Perdas e Danos (Louis Malle, 1992)

“E não é a dor que me entristece, é não ter uma saída, nem medida na paixão.”

Por Carine Lorensi*

Perdas e danos, em inglês Damage, tem direção de Louis Malle, é baseado na história de Josephine Hart, e conta com Jeremy Irons e Juliette Binoche no elenco.

Dos diversos meios de atrações físicas e erotismos que podem se agregar uma narrativa fílmica, Malle nos apresenta esse filme de forma tão crua que chega a nos aproximar do sentimento de repúdio com respeito aos personagens principais, pois a partir das relações que ocorrem entre eles é que começamos a nos posicionar em frente ao que presenciamos no filme.

Perdas e Danos inicia de forma pragmática ao mostrar Stephen (Jeremy Irons) em seu local de trabalho e a sua relação com os demais colegas. Logo mais, temos Stephen em casa com sua família e presenciamos um diálogo entre ele e sua esposa Ingrid (Miranda Richardson), momento em que esta lhe dá a notícia de que o filho Martyn (Rupert Graves) tem uma nova namorada, o que não a agrada, já ele por sua vez, não dá muita importância ao fato.

Com esse diálogo inicial entre marido e esposa verifica-se o senso racional de Stephen e o senso intuitivo materno de Ingrid. Mais adiante, porém, a narrativa começa a submeter os personagens às imponências dos próprios atos e tem-se, de certa forma, uma inversão de papéis entre Stephen e Ingrid, quando o senso racional de Stephen começa a entrar em idílio e o senso intuitivo de Ingrid começa a se embasar no que é racional. E essa intenção da narrativa em mostrar até que ponto a razão persiste sobre o que é efêmero fica claro quando no final do filme Ingrid mostra os seios para Stephen e pergunta se somente esses não lhe bastavam.

As intuições maternas de Ingrid são relevantes dentro da narrativa e se fortalecem quando Martyn leva Anna (Juliette Binoche) para conhecer seus pais e a mãe já não simpatiza com a futura nora. Além disso, o filme nos apresenta aspectos que favorecem essa intenção do diretor em enfatizar um duelo que irá se fortalecer entre as duas mulheres. O primeiro resquício desse duelo acontece nesse primeiro encontro na casa dos pais de Martyn, quando os quatro saem para o pátio: na frente, Ingrid abraçada ao filho, atrás vem Anna e logo depois surge Stephen. É partir dessa cena que começamos a perceber os pares de afinidades que se formam no filme. De um lado está Ingrid, uma mãe que ama o filho acima de tudo e que tem intuições e pressentimentos de que Anna não é a pessoa certa para ele, do outro lado está Stephen que se vê seduzido por Anna  com  quem acaba se envolvendo em uma relação de infidelidade.

O filme é encaminhado por Malle de forma que o espectador conheça cada personagem que compõe a trama, pois cada um deles nos é apresentado em viés de sua natureza, das afinidades e das intenções que eles apresentam no desenrolar do filme fazendo com que seja possível estabelecer paralelos e pontos de contatos entre os mesmos. O diretor deixa evidente que as afinidades humanas são importantes e somatórias, ao mesmo tempo também mostra que certas afinidades podem ser tão destrutivas quanto irreversíveis.

Martyn apresenta o pai para Anna e fica entre os futuros amantes.

Já em primeira instância, percebemos que Anna é o tipo de mulher que atrai pelo seu jeito cauteloso, meigo e olhar melancólico, o que seduz Stephen no primeiro encontro entre os dois. A falta de brilho na personagem de Juliete Binoche faz com que a mesma se torne atraente pelo mistério do semblante e também do sorriso, inclusive as vestimentas com que Anna se apresenta no filme são propositais para uma personagem incomum, que está sempre de roupas longas e escuras e que se apresenta de forma tão nostálgica que chegamos a pensar que ela é o tipo de mulher que surge na vida das pessoas com a intenção de seduzir, desfazer a harmonia e sair de cena. Diferentemente da personagem de Miranda Richardson que se apresenta de forma alegre, com roupas claras e sem mistério.

Além disso, o fato das duas personagens não evoluírem dentro da trama, ou seja, não mudarem suas características até porque não é a intenção da narrativa modificar essas duas mulheres, verifica-se que tanto Anna quanto Ingrid se mostram como personagens planas. Stephen, por sua vez, cabe como um personagem redondo, pois ao se deixar seduzir por Anna, desencadeia o seu desequilíbrio emocional que pode ser evidenciado no momento em que ele, passível de uma paixão, ameaça romper o seu casamento com Ingrid para viver definitivamente com Anna, mas a mesma não aceita, e através dessa negação, deduz que ela nutria por ele apenas desejos sexuais. Quando a atenção do espectador se volta para Martyn, tem-se a ideia de que ele não se adequava à Anna, pois ele é um rapaz apaixonado e dedicado enquanto ela é uma mulher sedutora e sem amor, além do fato de que Martyn é tão ingênuo e sem graça que se não fosse o fim trágico, o espectador agradeceria por Anna ter o traído para que ele a abandonasse e se casasse com alguém melhor que ela.

Com isso, deduz-se que Louis Malle preferiu uma interpretação sem ânimo de Rupert Graves, justamente para que possamos perceber a falta de sintonia entre o seu personagem e o de Juliette Binoche e o desequilíbrio no jogo de disputa entre pai e filho. Situação de disputa que já que já mostra seu possível vencedor quando no filme há um no momento em que pai e filho decidem jogar bilhar e Stephen vence Martyn no cara ou coroa. Pelo temperamento dócil de Martyn, supõe-se que ele provavelmente ficaria com Anna sendo um marido fiel, e Stephen estaria com ela como um amante ideal.

A todo o momento, o filme nos mostra evidências de que o desfecho da trama se embasa em simbologias que vão se apresentando aos poucos a medida em que a narrativa evolui. Quando Martyn anuncia para a família que havia pedido Anna em casamento e ela aceitou, nos é mostrado o rosto insatisfeito de Ingrid e o semblante surpreendido de Stephen. No momento em que os pais vão cumprimentar Martyn pelo casamento que se anuncia, Stephen, no descuido, derrama uma taça de vinho tinto sobre a mesa. “A sua importância no culto aos mortos vem da comparação simbólica com o sangue.” (LURKER, pg.754, 2003).

Outro momento que nos induz a uma tragédia é durante um almoço, em que a mãe de Anna está presente e esta diz que Martyn é muito parecido com seu filho que havia falecido anos atrás. Essa revelação se torna relevante quando, mais adiante, Anna conta para Stephen que seu irmão tinha por ela uma paixão incestuosa e que cometeu suicídio por não poder ficar com ela. Cria-se nesse momento um paralelo, pois ao comparar o noivo com o irmão falecido, supõe-se que Martyn morrerá por uma aflição ou por um desgosto, assim como ocorreu com o irmão.

As cenas sexuais entre Martyn e Anna não são mostradas, primeiro por não fazer parte do drama, ou seja, acontecia sem a necessidade de aparecer no filme, e também porque faz com que o espectador entenda que o noivo era ideal para um relacionamento afetivo, mas ao se tratar de sexo, ele não era o homem que a satisfazia. Já as cenas sexuais entre Stephen e Anna foram elaboradas para que ficasse claro que era apenas atração física, desejo sexual e não um relacionamento amoroso, pois vemos que não há beijos ou carinho entre os amantes, portanto não se trata de uma relação romântica como acontece com ela e Martyn, pelo contrário, eles pouco se falavam e o interesse mútuo partiu de olhares, porém depois de muitos encontros Stephen se apaixona por Anna, se dispersa do senso racional e perde sua identidade.

O exemplar pai de família se desespera de ciúmes ao flagrar Anna a sós com um ex-namorado na casa dela. Stephen apresenta um desequilíbrio emocional como se ele fosse o namorado dela e no dia seguinte, em um encontro, ele revela para Anna que pretende se divorciar de Ingrid para ficar com ela, mas Anna não aceita alegando que a relação escondida que eles vivem é mais propícia, pois evitaria o sofrimento de Martyn e que nessa relação de adultério é mais plausível Stephen continuar casado já que pode ter as duas mulheres. Nesse momento percebemos a diferença das relações entre eles  Stephen estava apaixonado por Anna, mas ela não tinha a intenção de viver com ele, embora ela pudesse nutrir algum sentimento. Essa intenção dela se concretiza quando, em um momento do filme, no qual se encontra a sós com Stephen, ela revela que não se casaria com Martyn se não fosse para ficar com o sogro, ou seja, ela preferia manter uma relação de adultério em segredo com Stephen a ter que ser protagonista de um alarde em família no momento em que seu relacionamento com ele viesse a público.

Quando a narrativa se encaminha para o final, Anna e Stephen se mostram em uma espécie de despedida, nos dando a entender que chegava a hora de uma descoberta de Martyn, que o filme já havia apresentado ao espectador o necessário para que agora se esperasse o desfecho da trama. Stephen recebe uma correspondência de Anna em seu trabalho, onde havia a chave do apartamento dela e no dia seguinte Anna sai de seu trabalho para esperá-lo.  O que ela não poderia imaginar é que pouco depois de sair, Martyn fosse ligar para o seu trabalho e ser informado de que ela está a caminho do novo apartamento. Stephen está esperando Anna no apartamento e ela desce do taxi em frente a seu prédio carregando um ramo de flores vermelhas, “ramos de flores já eram um símbolo de vida no Egito antigo e, por isso, desempenhavam papel importante no culto aos mortos.” (LURKER, pg.273, 2003).

Nesse momento, fica claro que acontecerá um flagrante e o ramo de flores vermelhas simboliza a morte, mas é aos poucos que o desfecho vai acontecendo. Quando Martyn abre a porta do apartamento de Anna, o espectador presencia junto com o personagem um flagrante cruel e repugnante, principalmente quando a câmera desvia da cena sexual entre os amantes e foca no rosto do rapaz que em silêncio observa a cena e logo descobre que é seu pai o amante de Anna. O semblante de Martyn não muda ao ver que era seu pai na cama com sua noiva, como se nesse momento Martyn se crucificasse por ter sido tão ingênuo e nunca ter desconfiado de nada. Ainda em silêncio e com os olhos nos amantes, o rapaz se afasta andando de costas e, ao se descuidar, despenca da sacada interna do prédio e acaba por encontrar o chão como um fantoche abandonado do alto. Ao ver o filho despencar, Stephen sai nu em desespero e desce escada abaixo para socorrê-lo, porém ao abraçá-lo percebe que este já estava sem vida.

A partir do momento em que Stephen e Anna se envolvem e colocam Martyn como o traído, o filme já anuncia, mesmo que aos poucos, que ocorrerá uma descoberta, pois é elaborado para esse fim. Vemos que Stephen Fleming, que é um pai de família bem sucedido e de senso racional aguçado, viu sua vida ruir ao se deixar dominar em uma paixão por Anna, a então noiva de seu filho Martyn. Presenciamos neste filme um triângulo amoroso cruel e desmedido, onde prevalece o desejo, a paixão e a luxúria. Sentimentos de egoísmo que colocam em prova as relações familiares e que concomitantemente coloca membros dessa mesma família em um jogo de sedução, infidelidade que levam a um fim trágico.

Martyn flagra Anna na cama com seu pai. A câmera foca o olhar triste e surpreso do rapaz.

*Carine Lorensi é graduanda de Letras Bacharelado na Universidade Federal de Santa Maria.

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