André Renato*
Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano (Índia / Brasil / EUA, 2009) é um filme regido pela dança. E não apenas pelas referências que faz ao gênero de musicais que caracteriza a produção cinematográfica mitologicamente profícua do país de Gandhi; a dança também adquire ares metafóricos – melhor ainda: simbólicos / arquetípicos – ao representar com poesia a jornada das três mulheres protagonistas, das ansiosas buscas materiais às inesperadas conquistas espirituais. O leitmotif não-diegético (uma imagem-tema recorrente, que está fora da estrutura narrativa, infelizmente) da dançarina típica executando sua “oração corporal”, devidamente instalada contra um fundo de ruínas de templos milenares, é uma das maneiras (ainda que um pouco discursiva demais) de a diretora expressar a força do tema que cadencia e anima (no sentido de “dotar de alma”) o seu filme de ponta a ponta.
Mas é das próprias situações vividas por Ana, Luna e Sofia que brota a maior parte das associações significativas com a “música” executada pelo corpo: como exemplo, temos a cena em que o seu jovem “professor” de dança lhes apresenta Shiva, a divindade destruidora / renovadora que “rouba a dança dos deuses e a concede aos mortais”. Em outro momento, já perto do final, uma das personagens diz que, segundo o I-Ching, a paz está associada ao movimento, enquanto a sua oposição aparece figurada pela estagnação. São dois pequenos casos do duro, mas enriquecedor, aprendizado que as três jovens atrizes brasileiras alcançarão no quase-continente indiano.
Deslocaram-se para lá, em primeiro lugar, para tentar algum papel na indústria cinematográfica de “Bollywood” (mais de 800 filmes por ano, segundo uma delas). No entanto, os insistentes choques culturais farão com que elas se entreguem a um processo de reflexão e descoberta interiores que vai muito além daquele velho lugar-comum que se entende como “rever os seus conceitos”. E a sábia mise en scène da jovem e estreante cineasta Beatriz Seigner pinta com bastante plasticidade esses momentos de contraste muitas vezes corporal (a começar pela etnia) e mesmo gestual / táctil, entre as figuras das três jovens e os seus “contatos” indianos, ainda que os incorpore custosamente na estrutura narrativa (muita coisa sendo apresentada e acontecendo em pouco tempo de filme, o que traz certa superficialidade). Um bom exemplo pode ser retirado da cena, logo no começo, em que as protagonistas serão apresentadas a uma atriz que as ensinará a atuar no cinema local. O gesto quase instintivo de uma delas é estender a mão para o aperto, assim que vê a outra mulher devidamente paramentada de acordo com a cultura do país. Mas esta mão logo será recolhida num breve constrangimento, diante da não-correspondência da outra parte, a qual nada mais fará do que juntar as suas próprias, fazer uma leve reverência de cabeça e dizer: “namastê” (fórmula de cumprimento típica da região e que significa “curvo-me perante ti”).
Outra antítese presente na boa expressividade cinematográfica de Seigner está no momento em que as três se esforçam para puxar escadaria acima as suas malas – chamativas como qualquer bagagem de turista – na estação ferroviária de Mumbai. Neste longo processo, captado num plano geral (a câmera como se fosse uma testemunha anônima perdida no meio da multidão), vemos que as moças acabam atravancando – de um modo bem gauche (desajeitado) – o fluxo das pessoas que sobem e descem, e que não param em momento algum para ajudá-las.
Imagens assim não constituem “achados”, uma vez que não trazem coisa alguma de novo ou experimental para a linguagem dos filmes. Mas, tendo em vista a produção de pequenos e independentes filmes brasileiros dos últimos tempos, Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano representa um uso bastante saudável – até revigorante – dos recursos expressivos “audiovisuais”. Outra produção a ser vista e destacada, nesta mesma linha, é Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, dir.: Karim Ainouz e Marcelo Gomes). Se formos considerar o debute de novos diretores, Beatriz Seigner também demonstra saber razoavelmente a que veio, assim como Petrus Cariry em O Grão (2007). Esses inspirados e francos longas-metragens opõem-se a projetos excessivamente ambiciosos como o de É Proibido Fumar (2009, dir.: Anna Mulayert), em que a expressão se concentra muito no “querer-dizer” do roteiro, e pouco no poder sugestivo das imagens em si.
A consciência do ato de se fazer “música com a luz” (Abel Gance), graças à “inteligência de uma máquina” (Jean Epstein), é algo que demonstra ser inquestionável para esta jovem diretora na elaboração de quadros e cenas. Tanto é que se faz presente, no meio do filme, um breve instante que representa o ponto mais tenso daquele contraste táctil que viemos discutindo, ainda mais se colocarmos frente a frente as culturas de um país “deitado eternamente em berço esplêndido” (Brasil) e uma civilização milenar (Índia). Trata-se da filmagem que Sofia tenta fazer de uma festividade religiosa em que uma imagem da deusa Ganesha é colocada pela população em um barco e lançada ao mar. A personagem mantém a sua câmera amadora apontada com altivez para a embarcação que se afasta, enquanto chega um homem idoso e lhe pergunta por que está registrando aquilo. Ela responde que é para “guardar” aquele momento, para torná-lo “eterno”. O homem, então, retruca dizendo que aquele ritual vem acontecendo há milhares de anos; por isso, já era eterno. Este pequeno diálogo já seria significativo a respeito de uma “ética” do cinema documental: para o clássico documentarista francês Jean Rouch, o efeito que os documentários atingem não é o de descortinar a “realidade” do que acontece à frente da câmera, mas o fato verídico das relações que nascem entre a pessoa que filma e aquela que é filmada. É em função desse pensamento que Godard dirá que “todo grande filme de ficção tende ao documentário, assim como todo grande filme documentário tende à ficção”.
E a natureza das relações entre o povo indiano e o filme de Seigner transparece de modo mais contundente (e proposital) em dois momentos. O primeiro é algo que se repete ao longo da narrativa, nas várias cenas de rua em que vemos os figurantes parecerem olhar não só para o jogo representado pelas atrizes em cena, mas para o próprio aparato / bolha / célula da filmagem que se realiza ali, incrustada com inevitável visibilidade no núcleo do vaivém urbano de um país com quase um bilhão de habitantes. Mas já se disse que o cinema verité não busca mesmo a discrição, e sim o escancaramento problematizante da invasão de uma câmera no mundo (que é o caso mais evidente da cena de Ganesha). O segundo momento está nos planos curtos, inseridos no meio dos créditos finais e já explicitamente “documentais”, de simpáticos cidadãos indianos cantando para a câmera (ou tentando fazê-lo) a “Aquarela do Brasil”, nosso hino nacional não-oficial.
Tais relações parecem se pautar pela lógica da descoberta que ambos os povos fazem um do outro, de um encontro amistoso de culturas que se “conhecem”, mas nada muito a fundo – ainda. Essa lógica, bastante diplomática, parece ter sido pensada para o filme que se orgulha de ser a primeira co-produção Brasil / Índia. É claro que, para a coisa ser realmente bilateral, precisaríamos ver uma produção indiana rodada em nosso país. Mas quem sabe? De resto, a história de atrizes brasileiras tentando fazer sucesso em “Bollywood” pode simbolizar a eterna busca do cinema nacional por legitimação; desta vez, porém, ao invés de se “ir” aos EUA buscar a chave de ouro da produção industrial hollywoodiana (atributo da Globo Filmes e dos dois Tropa de Elite), cruza-se quase um mundo de distância procurando inspiração no “país que mais produz filmes no mundo”.
A cena de Ganesha, que descrevemos mais atrás, também pode ser interpretada nessa chave nacionalista – na verdade, a da histórica busca auto-afirmativa pela identidade do Brasil, assim como de sua produção cultural – no caso, o cinema: nosso país não possui o patrimônio da memória que a civilização hindu – antiquíssima – possui. Com isso, eles não precisam filmar seus costumes e tradições, para “guardar”; nós precisamos (os nossos e, inclusive, os deles). Pois nossa memória é atrofiada, eternamente embrionária (o tão problemático “berço esplêndido”), um vir-a-ser que nunca se realiza plenamente: o Brasil está fadado a ser “o país do futuro”, como muito já se disse. Há de se lembrar da proverbial falta de memória político-eleitoral do brasileiro, por exemplo.
Nossa alma aleijada necessitará sempre das tecnologias do registro, artificiais e artificializantes, que incondicionalmente deverão produzir recortes, pontos de vista, racionalizações. Apoiados irremediavelmente em papel, caneta, câmera, nós brasileiros produziremos muito mais história do que memória – em comparação, é lógico, com a potência em tradição que é a Índia. Em nosso país, o poder social adquirido pela invenção dos irmãos Lumière ganha contornos bastante especiais no que se refere às diferenças culturais entre um Ocidente que transfere a sua memória para máquinas produzidas em escala industrial e um Oriente que a mantém no lugar único para o qual ela se faz de habitante e “zeladora”: a alma. E tais questões, de fato, interessantes, parecem ser mais incidentes neste longa do que previstas e calculadas pelo roteiro / direção.
Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano é um filme de alma feminina. É o que atesta a cena em que Luna, bêbada, leva para o quarto (dividido por todas) um homem – igualmente embriagado – que todos os sinais indicam ser sua “conquista” da noite. As libidinosas e sutis trocas de olhares, sorrisos e meias-palavras entre as três revelam um conhecimento da sensibilidade e sexualidade da mulher que dificilmente seria alcançado em um filme roteirizado e dirigido por alguém do sexo masculino (à exceção, talvez, de um Pedro Almodóvar ou Ingmar Bergman). Coloquemos na ponta do lápis: este longa é protagonizado por três mulheres. Na equipe, a diretora também é responsável pelo roteiro e pela direção de fotografia (Beatriz Seigner é autora em múltiplos sentidos). A montagem está a cargo de outra garota: Renata Maria. Resultado: as principais funções criativas do filme ficam nas mãos de mulheres.
Sem pretender cair nos exageros de certos estudos culturais que rotulam demasiadamente as obras de acordo com as condições / contextos sociais, étnicos ou de gênero de seus produtores, podemos afirmar que, se o soviético Dziga Vertov foi o “homem com a câmera” (título do clássico do cinema poético-documental de 1929), Beatriz Seigner se apresenta a nós como a “mulher com a câmera”. O estilo “guerrilheiro” de Bollywood Dream demonstra bem isso: com uma câmera de vídeo nas mãos (cuja imagem não é sequer das melhores), a cineasta se aventura pelas ruas de grandes cidades de Índia para documentar a efervescência poética da vida, do mundo; do ser-no-mundo, principalmente.
A cena, decisiva, em que Ana, Luna e Sofia param em cima de uma ponte e começam a refletir sobre os seus rumos e decisões, adquire uma força poética incomparável quando tentamos enxergá-la em seu conjunto real; ou seja, para além do que o enquadramento nos mostra (as três personagens) e acrescentando à cena o fora-de-campo imaginário, veríamos quatro mulheres decidindo seus destinos por cima de um rio: a diretora-cinegrafista está quase abraçada a elas, como uma quarta amiga, invisível, inominada, mas onipresente. O extremo close up por cima do ombro de uma das atrizes manifesta o carinho e proximidade com que a cineasta trata e acompanha suas personagens. É uma cena muito bela e cheia de significado.
É assim que Bollywood Dream vai destilando epifanias, a conta-gotas. A sensibilidade deste filme pode oferecer a ele um lugar perto das melhores produções de cineastas mulheres do cinema brasileiro da última década, dentre as quais podem-se citar: Chega de Saudade (2007), de Laís Bodansky; Mutum (2007), de Sandra Kogut; e Vida de Menina (2003), de Helena Solberg. Agora, não é que o debute de Seigner seja ao todo desprovido de defeitos. Caso é de se apontar que, em alguns momentos, o estilo neorrealista que a diretora adota para percorrer as ruas indianas parece um tanto quanto superficial – uma espécie de turismo antropológico. Isso revela que o equilíbrio entre a narrativa do filme e o discurso de sua autora poderia ser melhor trabalhado; tanto para, dessa maneira, melhor acreditarmos na verdade humana das personagens e na profundidade de suas experiências – as quais aparecem um tanto quanto sumárias em alguns trechos, como nas ligações telefônicas que fazem para a família no Brasil.
O Sonho Bollywoodiano é um filme que sabe descrever e argumentar; mas cambaleia um pouco no narrar. De resto, algumas cenas fazem o espectador sentir que, por se tratar da primeira produção colaborativa entre Brasil e Índia, a cineasta quis fazer um elogio engrandecedor e “oficioso” dos dois países; assim como estimular, com indisfarçável entusiasmo, a amizade diplomática entre os dois povos. A expressão de tais propósitos bem que poderia ficar restrita a uma frase de agradecimento nos créditos finais (que, de fato apareceu). A sincera paixão pela cultura e pela mística hindus também poderia ser um pouco mais modulada, para evitar o risco de se parecer com coisa de “auto-ajuda” (de novo, a superficialidade). Mas tais excessos e inconsistências não chegam a comprometer (muito) o filme, ainda mais sendo este o primeiro longa de ficção de sua diretora. Aguardamos com otimismo o segundo passo de sua carreira.
André Renato* é professor no Ensino Médio (língua portuguesa, literatura e redação), fotógrafo e cinegrafista. Colabora com a revista dEsEnrEdoS e mantém o blog Sombras Elétricas (www.sombras-eletricas.blogspot.com), nos quais escreve sobre cinema.
Parabéns André. Muito Bom!
Por favor, gostaria de saber quando o filme “O Sonho Bollywoodiano (Beatriz Seigner, 2010) estará em cartaz em Brasília!
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