Por Juliana Panini Silveira*
Santiago, documentário de João Moreira Salles, é o resultado da montagem feita com imagens captadas 15 anos antes, quando Salles reencontra o antigo mordomo da família, Santiago, e se dispõe a fazer um filme sobre essa figura do seu passado.
Considerações sobre o material bruto de 1992 não cabem aqui discutir. Mas o resultado apresentado mais de uma década depois se apresenta como a conscientização de um erro. Salles admite sua falha: ao tentar retratar as singularidades de Santiago – uma pessoa que marcou a vida do diretor, principalmente durante seus tempos de infância na casa da Gávea – conseguiu, na verdade, retratar sua distância do antigo mordomo – ao que atribui suas intrínsecas e respectivas posições de ex-patrão e ex-criado. Santiago assim se apresenta: com seu personagem-objeto sempre ao fundo sendo constantemente manipulado no que dizer, como se posicionar. Salles explicita sua abordagem utilizando o material que seria cortado na edição – os “erros” de Santiago durante as manipulações de fala e gestos – usa re-takes para causar desconforto e estranheza no espectador e atesta o constructo de seu material com a narração off – feita pelo irmão, Fernando Moreira Salles – que questiona a veracidade dos fatos que as imagens trazem. Ao se questionar, Santiago discute as ambigüidades do documentário, as representações dentro desse gênero.
Assim, Santiago pouco trata de Santiago, o ex-mordomo da família Salles. O documentário é um retrato de um erro, da conscientização de uma oportunidade perdida: não há mais como Salles reencontrar Santiago, que falecera logo depois das filmagens em 1992. Quando teve a oportunidade, encarou-a com esteticismo, direcionamentos e enquadramentos que quase perdiam Santiago ao fundo e não lhe deram a chance de se expressar e de ser o personagem que melhor lhe cabia – e o termo personagem cabe muito bem a Santiago – na frente da câmera. A Salles, então, só lhe restava falar sobre isso. O documentário parece ser um misto de lamento e orgulho de um erro que, admitido e explicitado, seria também um pouco redimido e transfigurado num pedido de perdão e uma homenagem ao homem presente naquelas imagens.
O filme parece, sim, ser sobre um erro, mas um erro de intenção. Nem em 1992, nem em 2007, o mordomo fora o verdadeiro alvo da câmera do diretor. Santiago nunca foi um filme sobre Santiago, e nem poderia ser. João Moreira Salles não procurava uma figura de seu passado, mas uma figura-chave que lhe abrisse os portões para suas lembranças, um norteador.
Enquanto filmava o mordomo, Salles perdeu a mãe. Pouco depois das gravações, o próprio Santiago viria a falecer e, depois dele, o pai de João. A morte é, sem dúvida, o mais forte dos sinais de perda, de esquecimento, de vazio. Salles, no seu desejo de encontro com tudo que acontecera na casa da Gávea, busca em Santiago – este bastante apegado ao passado com seu hobby de escrever resumos biográficos sobre a aristocracia de vários lugares e tempos históricos – uma ponte, um caminho.
É na procura, através de Santiago, de suas lembranças que o diretor se vê construindo-as. Salles questiona se aqueles móveis estariam mesmo ali ou qual a probabilidade daquela folha cair sobre a piscina justamente quando a câmera se encontrava posicionada e ligada… Santiago, mais do que criticar a representação no documentário, alega, muito timidamente, a necessidade de se representar aquilo que o tempo não permite mais, o contato em estado puro.
Lembranças seriam construções artificiais de um material deslocado no tempo. É preciso um resgate no qual se arrisca perder mais do que já se encontra perdido. O diretor sente ter desperdiçado a última oportunidade de estar com Santiago enquanto buscava algo para além do antigo mordomo. Confrontar-se com lembranças parece ser antes um confronto com a fabricação, a reelaboração do que já passou, a necessidade de auxílio para isso. E, por fim, o estranhamento desse processo, a dor de não atingir aquilo que se buscava, o sobressalto ao se notar que a todo o momento algo fica pra trás.
*Juliana Panini Silveira é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).