Dinner for one (Abbas Kiarostami, 1940)

Veredas que se bifurcam: o cinema de Kiarostami

(apontamentos para uma leitura de “Dinner for One”)

Em Abbas Kiarostami, umas vezes com mais, outras vezes com menos transparência, repete-se uma história bifurcada: na superfície, uma narrativa banal, cotidiana, em geral uma busca; mais profundamente, um questionamento sobre os meios de representação dessa história. Isto faz com que o prazer no cinema kiarostamiano, um metacinema na verdade, seja mais de natureza intelectual: Kiarostami, a rigor, não mostra imagens – não como delírio sinestésico aos olhos, não como cópia fiel do mundo, não como naco (vivo e natural) arrancado do cotidiano. A todo momento, ele sussurra ao nosso ouvido: “esta imagem foi produzida, ela não é natural, e eu sou um prestidigitador”. O que está em jogo é testar os limites da representação cinematográfica, através de um cinema minimalista. Reduzir recursos e meios (elidir roteiro, música, o que for possível), estabelecer “roteiros” de estrutura rígida e recorrente (como em “Dez”), recusar o didatismo do jogo campo-contracampo; limitar, enfim, de várias formas, o poder de manipulação do diretor e obrigá-lo, por conta disso, a pesar mais suas decisões – “mexa pouco e mexa certo”. “Close-up”, “Dez”, “Cinco”, “O vento nos levará” são exemplos desse empenho. Representações da crise da representação que, apesar disso , não esquecem de tentar cooptar o expectador “comum”, construindo a narrativa superficial de modo pontilhista, inacabado, sem necessariamente recorrer a truques de suspense barato. Um humanismo contido, anti-hollywoodiano, que convive no mesmo espaço do experimental, como em Godard e Rossellini.

Creio que sem essas premissas fica difícil entender “Dinner for one”:

Trata-se de um curta de pouco mais de 50 segundos, feito sob encomenda, em 1995, a pedido da “Lumiére et Cie”, em homenagem ao centenário da sétima arte. Exigia-se dos cineastas convidados que o filme deveria ser feito em condições aproximadas às que presidiram as filmagens dos irmãos Lumière: em preto e branco, sem extrapolar 52 segundos nem ultrapassar três tomadas. Para a auto-exigência de Kiarostami, tais imposições não pareceram tão artificiais e instransponíveis, como deve ter sido para outros diretores, pelo fato de já ser praxe do modus operandi do iraniano a elaboração prévia de leis com o fim de dar rigor estrutural às películas.

O curta-metragem inicia-se ao som de “Carmen”, de Bizet, intercruzando-se com um toque de telefone. Esta mistura do sublime com o prosaico antecipa o conflito dos dois personagens que jamais veremos (de um, vê-se a mão). Vemos uma frigideira e a mão que joga nela uma porção de manteiga, que, ao derreter, ganha uma forma circular, lembrando, como notou Ivonete Midianeira Pinto em sua tese sobre Kiarostami, uma película sendo queimada. Claro está que esta leitura só poderia ser feita por um cinéfilo, pois, como afirmamos em linhas anteriores, o exercício metaficcional em Kiarostami nem sempre é explícito. A voz ao telefone, de uma mulher, pede que o outro atenda. Sabemos que ele não atenderá por termos ouvido um barulho da secretária eletrônica, como nos lembra, também, Ivonete Medianeira. Indiferente ao apelo da mulher, a mão põe um ovo na frigideira; logo em seguida, põe outro ovo. É significativo observar que um mantém a gema intacta, enquanto a gema do outro se esparrama na frigideira. Assim como o plano sonoro da abertura, ao juntar ópera e o som de telefone sugere antecipadamente o desencontro do casal, aqui (quando já sabemos desse desencontro) se reforça esta realidade pelo contraste das gemas. A câmera persiste fixa sobre a frigideira, contemplando o frigir dos ovos. Permanecem o apelo feminino ao telefone e a ópera. Depois de um tempo, a mão retira a frigideira, e vemos a boca do fogão. Encerra-se assim o curta, e em menos de um minuto viu-se uma narrativa de um conflito (amoroso?) que encontra ressonância em todos os níveis do discurso fílmico (imagem, música e palavra). A escolha de “Carmen” revela, ainda, outro dado, bastante irônico: se Carmen, a cigana sedutora, exercia um poder magnético sobre os homens, a mulher que fala ao telefone é incapaz de seduzir o companheiro do outro lado da linha. Outro detalhe importante é o fato de não vermos os personagem; é por causa disso que a banda sonora passa a ter um papel preponderante, como também é por esse motivo que tendemos a tomar as imagens que vemos, de um simples frigir de ovos, como simbólicas.

Para além dessa narrativa, intriga o espectador do curta a sobreposição de imagens de objetos circulares: a boca do fogão, redonda; a frigideira sobre a boca do fogão, redonda; a manteiga que derrete na frigideira forma uma figura redonda; e, por fim, os ovos estrelados, redondos (não, claro, rigorosamente falando). Esta pletora de círculos que se sobrepõe é uma metáfora precisa da crise ontológica do real que o cinema, tal como Kiarostami o pratica, desencadeia: a realidade é esta sobreposição de camadas sem uma estruturalidade, sem um centro emanador. Neste ponto, o cinema de Kiarostami se aproxima da desconstrução de Derrida. A certeza de uma transparência na representação simbólica do real pelo cinema cai, assim, em ruínas. O cinema torna-se uma fábrica de simulacros – embora não exatamente dentro da visão apocalíptica de Baudrillard, para quem o real já foi “assassinado” pelo simulacro e nada mais há que se fazer.

A imagem no cinema de Kiarostami é problematizadora, pondo em discussão o estatuto da representação, mas jamais é niilista. Em vez de aniquilar o mundo pela anunciação de que vivemos à sombra do simulacro, como faz Baudrillard, Kiarostami leva a sério a tarefa artística de não simplificar o complexo, de não trair a realidade pela redução de suas filigranas à caricatura.

Foto: Abbas Kiarotami. Série "Rain"

A técnica trompe l’oeil de Kairostami – não apenas em “Dinner for one” – dá-nos uma banalidade de fachada pedindo que duvidemos do que estamos vendo. Temos que enxergar além da imagem não apenas porque elas são veículos simbólicos, mas também porque o essencial ocorre no fora-de-campo, não foi filmado. Kiarostami inverte o bordão: é ver para não crer. Este ilusionismo que perpassa o estilo kiarostamiano de filmar exige que se perceba a bifurcação de que se falou no início do texto. Do contrário, Kiarostami será apenas – mais um! – neo-realista.

Wanderson Lima é autor, junto com Alfredo Werney, de “Reencantamento do mundo: notas sobre cinema” (Ed. Amálgama, Teresina, 2008) e doutorando em Literatura Comparada pela UFRN. Parte de sua produção está disponível no blog http://wandersonlimatorres.blogspot.com/.

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