Por Gabriel Dominato*
Godard, então Jean-Luc Godard, ainda não era Jean-Luc Cinema Godard ou JLG, como seria conhecido mais tarde. E o cinema novo ainda não havia se constituído. Havia os sopros do rebento de Truffaut e seu deslumbre causado no Festival de Cannes do ano anterior, mas, como movimento, a Nouvelle Vague ainda estava começando quando A Bout de Soufflé (1960) foi lançado. Talvez mais que Os Incompreendidos (1959), Acossado (1960) seja o verdadeiro monumento inaugural da nova onda francesa, pois muito embora Truffaut rompa naquele vários dos dogmas até então inquebrantáveis do cinema clássico francês, que eram vistos como cânones inalteráveis, é neste último que Godard por fim extrapola todas as possibilidades de renovação do cinema. Tudo que representa a Nouvelle Vague está ali: a câmera na mão, os jump-cuts, a narrativa fragmentada, as atuações que remetem improvisos teatrais, o texto como signo ainda maior que o diálogo, a força da literatura na tela, citações e convergência entre as artes e, por fim, as autorreferências e referências, o que sempre estaria presente na grande parte dos filmes, de forma direta como ocorre, por exemplo, em Uma Mulher é uma mulher (Jean-Luc Godard, 1961) em que um personagem se refere a Jules e Jim (Françoise Truffaut, 1962) que passará na televisão naquele dia. Outras vezes, de forma indireta a exemplo de Acossado, onde uma moça pergunta a Michel, o protagonista, “você suporta a juventude?”, e ela carrega um exemplar da Cahier du Cinema, a célebre revistra francesa, encabeçada por André Bazin, que esculpiu a teoria do cinema autoral, e da qual tanto Godard como Truffaut foram redatores.
Godard dizia que para se fazer um filme tudo que era preciso era uma mulher e uma arma, mas é menos ainda, é necessário apenas uma mulher. Temos uma de plano de fundo, mas é na relação de Michel (Jean-Paul Belmondo) com a moça americana Patricia (Jean Seaberg) que se foca o fio narrativo, não é preciso muito mais que o romance entre ambos, e em vários outros exemplos deste cinema o amor, a mulher, foi o tema, como em Antoine e Collete (François Truffau, 1963) e …E Deus Criou a Mulher (Roger Vadim, 1956). No filme, temos um pouco do que sumariza o fim dos anos 50, como revolução cultural, movimentos políticos, o movimento estudantil (aqui representado pela garota com um exemplar do Cahier du Cinema), e o americanismo, que de certa forma é característico dos autores da Nouvelle Vague, uma vez que estes aprenderam seu ofício vendo os filmes policiais americanos. De certo ponto de vista, pode-se dizer que a Nouvelle Vague é uma subversão do cinema noir. A própria personagem de Jean Seberg é uma americana em intercâmbio em Paris que vende o New York Herald Tribune. Em Os Sonhadores (2003), Bertolucci faz referência a essa célebre cena, na qual a personagem de Eva Green pergunta a Matthew (Michael Pitt) se ele sabe qual fora sua primeira frase. Ao dizer que não, ela responde que fora o nome do jornal acima citado. Godard também dissera que Nicholas Ray é o cinema, sendo este considerado uma espécie de mito entre os diretores deste movimento. Em uma cena em Pierrotle Fou (O Demônio das Onze Horas), o personagem de Jean-Paul Belmondo diz “é bom pra ele, é educação”, se referindo ao grande clássico de Nicholas Ray, Johnny Guitar (1954), estrelado por Joan Crowford e Sterlin Heyden, num faroeste que é o que seria um faroeste se ele fosse dirigido por um diretor da nova onda, pode-se esquecer o western clássico em seus moldes tradicionais. Nicholas Ray aponta para outro sentido, onde o bang-bang é de pouca importância. O mesmo ocorre com seu cinema noir, como em Amarga Esperança (1948), onde o crime, que em geral neste cinema é fundamental, passa a ser apenas plano de fundo para a construção de seus personagens e seu desenvolvimento.
Foi assistindo a estes filmes que diretores como Godard aprenderam a fazer seu cinema, e é a este cinema que são devotos. Sem eles provavelmente a Nouvelle Vague nunca teria existido ou ao menos não teria ocorrido da forma como ocorreu. Foi a educação cinematográfica que Godard e outros receberam desses diretores americanos que gerou boa parte do conceito do que seria a nova onda francesa.
A trama: Belmondo, terno, gravata, Seberg, calça e camisa. Um crime. Um amor. Uma traição. Está feito este Acossado. Nada mais acontece e nada mais importa. Michel e Patricia. É, no entanto, na relação de ambos que tudo acontece, assim como o admirado cinema de Nicholas Ray, na ação nada de importante ocorre. Tudo que interessa para Godard, e não apenas neste seu primeiro filme, mas também no que viria depois, está no que não acontece, ou melhor, no que acontece, mas não faz a trama seguir, são os momentos de digressões, monólogos internos e diálogos. Os únicos lugares onde está a ação de Godard, que embora tão acusado de cerebral, apresenta um lirismo urbano dos mais belos, são nas palavras; a cena final onde Belmondo corre para a morte – e não se assuste com a informação adiantada, todos os protagonistas de Godard morrem no final – com um travelling que o segue pelas costas, o contraste sempre presente do homem e da cidade, que embora contrastem, no cinema em geral da nova onda não se opõem. Quando o “fin” aparece na tela, sabe-se que então fora presenciado cinema. Não existe realismo, tudo tem quase um pé de falsidade. Como Godard apontava, “o cinema é a fraude mais bela do mundo”. E realmente é. Ao terminar o filme sabe-se que se contemplou uma das farsas mais belas do mundo, e neste caso em particular, do cinema. Acossado figura, a meu ver, como o grande monumento da Nouvelle Vague e peça basilar da filmografia moderna: deu todas as ferramentas para uma completa renovação do cinema, que embora breve, realmente aconteceu e mudou tudo. Ao contemplar a cena contemporânea do cinema mundial, e escrever sobre Acossado, cinquenta anos depois, me faz pensar, seriamente, de que talvez a Nouvelle Vague tenha sido curta demais, ou então que talvez precisemos de outra.
*Gabriel Dominato é graduando em Direito no Centro Universitário de Maringá e é redator do blog Avant, Cinema!