Lost é uma série criada por J.J. Abrams em 2004, sobre um avião que cai misteriosamente numa ilha misteriosa. O enredo foi se desenvolvendo, e, para manter os espectadores e aumentar o número de fãs, criou enigmas e dúvidas para deixar qualquer admirador “encucado” com os finais de episódios empolgantes, levando-os direto para comunidades de redes sociais, blogs e fóruns para debater sobre possíveis teorias da “moral” de Lost e aguardar o próximo capítulo ansiosamente.
Seis temporadas se passaram e muitas ramificações do roteiro foram criadas até chegarmos em 2010 em sua sexta e última série de episódios. Muitas perguntas e dúvidas foram levantadas. Esta temporada está no ar justamente para revelar todas as respostas – é dedicada praticamente para isso, fora a realidade alternativa que foi criada nesse ano de 2010 – enquanto a história na ilha se desenvolve, fora dela, contam-se histórias dos principais personagens, de como a vida seria se tivesse pousado o avião; e a relação que isso tem com o mundo paralelo em que a queda do avião aconteceu (e vice-versa).
Segundo os produtores Damen Lindelof e Cartlon Cuse, a única resposta que falta para os fãs é como as duas linhas de realidade paralela (avião caiu/avião posou) se interligam. Mas Cuse avisa:
“Ainda haverá muito espaço para debate depois que a série terminar. Mas as questões maiores, nós reconhecemos, não são ‘respondíveis’. Para nós, desmistificar algumas das coisas que fazemos em ‘Lost’ é como um mágico mostrar para o público como o truque é feito, e nós não queremos fazer isso”.
Ou seja, mais mistérios não-resolvidos ficarão após o término do último segundo do último episódio. Isso era previsível, até para a série ter vida após a “morte” – e continuar rendendo financeiramente.
“É como quando você está com uma criança de três anos, que você rapidamente descobre que uma questão leva a outra – sempre tem um “por que” depois de cada “por que” e o único jeito de terminar a conversa é com ‘Oh, olha, Chuck E.Cheese’ [uma lanchonete com brinquedos e fliperamas dos EUA].
Mas já dá para ser identificado no episódio de número 8 da sexta temporada (intitulado Ab Aeterno, dirigido por Tucker Gates) qual é esse “Chuck E. Chesse” a que o produtor Carlton Cuse se refere. Já conseguimos perceber que esta revelação bombástica faz esquecermos muitas outras pequenas dúvidas que estávamos “preocupados”. E essa grande revelação é nada mais, nada menos, que a batalha entre o bem e o mal.
O episódio é, além do nível de revelações, muito bom como produto audiovisual (fotografia, edição, direção) – em especial o roteiro – revelando a história de um dos personagens mais intrigantes, Richard Alpert (Nestor Carbonell), que não envelhece e é imortal. Este é o catalisador para conseguir explicar a “moral” de Lost. Alpert começa o capítulo deixando todos os fãs ouriçados, afirmando firmemente que a ilha é o inferno, e todos estão sendo julgados – teoria que desde a primeira temporada de Lost persegue os produtores com perguntas insistentes e não correspondidas de fãs. Porém, durante o episódio, a afirmação de Alpert vai perdendo forças, e nós concluímos que não, não é isto (a princípio).
Alpert era um pobre espanhol, que tinha sua mulher Isabella (Mirelly Taylor) adoecida. Fora buscar ajuda médica, longe do povoado onde morava, a cavalo, num dia de forte chuva, mas não tinha como pagar a poção. Alpert implorou pelo remédio ao médico da cidade mais próxima, oferecendo até a corrente de ouro que pertencera a sua mulher, que a mesma dera para pagar a medicação. O médico (Jose Yenque) desdenhou o pobre homem. Alpert assassinou, sem querer, o médico, entre tapas pelo remédio que somente ele possuía e poderia curar sua esposa. Ele volta correndo, sem tempo para remorso para com o morto, para dar a poção a sua amada. Porém, era tarde demais. No dia seguinte, Alpert é preso. O homem implora por perdão ao padre que o visita, e o padre nega. Seus erros já foram cometidos ele será punido no inferno. A ideia assombra o prisioneiro. No dia de sua execução, um contrabandeador de escravos deseja comprá-lo – e o livra da forca. Porém, na viagem de barco que o levaria ao Novo Mundo (Estados Unidos), objetivo de viagem que Alpert tinha desde que Isabella era viva. Uma terrível tempestade que deixa o mar revolto acaba levando o barco sabe aonde? Na ilha, batendo na famosa estátua de estilo egípcio da série (por isso ela é quebrada) com a ajuda de um tsunami. Isso em 1867. Para você ver o impacto da série nos espectadores: um fã relatou que pesquisou e em 1867 realmente aconteceu um tsunami, na ilha Virgin Island.
Lá, ele fica dias sofrendo, por estar acorrentado, com fome e sede, e por todos seus companheiros estarem mortos pela fumaça negra. Sua mulher Isabella aparece, dizendo para tomar cuidado com a fumaça negra, que ela é traiçoeira, o diabo em pessoa. Seria uma miragem por Alpert estar sem comer e beber a dias? A fumaça aparece e leva sua amada. No dia seguinte, um homem, interpretado pelo excelente Titus Welliver, aparece, dizendo ser amigo e o liberta. Enquanto Alpert devora um suíno assado proporcionado pelo novo parceiro, o amigo revela ser a fumaça negra, e que salvou sua amada do verdadeiro diabo – Jacob (Mark Pellegrino). E só há uma maneira de sua paixão voltar à vida: matando Jacob, com uma adaga que ele lhe dá. Alpert vai ao encontro do suposto diabo, mas Jacob afirma que na verdade a fumaça negra é o diabo, a maldade, e ele, Jacob, está encarregado de mantê-la na ilha, para não escapar e exterminar o resto do mundo. Ou seja, Jacob é o bem (segundo ele diz) e a fumaça negra, o mau. Alpert pediu a Jacob que sua mulher voltasse. Ele disse que seria impossível. Então, ele pede pelo perdão de seus erros. Jacob diz que isso também não pode fazer. A terceira opção de Alpert é a vida eterna. À esse desejo, Jacob acata (Alpert fez tal pedido com medo do inferno que tanto temia pelos seus erros?). Jacob, então, é Deus?
E as pedras que Jacob mandou Alpert entregar para a fumaça negra? Acha-se na internet o significado das pedras segundo os gregos e romanos:
”Pedra branca lembra os processos nos tribunais gregos/romanos. As pedras brancas e negras eram utilizadas para os jurados da época indicarem o seu veredicto. O branco significava declaração de inocência e a negra a de condenação. Receber uma pedra branca equivale portanto a uma declaração de salvação.” – Wikipédia, sobre mitologia grega.
Estaria Jacob perdoando a fumaça negra? Deus perdoando o Diabo?
Porém, não estaria a fumaça negra falando a verdade? Afinal, Jacob provém de Jacó, que também significa Israel, e Israel, em grego, significa “aquele que luta com Deus”. Seria ele do mal e a fumaça negra do bem (isso a série não conclui) ou o Deus que ele está lutando é o mau, o Diabo, Hades? Jack pode ser o anjo Rafael, com o poder da cura? Ben seria Judas, o traidor? Seria Dharma o representativo da ciência contra a Ilha, a religião, o conflito entre o bem e o mau (o céu ou o inferno)? Muitas dessas perguntas nem serão respondidas, como os produtores já avisaram, afinal, querem que a série continue rendendo após seu término simbólico.
Mas vamos às respostas: o episódio explana porque Alpert é imortal, porque a estátua está destruída, porque o barco que está no meio da ilha está tão longe da margem, e porque Alpert que alicia pessoas para serem candidatos ao novo Jacob, afinal o mesmo previa o seu fim (será mesmo que ele morreu? Muitos fãs dizem que ele está em estado de espírito, e não incorporado em ninguém).
Quem manterá o mau na ilha? Quem será o novo bem – inclusive, será que Jacob é Deus, e/ou o primeiro candidato a zelador da ilha? Ou ele deu continuidade ao trabalho de alguém, assim como ele quer que alguém o faça?
No blog Fora de Série (http://wp.clicrbs.com.br/foradeserie/), da colunista Camila Saccomori, o fã Rainor comenta a seguinte frase no debate sobre o episódio 6×09:
“Se o pessoal olhar para as temporadas passadas vai notar um monte de coisa que não será explicada. A Libby que era louca e se passava por médica, os ursos polares e os tubarões com o símbolo da Dharma, as viagens no tempo do Desmond, o cavalo que a Kate via… Ih, tem tanta coisa que vai ficar no ar. E esse negócio de deus e diabo ficou meio babaca, parece a série Supernatural que colocou anjos na história e estragou tudo. Acho que os caras foram inventando coisas e agora que tem que acabar vão usar o expediente de ‘bem contra mal’ para um final forçado.”
Rainor está correto. Os roteiristas de Lost criaram tantos mistérios que foi necessário criar uma revelação de grande impacto para esquecermos as outras que eles próprios não acharam fundamentos necessários para ter respostas satisfatórias. Como Lindelof e Cuse disseram, “Oh, olha, Chuck E. Cheese!”.
Outro fã, Rafael, no mesmo blog, disse:
“Mas gostei que, independente de as respostas serem geniais ou não, este episódio deu várias respostas, sem necessariamente dar uma de ‘Código da Vinci’ em que um personagem lá fica fazendo uma palestra de meia-hora explicando os mistérios do mundo. O volume de informações deste episódio é enorme e, ainda assim, parece um episódio leve, o que é uma grande sacada.”
A percepção de Rafael é válida, mas a explicação é simples: é um episódio leve porque a “moral” de Lost é a “moral” de grande parte de livros, filmes, videogames: o bom contra o mau. Estamos acostumados com isso, até porque lidamos com escolhas diariamente, mesmo não sendo necessariamente entre o bem e o mau.
A “moral” de Lost entrou num estágio maior do que uma mera série. Não se tornou apenas um desfecho de série convencional, mas sim, um debate filosófico, inclusive, um dos maiores de todos – e que nem sempre chegamos a conclusões 100% satisfatórias. Como a série, com certeza, não terá um fim que agradará à todos. Mas Lost comprova – está valendo a pena ter acompanhado todas as temporadas fielmente. E que no dia 25 de maio, lançamento do episódio final, com duas horas de duração, a maioria se contentará com o final.
Quando Jacob explica para Alpert (que nos representa, espectadores em dúvida) com uma simples metáfora o que é a fumaça negra, o mal, o demônio com uma garrafa de vinho. A garrafa é a ilha. O líquido, o mal. A tampa, ele mesmo, Jacob, o guardião. Enquanto alguém estiver zelando pela ilha e por manter o cachorro raivoso preso, o líquido não escapará. Mas um simples deslize e… Bom, melhor uma arte gráfica de um fã que circula na internet para explicar o que quero dizer:
Thiago Köche é graduado em realização audiovisual pela universidade UNISINOS