Por Fabiana Ghiringhello*
O documentário sobre o cantor Raul Seixas, do diretor Walter Carvalho, não só transformou o mito do rock nacional em filme, como também exibiu, mais uma vez, o domínio deste cineasta na arte cinematográfica. Com uma vasta filmografia, Carvalho assina a fotografia de mais de 50 produções nacionais, entre elas Lavoura Arcaica, Central do Brasil, Carandiru e Terra Estrangeira. A estréia como diretor veio com Janela da Alma, em 2002, e desde então, não parou mais.
Para o documentário Raul: o início, o fim e o meio, foram realizados dois anos de pesquisa sobre a vida e a obra do artista. De acordo com o próprio Walter, o cantor foi inventado no longa: “o meu filme é um filme de um Raul inventado, que eu descobri a partir da memória… a memória dos amigos, dos produtores, dos parceiros, dos casamentos, das filhas, enfim das pessoas que viveram e conviveram aquela época. E foi através da memória dessas pessoas, e toda memória é inventada, que eu fui montando um quebra cabeça de ligações, conexões e trajetórias.” (Roda Viva, TV Cultura 16/04/2012). A sua afirmação reflete claramente a importância das entrevistas para montar e contar a historia do Raul. Convidado a dirigir o longa, Walter as usou como a sua base para desenvolver toda a narrativa.
O documentário começa com imagens do filme Easy Rider (Dennis Hopper,1969), marco do movimento da contra cultura nos Estados Unidos, junto com o livro de Kerouac, On the Road. Entre clipes do filme, são exibidas imagens de um sósia de Raul guiando uma moto. Mas antes se ouve a voz do próprio cantor em uma tela preta, que de modo subjetivo ao telespectaror, seria uma voz divina, onipresente, narrando um momento cotidiano e banal: “O Raul agora está comendo um peixinho, grava aí o momento que estou comendo um peixinho…”. A escolha das cenas iniciais evidencia a contestação, a provocação e a irreverência, eixos do movimento contra cultura, como também do próprio Raul em sua carreira. Um exemplo vem nas cenas seguintes. O enfoque retorna para o personagem, como individuo, e mostra a cena do show do Raul durante o Rock in Rio de 1973. Nela, ele canta seu primeiro sucesso Let me sing, vencedor do segundo prêmio no FIC (Festival Internacional da Canção) em 1972, enquanto pinta o corpo. A música invade todo o espaço de cena, tornando-se protagonista desta. Sao imagens do show exibidas em continuidade, com o audio original, limpo e em volume elevado. Como expectador estamos diante de imagens da musica que envolvem e formam uma atmosfera. Como resultado se percebe que parte do ato de contar a história do cantor virá a ser feito dos ritmos e da suas composições. Considerando que as letras e melodias do Raul materializaram os desejos e os discursos dos jovens quando questionam e contestam o sistema social vigente. A escolha de Carvalho, mesmo sendo óbvia, o documentário e sobre um cantor, foi bem sucedida. Ele manteve uma harmonia entre música e os testemunhos sobre Raul. Fazem parte do longa 40 músicas do cantor.
A partir deste primeiro grande hit, o documentário segue uma linha cronológica. Entrevistas e depoimentos começam das recordações da infância e juventude e seguem a fase adulta até a morte do cantor. Os entrevistados entram em cena e contam sobre suas amizades e suas relações com Raul. Para manter o tom de documentário e de veracidade, o enquadramento das entrevistas não segue um padrão ou um posicionamento único. Ora os entrevistados estão de pé, ora sentados, no canto do vídeo ou ao centro. Os diferentes quadros respeitam mais as personalidades dos entrevistados do que a obra e os devaneios de protagonista. Um claro exemplo é o depoimento do escritor Paulo Coelho na sala de jantar de sua casa em Genebra. Ao fundo a parede branca e na mesa poucos objetos dando um ar de sofisticação e seriedade a um dos mais vendidos escritores da atualidade Enquanto a entrevista com Cláudio Roberto, o segundo grande parceiro de Raul, é feita em uma casa de chácara, atualmente abandonada, com Cláudio sentado em uma rede, as vezes se balançando, contando os momentos com o parceiro e amigo. O plano nas imagens ora médio, ora americano provocam uma sensação de descontração, um desprendimento do formal, o que evidencia o como foi a relaçao do Raul com Roberto. Outro quadro bastante peculiar é o do cantor e compositor Caetano Veloso. Em uma prateleira ao fundo estão livros de arte e cultura, formando uma mise-en-scène ao cantor. O espectador assistindo e ouvindo Caetano e as imagens dos livros demonstram a criaçao de um personagem erudito mais do que um simples cantor famoso de MPB. Essas opções de Carvalho evidenciam o testemunho como o fio condutor de seu documentário. As pessoas falam de Raul, e não são os fatos da vida do protagonista que determinaram a sua história no documentário.
O lado mais humano do artista se evidencia nos depoimentos das esposas e filhas. São momentos mais íntimos, como o narrado pela segunda esposa, Glória, quando apresenta o neto, que entra no quadro de surpresa, e ela afirma que ele seria o orgulho do Raul, se ainda fosse vivo. Outro momento interessante é quando a quinta esposa, Kika, começa a entrevistar a própria filha perguntando de quanta saudade sente do pai. Na cena não existe música, um recurso de cor fria ou close up do rosto, mas o silêncio e a espontaneidade provocam emoção. Todas as descrições da vida pública de Raul começam então a combinar com seus momentos familiares e privados. É a revelaçao do homem afetivo por traz do contestador artista. As frases das esposase e seus filhos foram um coro na descriçao do lado humano de Raul. E é claro uma escolha clara do diretor de apresentar um Raul desconhecido ainda da maioria das pessoas.
Ao todo, Walter entrevistou 94 pessoas para poder construir a história de Raul. Entretanto, o sincronismo e a coerência estão nas “narrações” sobre o Raul dos amigos, familiares e parceiros, pois a textura do filme varia bastante. Feito com imagens de arquivo televisivo, depoimentos gravados nas casas dos entrevistados em diversas partes do mundo, com diferentes luzes e quadros, o documentário não tem uma textura ou mesmo cor predominante. A música e o testemunho das pessoas são os grandes condutores das emoções do longa, como mencionado anteriormente, um documentário testemunhal.
O filme encerra com imagens de fotografias como últimos documentos da história do cantor. Imagens dele desde bebê até os últimos momentos artísticos, como com o cantor Marcelo Nova. Memórias e lembranças familiares são evocadas do público e as fotos voltam a cumprir a sua simbologia de. Também há a recriação da cena da última noite de vida de Rau, com o depoimento do porteiro e de Dalva, a secretária pessoal. Eles narram a chegada do artista a casa, sozinho, bêbado e com dificuldades de andar. Colocado na cama pelo porteiro e encontrado pela secretária, que em meio a comoção e lágrimas, redimindo Raul, o que o coloca de volta ao seu status de mito e sua morte a implacável.
Raul: o início, o fim e o meio e uma opção interessante para os fãs eadmiradores do cantor. Segue, como mencionado anteriormente, uma linha cronologica da vida do artista, sem grandes surpresas, colocando o público como oreceptor das informações. Porém, mesmo sem se arriscar em recriar uma narrativa diferente a linguagem de um documentário testemunhal, o filme prende a atenção e a mantém até o fim.
*Fabiana Ghiringhello é jornalista, Master of Arts (mestre) em cinema europeu e especialista em documentário social.