana de uma “fase do espelho” na constituição do sujeito humano para descrever o modo específico com que o cinema obtém a adesão inconsciente do espectador à ideologia que veicula. Através de sua identificação imaginária com o ponto de vista monocular da câmera, isto é, com um sujeito do olhar simbolicamente pré-determinado – identificação facilitada pela impressão fotográfica da realidade em movimento – o espectador é convidado a estabelecer com o filme uma série de identificações secundárias com os tipos e situações nele representados, projetando-se psiquicamente na tela e envolvendo-se afetivamente com o conteudo ideológico da representação, de forma a aceitá-lo acriticamente.

Para Jean Louis Baudry, tanto o aparato técnico necessário ao registro e à projeção de imagens em movimento como os procedimentos de continuidade que perpassam todas as etapas de execução de um filme (da filmagem à projeção, passando pela montagem) têm o objetivo de simular imaginariamente um sujeito transcendental do olhar com o qual o espectador deve se identificar. O que garante a ocorrência deste processo de identificação é o fato de que o processo de constituição do sujeito exige – em um estágio anterior à aquisiçao da capacidade de andar e de falar pela criança – a percepção do próprio reflexo especular, da própria imagem no espelho, como a imagem primordial de um eu ideal com o qual o sujeito estabelece identificações primárias de forte carga afetiva.

O processo de identificação do espectador ao ponto de vista da câmera enquanto sujeito transcendental do olhar estimularia os processos mais profundos de identificação narcísica do espectador consigo mesmo, aproximando a tela do cinema da função do espelho: fazer com que o espectador identifique-se ao filme, identificando-se a si mesmo como o próprio sujeito do olhar que constitui o filme.

Autores como Stephen Shaviro, no entanto, desmontam o esquematismo reducionista implícito à teoria do aparato cinematográfico e revalorizam teoricamente a idéia de uma irredutibilidade conceitual do imaginário cinematográfico à lei simbólica – uma tendência que a produção cinematográfica contemporânea parece confirmar. Shaviro insurge-se radicalmente contra a ideia de que a imagem cinematográfica seja essencialmente ilusória e vazia, e de que derive seu poder de persuasão ideológica justamente de uma potência “imaginária” de atribuição da impressão de realidade a qualquer objeto por ela representado. Enquanto Metz declara que “aquilo que define o regime escópico propriamente cinematográfico não é tanto a distância mantida, (…) como a ausência do objeto visto” (Metz, 1993, 86), Shaviro afirma que

a imagem não é um substituto representacional para o objeto tanto quanto é – como um cadáver – resíduo ou traço material do fracasso do objeto em desaparecer completamente (…) a imagem não é um sintoma da ausência, da falta, mas sim um resíduo estranho, excessivo, que subsiste quando tudo deveria estar ausente (Shaviro, 1993, 16).

A ontologia da imagem cinematográfica deve afastar-se assim de uma concepção baseada na representação e na ideologia que procura – nas palavras de Metz -“retirar o objeto-cinema do imaginário para conquistá-lo ao simbólico, na esperança de anexar a este último uma nova província” (Metz, 1993, 9). Tentando apreender as potências intrínsecas de sua materialidade própria e de sua irredutibilidade essencial a qualquer objeto de representação, Shaviro não descreve a imagem cinematográfica como um instrumento ou aparato de sujeição e domínio da realidade pela ideologia, mas como um fator de ameaça e de desagregação deste mesmo domínio:

Ver um filme é algo que resiste aos cânones da “verdade” perceptiva (…) as imagens na tela são violentamente afastadas de qualquer horizonte ou contexto externo, assim como de qualquer presença (…) a imediaticidade da imagem curto-circuita os processos de significação, enquanto sua incorporalidade impede qualquer referência objetiva. (Shaviro, 1993, 28)

A experiência cinematográfica estaria baseada na reprodução direta de eventos e na exposição do público aos seus efeitos. Um bom exemplo pode ser estabelecido a partir da famosa anedota acerca da primeira exibição, em 1895, de L’Arrivée d’un Train à la Gare de la Ciotat, dos irmãos Lumière:

A materialidade da sensação permanece irredutível a – e irrecuperável pela – idealidade da significação. Foi pelo choque e pela surpresa deste movimento que se encantaram os primeiros espectadores do cinema no final do século XIX e não por sua capacidade ou complacência de reconhecer o real em sua reprodução. Godard evoca esta sensação muito bem em uma sequência de ‘Les Carabiniers’ em que seu jovem protagonista vai ao cinema pela primeira vez. Ao ver o filme de Lumière com a tomada do trem aproximando-se diretamente a câmera (e portanto da audiência),  reação imediata do garoto nao é – como poderíamos supor – a de tentar fugir correndo, mas a de cobrir os olhos. Ele não reage como se o trem estivesse realmente ali; ele responde antes à imagem real de um trem. Ele não é afetado por qualquer suposta verossimilhança representacional da imagem, mas por sua persistência e movimento viscerais. Um trem está de fato se dirigindo para ele – não para a sua cadeira na sala de projeção, evidentemente – mas para a sua linha de visão. (Shaviro, 1993, 33)

Há uma irredutibilidade ontológica da imagem cinematográfica ao domínio simbólico da representação. Para Shaviro, a objetividade material da imagem cinematográfica ultrapassa – por sua própria constituição e por seus efeitos concretos – qualquer tentativa de determinação simbólica a partir de um sujeito transcendental do olhar:

Quando eu olho [um filme], minha mente não está presente: a visão e a audição, a antecipação e a memória, não me pertencem mais. Minhas reações não são internamente motivadas e não são espontâneas; são impostas sobre mim do exterior. (…) Quando eu olho um filme, um estranho interesse se apossa de mim, do qual não posso escapar, mas de que também não posso me apropriar. (Shaviro, 1993, 49)

Ao substituir a idéia de uma representação cinematográfica propiciadora de identificações imaginárias por um dispositivo de reprodução de imagens que é o único verdadeiro sujeito dos efeitos cinemáticos que provoca, Shaviro revela-nos o limite epistemológico comum tanto à teoria do aparato como à sua: a necessária postulação de um suposto sujeito do olhar como garantia da eficácia do dispositivo. Destituindo o espectador de sua posição de identificação com o sujeito transcendental do olhar, Shaviro não considera mais a imagem como a representação de um objeto para o espectador, mas sim como o próprio objeto de reprodução do dispositivo – apesar do espectador: “Não é o olhar [do espectador] que demanda imagens, mas são as imagens que solicitam e sustentam o olhar enquanto lhe permanecem indiferentes” (Shaviro, 1993, 20). Portanto a imagem captura o olhar do espectador e o sujeita de forma completamente inequívoca, sem nenhuma brecha ou desvio possível de sentido; se antes a relação imaginária de identificação do espectador com o filme era pensada em suas mediações com a representação, agora é pensada como imersão direta do olhar do espectador no objeto-imagem – ou, no sentido inverso, como a projeção real deste objeto sobre o olhar do espectador. É a imagem que atua como sujeito sobre o olhar do espectador, transformado em objeto: assim a sujeição deste aos efeitos do dispositivo é completa, sendo a visibilidade deste último total. Shaviro aproxima o dispositivo cinematográfico do dispositivo panóptico de Foucault, considerando o efeito de subjetivação no espectador como uma realização direta e integral do dispositivo, o que o impossibilita pensar em que medida este efeito de subjetivação é também resistência ao dispositivo, e sobretudo impossibilitando-o pensar o olhar-objeto como aquilo a que resiste o sujeito em seu processo de subjetivação.

Esta “resistência à resistência” é uma das características mais problemáticas do que Joan Copjec define como “o argumento panóptico” em um artigo fundamental para a compreensão da complexa história da recepção das ideias lacanianas pela teoria cinematográfica. No dispositivo panóptico, a circularidade sem falhas do olhar baseia-se, segundo Copjec, na equiparação das categorias de visibilidade e conhecimento por um lado, e nas de efeito e realização, por outro. Pois, se a imagem é perfeitamente reconhecível através de sua visibilidade integral, o sujeito se realiza inteiramente enquanto efeito do dispositivo:

[Há] um paradoxo manifesto na descrição de Foucault do poder panóptico e na descrição pela teoria cinematográfica da relação entre o aparato e o olhar. Em ambos os casos o modelo de auto-vigilância recorre implicitamente ao modelo psicanalítico da consciência moral, mesmo quando essa proximidade é negada. A imagem da auto-vigilância, da auto-correção, é ao mesmo tempo necessária para construir o sujeito e redundante devido ao fato de que o sujeito assim construído é, por definição, integralmente correto e ‘direito’. A inevitabilidade e completude de seu sucesso faz com que o gesto ortopédico de vigilância seja desnecessário (…) a relação entre o aparato e o olhar cria apenas uma miragem de psicanálise. Não há, de fato, nenhum sujeito psicanalítico à vista. (Copjec, 2000, 444)

Copjec descreve aqui a influência do dispositivo panóptico sobre a teoria do aparato cinematográfico de Metz e Baudry, demonstrando como a sujeição do espectador ao dispositivo já era pensada indiretamente pelos teóricos do aparato em sua leitura da fase do espelho:

Este é o quadro descrito por Metz. O sujeito reconhece primeiro a si mesmo ao identificar-se com o olhar e então reconhece as imagens na tela. Mas, o que é precisamente o olhar neste contexto? (…) o olhar é sempre o ponto a partir do qual a teoria cinematográfica concebe o processo de identificação (…) o sujeito vem a ser ao identificar-se com o sentido da imagem. O sentido funda o sujeito.  (Copjec, 2000, 442)

Há um equívoco fundamental nesta leitura da fase do espelho em Lacan, equívoco que também se manifesta na analogia traçada por Baudry entre a alegoria da caverna e a sala de projeção de cinema: a ideia de que a identificação do espectador com as imagens será sempre eficaz na medida em que se baseia em uma identificação primordial com sua própria imagem no espelho, garantindo assim sua sujeição aos efeitos ideológicos do aparato.

Segundo Copjec,

a imagem não só parece representar perfeitamente o sujeito, como também parece ser uma imagem da perfeição do sujeito. A definição comum de narcisismo parece apoiar esta relação: o sujeito apaixona-se pela própria imagem como imagem de seu eu ideal. A não ser pelo fato de que o narcisismo transforma-se nesta versão em uma estrutura que facilita a relação de harmonia entre o sujeito e a ordem social (…) enquanto, na versão psicanalítica, a relação narcísica do sujeito com seu eu é vista como um conflito disruptivo com outras relações sociais. Estou tentando apontar aqui para um ponto de discordância entre a psicanálise e o argumento panóptico que não é de pouca importância: a oposição entre a força disruptiva do narcisismo e a força de constituição das relações sociais é um dos postulados básicos da psicanálise. (Copjec, 2000, 442)

A identificação primordial de um sujeito consigo mesmo, através de sua imagem, está longe de garantir a sua adesão à lei social, constituindo-se, pelo contrário, em ameaça permanente à eficácia integral desta adesão. Assim, o processo narcísico de identificação imaginária não pode ser considerado como uma fonte de coesão e sentido para o olhar; sua especularidade coloca o sujeito em fundamental desacordo com sua própria imagem, alienando-o de si mesmo em seu próprio processo de constituição.

Para Copjec, a psicanálise não “condena” platonicamente o imaginário como fonte de desengano e desilusão para o sujeito, como pretende Shaviro. Antes, demonstra de que forma o imaginário será sempre uma fonte de suspeita para o sujeito e de ameaça à sua consistência simbólica, de que forma o olhar se estabelece contra o sujeito. Embora correto em sua crítica aos teóricos do aparato e à sua interpretação específica da questão do imaginário em Lacan, Shaviro partilha de seu equívoco fundamental – a confusão da teoria psicanalítica com um seu objeto, já que a tentativa de redução do imaginário à representação simbólica é considerada por Shaviro como uma operação teórica da psicanálise (e os teóricos do aparato o confirmaram em seu equívoco, pois acreditavam ser esta a intenção da psicanálise) enquanto a própria psicanálise nada mais é do que a constatação cabal da impossibilidade radical desta redução.

Ao eliminar a necessidade da representação ideológica e da identificação imaginária para o funcionamento do aparato cinematográfico, Shaviro inverte a relação de determinação entre o simbólico e o imaginário sem perceber que sua concepção panóptica do olhar apenas acentua este reducionismo ao invés de evitá-lo. Assim, se o modelo semiológico de aparato pensado por Metz e Baudry era mais adaptado ao olhar clássico-narrativo que dominava a produção cinematográfica dos anos 30 até meados dos anos 70, a teoria de Shaviro apresenta um instrumental de análise evidentemente muito mais apropriado para a discussão do cinema industrial contemporâneo e de seus efeitos. No entanto, sujeitando o olhar ao dispositivo panóptico, Shaviro perde a possibilidade de pensá-lo plenamente em seu desvio para o objeto. Isto ocorre porque ele identifica a função do olhar com o campo escópico ou visual, ou seja, com a dissociaçao panóptica ver/ser visto.

Joan Copjec, por sua vez, chama a atenção para o fato de que

a teoria cinematográfica introduziu o sujeito em seus estudos, incorporando assim a psicanálise lacaniana, basicamente através d’O Estádio do Espelho como Formador da Funçao do Eu. Era a este ensaio que os teóricos faziam referência quando formularam suas idéias sobre a relação narcísica do sujeito com o filme e sobre a dependência desta relação ao ‘olhar’. Embora o ensaio sobre a fase do espelho realmente descreva a relação narcísica da criança com sua imagem no espelho, não é neste ensaio e sim no Seminário XI que Lacan formula o seu conceito de olhar. Aqui (…) Lacan reformula seu ensaio anterior sobre a fase do espelho e traça um panorama muito diferente daquele que foi pintado pela teoria cinematográfica. (Copjec, 2000, 447)

Para Jacques Lacan, o olhar pode ser tratado como um objeto na medida em que o considerarmos como aquilo que da imagem não se deixa ver:

Em nossa relação com as coisas, na medida em que esta relação é constituída através da visão, e ordenada pelas figuras da representação, algo desliza, passa, é transmitido de estágio em estágio, e é sempre eludido em certo nível – isto é o que chamamos de olhar. (Lacan, 1979, 73)

Para além da dicotomia entre o ver e o ser visto, há uma dicotomia fundamental entre a visão e o olhar que é o próprio fundamento do campo escópico, da visibilidade. Enquanto a visão está ligada ao olho e àquilo que é especificamente ótico na imagem, o olhar responde pelo desvio ou desencontro constante entre o visível e seu sentido:

Não há e não pode haver visão pura, visão totalmente desprovida de sentido (…) como os significantes são materiais, ou seja, como são mais opacos do que translúcidos, como se referem a outros significantes ao invés de referir-se diretamente ao significado, o campo da visão não é claro ou facilmente percorrível. (Copjec, 2000, 449)

Como as leis da ótica mapeiam a propagação da luz apenas através do espaço, revelam-se insuficientes para entendermos como olhamos uma imagem para não a ver, elidindo assim o que a faz propriamente imagem – o olhar. Uma descrição puramente ótica do jogo perceptivo de luzes e cores que conforma uma imagem deve necessariamente excluir de sua perspectiva a questão da função do olhar. Isto só é possível porque o olhar é precisamente aquilo que falta à imagem para que esta apareça como tal aos olhos de um sujeito.

A emergência do campo escópico se dá com o desvio do olhar para o objeto e a instalação do olho como orgão subjetivo da visão. O olhar é aquilo que falta à imagem, aquilo que é expulso da imagem para que esta possa vir a ser (imagem). Mas a falta de que falamos aqui não é constitutiva de um “significante imaginário” especificamente cinematográfico como em Metz ou como em Shaviro – que cita um artigo de 1988 de Kaja Silverman em que esta fala do “espectro de uma perda ou ausência no centro da produção cinemática” (Silverman, 1990, 110-127) e parte daí para criticar o uso da noção de falta pela teoria cinematográfica. Correto em sua crítica, Shaviro apenas desconhece o fato de que o que a teoria do olhar-objeto precisamente não faz é localizar a falta na diferença entre a imagem cinematográfica e as imagens reais. Não se trata da ausência de um referente concreto que caracterizaria a imagem cinematográfica como um substituto ou duplo da realidade, e sim daquilo que “aparece [na imagem] como uma ‘tela’ ou ‘mancha’, como um ‘ponto’: o olhar que, no espaço visual, apresenta-se sempre como um jogo de transparência e opacidade”  (Zupancic, 1996, 34-35).

O olhar-objeto é o significante da própria falta – daquilo que, na imagem, não se deixa desvelar pelo campo visual. A constituição de um sujeito transcendental do olhar identificado à monocularidade perspectiva da camera obscura – uma importante premissa da teoria do aparato – é, portanto, simplesmente incompatível com a teoria lacaniana do olhar-objeto, pois a identificação do sujeito já não pode mais ser feita com o olhar enquanto o centro organizador das significações da imagem, e sim “com o olhar como o significante da falta que esmorece a imagem” (Copjec, 2000, 449). O olhar-objeto é ponto de quase dissolução da imagem, de suspensão de seu sentido, portanto de ameaça à constituição do sujeito:

Pois, para além de tudo o que é exibido ao sujeito, uma questão é colocada: o que está sendo escondido de mim? O que é que neste espaço gráfico não se expõe, não cessa de não se inscrever? Este ponto em que algo aparenta ser invisível, este ponto em que algo se furta à representação, em que algum sentido permanece oculto, é o ponto do olhar lacaniano. (…) É um ponto em que o sujeito desaparece. A imagem, o campo visual, aparece então com uma aterrorizante alteridade que impede o sujeito de se identificar com a representação. Aquela ‘sensação de intimidade’ é subitamente esvaziada da representação, na medida em que o espelho assume a função de tela. (Copjec, 2000, 450)

A tela não é mais comparada a um espelho, antes é o próprio espelho que adquire aqui a função de tela: qualquer imagem é uma imagem apenas na medida em que se interpõe entre o sujeito (da visão) e o olhar-objeto, e não entre sujeito e “realidade”. Do ponto de vista do sujeito, o olhar-objeto será sempre olhar-abjeto, será sempre mau-olhado: isto ocorre porque a própria constituição do sujeito é atravessada pela dicotomia entre a visão e o olhar. “Ali onde o sujeito se vê…não é dali que ele se olha…” (Lacan, 1979, 73).

A ambiguidade do imaginário não está mais situada aqui em relação ao conteúdo de sua representação ou às suas condições simbólicas de enunciação, mas sim àquilo que a imagem oculta em sua própria mostração, àquilo que deve ser suprimido do campo do visível para que este se faça visível. Assim, o sujeito identifica-se com a imagem enquanto representação ideológica não porque acredite em sua verdade, porque seja enganado por ela (como pretende a teoria do aparato) – e sim porque sabe que ela é falsa:

Enquanto a posição da teoria cinematográfica tende a enquadrar o sujeito na armadilha da representação (um erro idealista), a conceber a linguagem como a construção dos muros da prisão que é a existência do sujeito, Lacan afirma que o sujeito vê esses muros como um trompe-l’œil e é, portanto, construído por algo além deles. (…) Lacan certamente não está oferecendo uma descrição agnóstica da maneira com que o objeto real escapa à captura no interior da rede de significantes. (…) A opacidade da linguagem é considerada a própria causa da existência do sujeito, de seu desejo. O fato de que é materialmente impossível dizer a verdade toda (…) funda o sujeito. (Copjec, 2000, 450)

Por trás da representação imaginária propiciada pelo campo escópico não há nada além do olhar-objeto enquanto significante da falta. Esta última reside precisamente na opacidade material do olhar. A “falsidade” do imaginário garante assim a própria existência do sujeito, que se verá sempre ameaçado, por outro lado, pela materialidade excessivamente verista e inquietante de certas imagens, por algo na imagem que não corresponde inteiramente à imagem e que escapa ao seu sentido.

Shaviro concebe o dispositivo cinematográfico exatamente como um dispositivo de produção desta “inquietude”. Sua descrição das propriedades da imagem cinematográfica enfatiza a materialidade de seus distúrbios, a proliferação monstruosa de seu olhar e seus reflexos no cinema contemporâneo. Porém, ao basear a materialidade deste olhar na especificidade de seu dispositivo – a reprodução cinematográfica – Shaviro não percebe que é a materialidade de qualquer dispositivo de visão que se suporta do olhar enquanto objeto; o sujeito para Shaviro é apenas um elemento do circuito de reprodução das imagens, e não um fator de desvio ou resistência ao olhar.

A mera constatação de que há uma descontinuidade radical de sentido entre os diversos dispositivos de visão e seus respectivos sujeitos do olhar não basta para a compreensão do olhar-objeto. Este erro ou fantasia acerca de um sujeito do olhar (seja ele transcendental ou materializado em seu dispositivo) é descrito por Lacan através da fórmula “vejo-me ver-me”: a pretensa eficácia e suposta transparência do dispositivo panóptico reside precisamente nesta ilusão, a de que a dimensão ótico-geométrica da imagem possa esgotar as possibilidades significantes do campo escópico e operar a sutura entre sujeito (da visão) e olhar-objeto através de um possível sujeito do olhar. O que a teoria do panoptismo descreve em termos de potência e produção só pode ser lido pela teoria do olhar-objeto como manifestação de impotência e ameaça de destruição: o encontro do sujeito com o olhar que lhe devolve a sua própria imagem deve ser evitado a todo o custo para que a representação imaginária se estabeleça no campo escópico.

Nossa hipótese é a de que a emergência deste olhar é acompanhada pelo fracasso imediato do dispositivo panóptico, de sua falência social : é a própria crença na eficácia do sujeito do olhar panóptico que reforça o caráter socialmente abjeto deste olhar.

O olhar abjeto do dispositivo panóptico

Minority Report – A Nova Lei, de Steven Spielberg, ilustra esta questão de maneira quase involuntária: Spielberg idealiza um dispositivo panóptico absolutamente sem falhas, uma sociedade em que até o tráfego dos carros é controlado automaticamente por mecanismos de identificação imediata de seus passageiros. O sujeito do olhar panóptico está presente por toda a parte, esquadrinhando e identificando todas as atividades humanas a partir de um olho-mecânico tão perfeito que é capaz de proceder ao rastreamento imediato de qualquer pessoa a partir do padrão reticular de sua íris: o panóptico de Spielberg pretende realizar integralmente a redução do olho a um puro objeto e a captura total do olhar pelo dispositivo. A circularidade total do dispositivo exige o controle não só do espaço de locomoção dos homens mas principalmente da temporalidade de suas ações, “realizando” integralmente a existência do sujeito dentro dos mecanismos do dispositivo panóptico. O olho-mecânico deve ser portanto complementado por um olho-psíquico sensível às imagens que chegam do futuro (representado no filme pelos chamados “pré-cognitivos”, filhos de ex-viciados em heroína que nasceram com poderes de vidência), reduzindo ao máximo as possibilidades subjetivas de desvio (crimes) e configurando assim um sujeito do olhar literalmente empírico-transcendental – o delegado John Anderton da divisao de pré-crimes, que é interpretado por Tom Cruise.

É sua ação “corretiva” que preenche os intervalos de tempo cada vez menores que são necessários para a autorregulação do olhar panóptico, tema da primeira sequência do filme: a interação imaginada aqui entre os aspectos psíquico e mecânico do olhar é quase exata, e é precisamente neste “quase” que se insere a mancha na imagem, o primeiro sintoma do olhar-objeto. No caso, a mancha é claramente representada pelo fato de que todas as casas da rua em que se passará o crime são iguais, e este só pode ser evitado porque a imagem da porta entreaberta funciona como o ponto ou mancha a partir do qual o objeto nos olha por detrás da imagem; é precisamente a identificação deste ponto que permite à polícia evitar o crime e fechar o circuito do olhar panóptico. Portanto, a realização máxima do olhar enquanto sujeito do dispositivo apenas desencobre a evidência cada vez mais insuportável de seu caráter abjeto.

Esta abjeção, resolvida idealmente dentro do dispositivo panóptico nesta primeira sequência, exerce na verdade um efeito profundamente disruptivo sobre o próprio circuito, e este é o tema abortado de Minority Report. O olhar-objeto destaca-se com a máxima intensidade do dispositivo panóptico durante a primeira metade do filme, transformando a vida de seu protagonista em um inferno. Em uma das primeiras sequências noturnas do filme, o chefe de polícia Anderton compra nas ruas da cidade uma substância ilegal (sintomaticamente denominada clarity) das mãos de um traficante; a princípio, ouvimos apenas a voz de um homem de capuz e óculos escuros que diz saber que ele é o chefe de polícia, mas que, diante de sua reação de espanto e preocupação, o tranquiliza afirmando literalmente que “em terra de cego quem tem um olho é rei”. No momento em que o traficante está proferindo esta última frase, a câmera enquadra-o em close enquanto ele tira os óculos escuros: ele não tem os dois olhos, que foram retirados. Seu olhar para Anderton é abjeto na medida em que é ao mesmo tempo onividente e cego, isto é, sua impotência é pré-condição de sua onividência. O olhar-objeto aparece aqui em sua plena oposição ao sujeito do olhar panóptico, ao mesmo tempo em que é esse mesmo sujeito em sua busca pela transparência total (“clarity”) que o provoca, que o conjura.

O olhar-objeto assume outras formas igualmente desagradáveis para Anderton e ligadas à sua posição central no dispositivo. Ao contemplar-se cometendo um crime com data e hora marcadas contra um completo desconhecido (“vejo-me ver-me…”), Anderton torna-se ele mesmo objeto do olhar panóptico, começa a ser perseguido como um criminoso e deve trocar seus olhos para escapar à vigilância do dispositivo. O desvio total para o olhar-objeto realiza-se no lapso de tempo de 12 horas em que Anderton deve ficar escondido com uma venda sobre seus novos olhos, sem poder abri-los. Ao final deste período, sua venda é aberta pelo olho “escaneador” de um escorpião mecânico da polícia, um dispositivo abjeto de controle da identidade que, no entanto, lê a sua íris sem reconhecê-lo, deixando-o livre. Nesta sequência, o desvio do panoptismo aparece como uma decorrência direta da emergência de um olhar-objeto claramente provocado pelo próprio panoptismo. Mas Spielberg preferiu ressuscitar aqui, sintomaticamente, a velha “psicanálise de botequim” do trauma pessoal a ser imaginariamente exorcisado. O confronto com o vazio abissal da não-identidade implícito à troca de olhos é “preenchido” com as imagens “mentais” do filho desaparecido de Anderton – ressubjetivando e repsicologizando o desvio do olhar. A partir daí, o filme afasta-se progressivamente da questão do olhar-objeto para ensaiar uma crítica de tons “liberais” ao “totalitarismo” do dispositivo panóptico, perdendo grande parte de seu interesse.

Devemos analisar mais detidamente, porém, a maneira com que Spielberg se afasta da questão do olhar-objeto à medida em que se aproxima a hora da execução do crime pelo qual Anderton é perseguido. A sequência de imagens desta execução, já familiar ao espectador, começa a desenrolar-se como previsto até o momento em que Anderton deve apertar o gatilho; sabe-se agora que ele matará o suposto responsável pelo desaparecimento de seu filho, do qual há várias fotos espalhadas no aposento. Mas Anderton retém seu impulso e dá voz de prisão à sua indignada vítima, que revela então o fato de que havia sido na verdade contratada para enganá-lo, provocando em seguida a própria morte. Embora a pré-visão tenha portanto se realizado, Anderton não pode ser considerado o verdadeiro responsável pelo “crime” na medida em que opôs ao real do acontecimento o limite da lei simbólica (a “voz de prisão”). Além disso, a pré-visão do futuro real é reconvertida aqui na tradicional armadilha imaginária construída para o logro do sujeito (no caso, o próprio Anderton): a “orgia de evidências” de que nos fala logo depois o investigador do FBI que quer acabar com a divisão de pré-crimes coloca sob suspeita de fraude o funcionamento do dispositivo panóptico e a idoneidade de seu mentor, que é também o chefe e principal incentivador de Anderton.

Spielberg prefere portanto denunciar o panopticum como uma fraude ou armação, como um esquema de dominação baseado no logro do imaginário e na manipulação do dispositivo. Anderton estava sendo falsamente acusado para que outro crime (cometido por seu chefe e conectado, evidentemente, ao período de implantação da divisão pré-crimes) permanecesse oculto. O olhar-objeto já não é mais a ameaça radical ao domínio panóptico do campo escópico que a primeira parte do filme sugere de maneira tão vívida. O problema agora é bem mais prosaico, e Spielberg sente-se nitidamente mais à vontade: um crime verdadeiro foi cometido, há portanto uma cena da origem a ser (des)velada!

As imagens deste crime vêm à tona em uma recepção em homenagem à divisão pré-crimes, que está para ser implantada nacionalmente. São imagens erroneamente consideradas como “ecos” do dispositivo, imagens levemente atrasadas de crimes que acabaram de ser previstos. A fraude, cometida pelo chefe de Anderton, consistiu na execução de um crime real logo após a sua própria encenação, repetindo as mesmas condições imaginárias do evento de forma a que o crime real parecesse um eco do encenado. O logro imaginário está portanto na própria origem do dispositivo panóptico para Spielberg, que o condena apenas na medida em que este ainda não é o “verdadeiro” panóptico, o dispositivo sem desvio.

Ao desviar-se do olhar-objeto, Spielberg perde a oportunidade de realizar a crítica ao dispositivo panóptico enquanto tal e contenta-se com a resolução simbólica de um conflito imaginário: no final do filme, o chefe de Anderton é destituído de sua posição benevolamente paternal para assumir características obscenas (Enjoy yourselves! It’s an order! é o brinde que ele propõe no início da recepção em que será desmascarado). A confiança das pessoas no dispositivo panóptico desaparece e a “nova lei” do controle real é derrotada pela “velha lei” simbólica baseada na “voz”, isto é, no engagamento subjetivo da palavra.

Há uma ironia latente nas relações deste filme com a psicanálise: em sua primeira parte, quando Spielberg descreve a lógica puramente cinemática de um dispositivo panóptico quase perfeito, o olhar-objeto é evocado de forma praticamente involuntária em todas as cenas. Mas é precisamente quando Spielberg recorre à psicanálise (ou ao que ele pensa que ela é), que o filme se afasta das questões que a teoria do olhar-objeto levanta para refugiar-se na velha solução, bem conhecida pela teoria do aparato, das armadilhas imaginárias e de suas resoluções simbólicas.


[1] Ivan Capeller é doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor adjunto da ECO – Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUDRY, Jean Louis: “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”, in A Experiência do Cinema (Ismail Xavier, org.), Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1991.
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LACAN, Jacques: « O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu », in Um Mapa da Ideologia (Slavoj Zizek, org.), Contraponto, Rio de Janeiro, 1996.

LACAN, Jacques: The Four Fundamental Concepts of PsychoAnalysis, Harmondsworth, Penguin Books, 1979.

METZ, Christian: Le Signifiant Imaginaire, Christian Bourgeois éditeur, Paris, 1993.

SHAVIRO, Steven:  Cinematic Bodies, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1993.

SILVERMAN, Kaja: “Historical Trauma and Male Subjectivity” in Psychoanalysis & Cinema (E.Ann Kaplan, org.) Routledge, New York, 1990.

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