Crônica de um Industrial (Luiz Rosemberg Filho, 1978)

Rubens Machado Jr*

Melancolia e reflexividade: Crônica de um industrial [i].

Cartaz do filme " Crônicas de um Industrial"

Imagine-se um filme com a forma inaudita de uma grande enxaqueca. Coloque-se, no entanto, sob o impasse trágico de um industrial que se vê paralisado e impotente diante de seus valores mais caros, suas utopias de progressismo radical. Esta enxaqueca tem origem no problema social do país, a construção da miséria no seu processo de modernização, agudamente documentarizada no início do filme com imagens patéticas do trabalho subterrâneo de operários do metrô carioca. A partir daí, cada seqüência se distanciaria ‑ amnésica desse subterrâneo fundante, mudo, um olvido-alicerce, e imprimiria luzes inautênticas de uma burguesia ilustrada ‑, cada imagem pareceria compenetrada em uma mesma letargia que empresta unidade ao filme, como se sua pesada inércia pudesse estar por ele todo dispersa em dor latente, sintomática de origens insondáveis.

Ana Maria Miranda

A vocação do industrial Gimenez (Renato Coutinho), inviabilizada em sua dimensão libertária, vai se transformando em alegoria dolorosa na figura de sua mulher morta, Teresa (Katia Grumberg), em uma comunhão de perspectivas que se perderam. Simulacro moreno, a segunda mulher, Ana (Ana Maria Miranda), em vão contrapõe uma reconciliação entre os sentidos acalentados no passado e o atual horizonte concreto de possibilidades. De Teresa a Ana, de Grumberg a Miranda ‑ do equilíbrio justo de um rosto algo transcendental à voracidade, olhos-e-boca, do outro rosto ‑, máscaras metafóricas, destinos físicos inamovíveis. Matéria quase expressionista, mas tensionada em diapasão de reflexividade. No trânsito entre os dois amores encontra-se a impossibilidade trágica de transformar o semblante cosmopolita de ideais revolucionários universais em um semblante caboclo, nativo, de Ação. Espírito que não toma carne. Anjos emudecidos pelo terror do sangue.

Som que retrocede em tristeza. Coagulação que se empedra, dolorida.Rosemberg reverbera, com o lamento da música de Bach, o jogo de amores frustrados pelo bloqueio dramático do Masculino.  Configuração de impasse existencial em amores, que no país se estigmatizara politicamente no Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, e já vinha anunciado como premonição na amargura pequeno burguesa de São Paulo Sociedade Anônima (1964), de Luís Sérgio Person. O cineasta carioca parece pensar num Brasil que para o cinéfilo europeu soaria antonioniesco; porém bergmanizado  godardianamente.

No estertor de Gimenez arrasta-se em agonia o projeto acinzentado de um país que foi apaixonadamente sonhado. Crônica de um industrial ressoa como uma grande Negação. Negação que ultrapassa a lógica imediatista empenhada em forjar a imagem do país numa indústria de enganos: Para além da projeção de um país ideológico, Rosemberg alegoriza em negativo também aquilo que o cinema brasileiro naqueles anos vinha, debalde, tentando construir em euforia sem sombras, afirmando-se numa positividade idealizada, risonha às leis de mercado.

*Rubens Machado Jr. é professor do CTR/ECA-USP.


[i] Artigo publicado originalmente em francês, tradução de Eduardo Reis : “Mélancolie et réflexivité : ‘Chronique d’un industriel’”, L’Armateur : revue critique de cinéma bimestriel, n°3, Paris : Association Ploum Ploum Tralala, septembre-octobre 1992, p. 47.

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