A Viagem de Chihiro (Hayao Miyazaki, 2001)

Cena do filme "A Viagem de Chihiro".

Aquela “suspensão da descrença” (suspension of disbelief) que, desde a reflexão de Samuel T. Coleridge, é uma das premissas para a fruição das obras de ficção, torna-se mais premente quando se tratam de gêneros ditos infantis, como as animações. Crianças ou não, precisamos acreditar naquele mundo que nos é oferecido; habitá-lo, no sentido pleno do termo, é tão ou mais importante que buscar compreendê-lo racionalmente. Senão acreditamos no que se está nos mostrando, reduzimos todo o conteúdo simbólico da obra à condição de alegoria, isto é, a um discurso produzido por imagens em que tudo, exatamente tudo, pode ser trocado em miúdos e trazido à tona pelo discurso racional. A ânsia de explicar, que é natural da crítica, não precisa palmilhar o caminho da excessiva alegorização. É possível, e talvez até necessário, preservar certa opacidade que os símbolos lhe garantem à obra artística.

A viagem de Chihiro (2001), obra-prima de Hayao Miyazaki, vem bem a calhar nessas reflexões, pois nela a alta rotação de imagens simbólicas pode levar o crítico a, via alegorização, transformar seu trabalho em uma enfadonha tarefa de tradução de imagens, reiterando exaustivamente a cantilena “X representa o sentimento Y de Z”. Penso, ao contrário, que Chihiro pede-nos antes uma convivência cúmplice do que uma dissecação dessa natureza; isso, naturalmente, não paralisa o empreendimento crítico, mas nos lembra que, em alguns casos, a interpretação pode servir de anteparo à experiência. Esperamos que não seja o nosso caso; oxalá que os apontamentos que se seguem não sejam mera dissecação.

Cena do filme "A Viagem de Chihiro".

Olhando de longe, é fácil dizer quem é Chihiro: uma menina mimada que, por meio de provações, deverá adquirir maturidade. Essa redução estrutural do enredo, no entanto, é genérica e enganadora. Se olharmos de perto, veremos quão múltiplos e cheios de nuanças são os “ritos de passagem”[1] pelos quais a garotinha (que, na história, tem 10 anos) atravessa. Tais ritos se iniciam quando Chihiro, recusando-se a ficar sozinha na floresta, tem de atravessar um túnel que parece ter vida; em seguida, ela deve resistir à comida mesmo sentido fome (coisa que seus pais não conseguiram); a seguir, já num mundo de seres sobrenaturais (bruxas, espíritos, deuses) deve se humilhar para pedir um emprego e ainda suportar ser humilhada por sua forma humana; empregada, tem de segurar o nojo e limpar a sujeira dos outros; adiante, recusa o ouro que o espírito Sem Face lhe oferta, provando que já sabe distinguir o essencial do acessório; além de tudo isto, deve salvar Haku e seus pais. Fazendo tudo isto, não deve esquecer seu nome verdadeiro, para não ser plenamente dominada pela bruxa Yubaba. De prova em prova, a cada estação de sua viagem, Chihiro vai compreendendo que a fronteira entre o bem e o mal não é bem demarcada e que os problemas da vida podem ser revertidos ou pelos menos remediados.

Cena do filme "A Viagem de Chihiro".

Mas o cinema, especialmente o cinema de animação, não é tão prodigioso em encenar ritos de passagem? Certamente que sim. A este respeito, devemos lembrar que o primeiro longa-metragem da história da animação, Branca de Neve e os setes anões, de 1937, já enquadrava seu enredo nesse molde. Mas o diferencial de Hayao Miyzaki é a capacidade de fabulação, que nos desconcerta em sua magnitude e na complexidade, formal e simbólica, de sua elaboração. A imaginação prodigiosa de Miyazaki é de inclinação dantesca, e assombra em quantidade e qualidade. Mal nos acostumamos com novas formas, outras sucedem – e, ainda assim, tudo parece bem costurado, embora não óbvio. Essa oscilação de formas, aliás, surpreende por evitar maniqueísmos. A rigor, nos filmes de Miyazaki, não apenas em Chihiro, não há luta do mal contra o bem; aos poucos se descobre que ninguém é inteiramente mau nem perfeitamente bom. Yubaba ama alguns seres (como ,acima de todos, o bebê gigante), cumpre com a palavra, ama o serviço que faz; o pai de Chihiro, que poderia ser o protótipo da bondade, é um profanador da Natureza – invade seu templo com a prepotência do capitalista que se orgulha de possuir um carro com tração nas quatro rodas, rompe sem hesitação o limbo que separa o mundo humano e o espiritual (assim o faz quando atravessa o túnel, mas, como capitalista empedernido, crê se encontrar num parque temático abandonado) e, numa passagem possivelmente possivelmente inspirada em Dante, é levado pelo pecado da gula a devorar o manjar dos seres divinos. A este respeito, é importante registrar que o grande tema de Miyazaki, não só em Chihiro, é a profanação da Natureza. Ainda assim, não se pressente nos filmes do diretor uma polarização simplória do tipo homem mau versus natureza boa. A relação entre Chihiro e Haku é prova de que o homem pode reatar seus laços com a Natureza.

Se não restam dúvidas de que a história de Chihiro estonteia e desconcerta o analista pela sua profusão de imagens simbólicas e poéticas, não se pode, mesmo assim, afirmar que o diretor japonês tenha inventado uma história nova; pelo contrário, ele se apóia na estrutura milenar do mito e vai agregando a ela nuanças até alcançar uma narrativa densa e de difícil ordenação (tanto para o criador quanto para nós, que a re-criamos quando assistimos ao filme).

Cena do filme "A Viagem de Chihiro".

Essa estrutura mítica de que se vale Miyazaki é, como observou Fábio Andrade, recorrente no melhor da animação atual, desde Tim Burton (A Noiva-Cadáver, 2005), passando por Henry Selick (Coraline e o Mundo Secreto, 2008) e por Andrew Station (Wall-E, 2008). Andrade interpreta todos esses filmes como releituras do mito de Orfeu, pois neles “a personagem precisa ir ao mundo dos mortos para resgatar o amor (seja ele romântico ou existencial), e restaurar valores que foram deturpados em seu mundo natural”[2]. Porém, é possível também reduzi-los, como fiz com Chihiro mais acima, à idéia do rito de passagem: em todos esses filmes ocorre uma viagem purgativa na qual seres mimados (Chihiro, Coraline) ou ingênuos (Emily, a Noiva-Cadáver e Wall-E) amadurecem.

De todas essas viagens, porém, nenhuma parece ter tantas nuanças como a de Chihiro. Isso porque, de escala épica, ela engloba a necessidade de aceitação da família (questão de Coraline), a força dignificante do trabalho e a descoberta da esperança (como em Wall-E[3]) e o amor como fonte de libertação (o caso de Emily). A força onívora da viagem de Chihiro se ampara no melhor da tradição épica, dentro e fora da tradição cinematográfica, e explica por que Kurosawa reconhecia em Miyazaki um de seus pares.

Wanderson Lima é escritor e professor de literatura da UESPI. Co-edita a revista dEsEnrEdoS (http://www.desenredos.com.br/) e mantém o blog O Fazedor (http://blogdowandersonlima.blogspot.com/ ).



[1] Simplificadamente, podemos chamar ritos de passagem a todo tipo de celebrações e/ou provas que, uma vez cumpridas, selam mudanças de status de uma pessoa no seio de sua comunidade Para um aprofundamento, v. VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978

[2] ANDRADE, Fábio. Coraline e o Mundo Secreto. Disponível em: < http://www.revistacinetica.com.br/coraline.htm> Acesso em ago. 2010.

[3] Interessante notar que tanto o robozinho Wall-E como Chihiro trabalham limpando a sujeira dos outros.

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Este post tem 6 comentários

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    Anderson

    Talvez esta seja a melhor análise que já li sobre A Viagem de Chihiro e, sem dúvida, a que mais respeita a grandiosidade do filme de Miyazaki. Parabéns, professor. Ótima leitura…

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    Allan Donnola

    Não consigo entender essa fissura que nós brasileiros temos por animações japonesas, Digimon, Pokémon Dragon Ball, Naruto, Os cavaleiros do zodiaco e outros tantos, o que acho peculiar é que nunca liguei para esses desenhos japoneses na minha infância, embora adorava Spectreman e Ultraman seriados que passavam na TV brasileira na década de 70 e 80, mas gosto de criança é algo absurdo, acho que quando somos crianças nosso senso critico é limitadíssimo e qualquer coisa boba engraçada fazem elas pararem na TV e adorarem.
    Possuo uma locadora e aposto com você, se eu mostrar a viagem de chihilo ou shrek para dez crianças as dez vão escolher Shrek.
    O que quero passar aqui nesta crítica é que japoneses não são os tais em animação, faça um teste para ver ser o que elas preferem, claro que depende da idade das crianças, mas a faixa etária ideal é crianças acima de 10 ou 11 anos, Experimente alugue ou mostre para ver quais elas irão escolher e se escolherem animações como essas, além de não entenderem não vão gostar, lógico que há exceções.
    A viagem de chuhilo, achei uma viagem mesmo, mas me encantou é a estoria da Alice no país das maravilhas às avessas. Foi difícil me acostumar, ou melhor me adequar ao cenário e os personagens, depois fui me envolvendo e “saboreando”, é uma viagem maneira e gostosa de se ver. Não aconselho para crianças muito novas devido a complexidade dos personagem e a trama muito profunda daria uma nota 8,5

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    Carol

    O que ele quis dizer que é as animações japonesas geralmente trazem mais valores, delicadeza e maturidade do que produções americanas, por exemplo (mesmo quando recheadas de piadinhas ou acidez, como Simpsons) – por isso as crianças não gostam tanto como nós.

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    Dalva Vieira

    Impressionante… eu vi “A viagem de Chihiro” várias vezes e toda vez, achava que entendia algo, além de me deliciar com as imagens, o silêncio em determinados momentos e maravilhoso som instrumental em outros… mas exposição aqui apresentada me mostrou outras facetas e nuances que por mais uma vez, me fez ver ao filme.
    Esse comentário de que 10 crianças entre 10, escolhem Shrek tem haver com midia, como praticamente em tudo. “A viagem de Chihiro”, infelizmente não teve a mesma divulgação e marketing de filmes como o citado. Sem contar que são duas animações diferentes, onde uma uma a animação tem a originalidade da palavra e no outro o gráfico computadorizado dá a magia. São magias diferentes. Origens diferentes, conteúdos diferentes, direcionado infelizmente a públicos diferentes.
    Enfim, voltando a análise, meus parabéns… digo meus, porque gosto e opinião devem ser questionados sim, mas acima de tudo respeitados.

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    Ricardo

    Gostei muito do seu texto!
    Me ajudou a entender e sentir vários momentos desse filme tão envolvente!

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    Haru

    Muito interessante a crítica. Acho muito difícil, com o nosso olhar ocidental, conseguir olhar para todas as nuances desse filme.
    Não sei muito sobre Dante, mas pensei muito na própria mitologia japonesa. Em seu mito de criação há Izanami, que morre e vai ao mundo dos espíritos. É dito que lá, uma vez que se come a comida do lugar, não se pode sair mais.

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