O efeito do real em “Festa de família”

Fernanda Sales Rocha Santos*

Apresentação

A representação estética classificada como realista atravessa os séculos desde o suposto momento em que o homem dá-se conta da sua capacidade de formar imagens de si. Pode-se dizer que na dramaturgia e na literatura a questão de uma representação que tenha vínculo com o real já encontra na antiguidade algum debate quando Aristóteles postula a forma ideal da tragédia em sua poética, levantando conceitos como o da verossimilhança. Muito tempo depois, com a revolução da perspectiva visual, tal como o ponto de fuga em uma obra renascentista, também se coloca em cheque a questão de mostrar de forma mais concreta o mundo, com suas três dimensões, assim sendo, de forma mais fiel. O debate a respeito do vínculo que uma obra de arte assume com a realidade do mundo é demasiadamente extenso, segue percursos históricos diversos e varia de acordo com a noção de experiência humana do real.

Desta forma, o que aqui importa é uma noção de representação do real restrita ao campo do cinema e do audiovisual. Já se falou muito sobre o realismo cinematográfico, assim, o presente trabalho se baseará em outra questão sobre o vínculo do real com o audiovisual, uma questão especialmente da atualidade. É a noção de efeito de real.  O efeito de real, tal como postulado e debatido no artigo de Ilana Feldman – O Apelo Realista – não se assemelha ao realismo cinematográfico, mas liga-se com um processo demasiadamente atual de produção audiovisual supostamente vinculada com uma veracidade retratada. Também será abordada a questão do apelo realista, a fim de compreender uma contemporânea produção audiovisual. Será analisado o filme de estreia do manifesto Dogma 95, o aclamado Festa de Família (Festen, Thomas Vinterberg, 1998) que conta com fortes marcas de efeito de real, marcas que garantem a unicidade e inventividade desta obra muito antes da apropriação apelativa por parte do cinema hegemônico desse efeito do real, movimento que está em curso.

O efeito de real em Festa de Família

O manifesto Dogma 95 surge da iniciativa dos cineastas Thomas Vinterberg e Lars von Trier, em Copenhague,  na Dinamarca, no ano de 1995. Os dois escrevem uma lista de preceitos cujo intuito é dar nome e forma, através de um manifesto, à uma produção de filmes barata, independente, desvinculada de apelos comerciais. Uma produção que tanto na sua forma, na sua técnica, quanto na sua estética e no seu conteúdo, vincule-se com a necessidade de um cinema diferente do hegemônico.  Existe no manifesto a questão essencial da produção de obras com maior vínculo com o real. O manifesto apresenta dez regras que devem ser seguidas para a adequação de um filme ao cinema proposto pelo Dogma 95. Entre elas questões que colocam que as filmagens não devem ser feitas em estúdio, que o som jamais deverá ser produzido separadamente da imagem e a câmera deve ser obrigatoriamente usada na mão – de forma que as tomadas devem desenvolver-se onde o filme tem lugar. Também são proibidos truques fotográficos e qualquer tratamento de imagem, além de serem inaceitáveis filmes de gênero.

Mais de dez anos depois do lançamento do manifesto, existem quase oitenta filmes feitos ao redor do mundo filiados ao dogma (o filme se submete a uma avaliação e recebe um certificado que é exibido no início). Muita polêmica foi levantada em torno dessas obras, da lista de regras, do intuito desse movimento e da carreira posterior dos diretores que o deram início. Polêmicas a parte, o relevante para o artigo é notar o começo de uma linha de filmes que posteriormente seria apropriado pelo cinema hegemônico, pelo próprio cinema de gênero e até pela televisão como bem irá demonstrar Ilana Feldman em seu artigo “O apelo realista”. Na época do manifesto, o digital ainda estava engatinhando, tanto que a princípio era exigida a filmagem em película, questão que foi revista nas regras com o passar do tempo e a apropriação do digital pelo cinema. Desta forma, o dogma teve sua relevância e pode-se dizer que foi umas das primeiras manifestações a trabalhar com o que Feldman vai chamar de Efeito de real. Não por menos, Festa de Família causou um grande impacto, ganhando inúmeros prêmios em diversos festivais.

É sobre esse filme que o artigo vai se debruçar, exemplificando os elementos presentes que contribuem para a construção desse efeito de real proposto por Feldman e como tais elementos ao longo da história recente do audiovisual foram apropriados por um cinema hegemônico (o que a principio era um manifesto contra uma cultura do cinema mainstream e de gênero tornou-se um apelo presente hoje em dia em Hollywood, na televisão, na internet e também em produções independentes).

Festa de Família é a história da comemoração dos sessenta anos do patriarca (Helge) de uma família tradicional, aristocrática. De modo que o filme passa-se em não mais que um dia de festejos tradicionais. A câmera sempre fica próxima dos filhos do patriarca, Christian, Helene e Michael. Além dos três, havia mais uma irmã que se suicidou recentemente, o que vai gerar estranhezas, remorsos e até servir de motim para a trama do filme. Ao longo do dia de comemoração, sórdidos segredos do passado são revelados em plena mesa de jantar. “Ajustes de contas” são feitos a partir da iniciativa de Christian, que é requerido a fazer um discurso para o pai. Ele, o primogênito, de forma totalmente irônica, ao parabenizar o patriarca na frente de todos os familiares, começa a contar historias de infância com sua irmã gêmea (aquela que se suicidou). Nelas ele não só insinua, mas deixa explícito, que os dois sofriam abusos sexuais do pai. A princípio, a reação de todos é que aquilo é uma brincadeira de mau gosto, com o passar do tempo começam a acusar Christian de ter distúrbios mentais (ele possuí um histórico de passar por clínicas psiquiátricas), informação que chega a deixar o expectador em dúvida quanto à veracidade das histórias que ele conta. O filme desenvolve-se como se o fantasma da filha suicida ainda estivesse naquela casa, é pela lembrança dela que Christian toma coragem para enfrentar o pai. O estopim acontece quando, já quase no fim da festa, encontra-se uma carta da falecida, nela ela fala que tinha sonhos com o pai abusando dela, o que era insuportável. O filme também tenta adentrar a intimidade dos membros daquela família acompanhando o desenrolar de ações aparentemente pequenas, mas que revelam preconceitos, pensamentos retrógados, demonstrados sempre de forma muito naturalizada.

Esse é o enredo básico de Festa de Família. Uma história aparentemente tradicional de “prestação de contas”. No entanto, a unicidade da obra de Vinterberg está exatamente no tratamento estético que assume quase o protagonismo do filme. Esse tratamento que, acoplado à trama, confere um efeito de real de forma bastante pioneira. Antes das hand-cams digitais, dos celulares, das câmeras de segurança mostrarem intimidades a todo o vapor no cinema, na televisão e de forma irrestrita na internet, Festa de Família assumia um vídeo caseiro, como um vídeo de aniversário, um vídeo para ficar entre família, que adentrou a intimidade perversa dos viventes retratados. A crueza da captação parece assegurar ao expectador que os fatos aconteciam enquanto alguém os tentava captar.

Não é em nenhum momento assumido um personagem dono da câmera – um primo intrometido dado a cineasta, por exemplo –  no entanto, o dispositivo é assumido e reiterado diversas vezes ao longo do filme. A câmera literalmente esbarra com os personagens, eles desviam desta, às vezes não conseguem desviar e de fato trombam com o dispositivo. Ajustes de foco e de zoom são feitos de forma que se vê a estrutura que envolve a lente nas bordas do quadro. A imagem é “suja”, quando escurece pela falta de uma iluminação artificial (lembrando que um dos preceitos do Dogma é a proibição de qualquer iluminação que não seja diegética) a fotografia fica tomada pela granulação. A impressão que se tem é de que existe alguém de fato gravando aquelas imagens. Não acontece outra interação direta entre os seres filmados e a câmera, porém, tem-se a sensação de alguém operando o dispositivo que capta as imagens. Nesse sentido pode estabelecer um paralelo com o cinema direto, uma linha documental na qual “os fatos acontecem” e o cineasta capta aquela realidade com a pretensão de “ser uma mosquinha acompanhando os acontecimentos” de forma a interferir o mínimo possível naquela realidade. De fato, pode-se relacionar com essa estética documental, como se estivessem fazendo um documentário da vida daquela família e, ao invés de pegarem “os bons momentos”, foi pego o que havia de mais frágil e sórdido nas relações ali estabelecidas.

No entanto, o filme possui uma montagem mais frenética do que é usual para o que se firmou como uma representação de cinema direto, ou até para os preceitos bazinianos relativos a um realismo cinematográfico. Essa montagem, a meu ver, enfatiza que foram pegos os melhores momentos e editados, para que no tempo de aproximadamente duas horas possa se contar as peculiaridades que aconteceram em quase vinte e quatro horas de convivência familiar.

Tais elementos técnicos e estéticos presentes no primeiro filme do Dogma 95 são os mesmos ressaltados por Ilana Feldman como sendo elementos que causam um efeito do real, e não propriamente um realismo (nos termos bazinianos). O filme Festa de Família certamente possui um realismo presente nas atuações naturalistas, na ausência de trilha extra diegética, na forma como a câmera acompanha os movimentos dos personagens, na proposta inerente ao filme, porém o diferencial dele não é esse realismo já falado a muito e presente em tantos outros filmes anteriores ao Dogma, mas sim o impacto causado pela precariedade, pela crueza, pelas imagens aparentemente amadoras e “selvagens”. O efeito de real, que causa no expectador a sensação não de um realismo, mas sim de uma realidade captada.

Ilana Feldman problematiza a questão de que na atualidade o que antes era tido como algo que rompia com a transparência no cinema, como as autorreferências e as marcas de enunciação do cinema moderno, na contemporaneidade pode ser usado como recursos que legitimam uma realidade, ou seja, são capazes de fazer o expectador se envolver ainda mais com a trama do que a transparência da técnica, da linguagem e do dispositivo do cinema clássico. Se antes o cinema moderno chegou causando estranhamento e incômodo mostrando as artimanhas do processo de produção de um filme, hoje, tais elementos – como a evidenciação do dispositivo –  contribuem para a afirmação do efeito de realidade. Os “rastros de filmagem”, segundo ela, são a condição de uma transparência contemporânea muito vinculada com novas mídias, dispositivos portáteis e com a internet.

Incorporando imagens documentais e registros amadores, fazendo dos códigos estéticos mais “selvagens”, que um dia foram a marca de um cinema moderno, uma nova convenção, re-encenando acontecimentos não-ficcionais já dados previamente e se utilizando, muitas vezes, da alta sofisticação tecnológica, oferecida pelas tecnologias digitais de captação e finalização de imagens e sons, para promover produções marcadas por uma impressão de improviso, de “urgência”, de “precariedade” formal e de amadorismo, muitas vezes simulando um espetáculo que simule sua não-encenação. (FELDMAN, 2008, 64)

Em Festa de Família, ainda no início do processo analisado por Feldman, a precariedade e a enunciação contribuem para que o filme tenha força e seja original. É um filme que une seu realismo com o efeito realista de forma muito precisa e orgânica. O que a princípio poderia ser incômodo, como a câmera trombando nas pessoas ou a falta de iluminação, reiteram um efeito de veracidade que leva o expectador a pensar no modo de produção do filme e notando a falta de finalização, de acabamento que uma produção clássica teria, quem assiste tende a acreditar mais no que está sendo mostrado. É esse o cerne da questão sobre o efeito do real de Feldman, que chega a dizer que na atualidade do audiovisual existe o processo de visibilidade total causado pelo efeito de real, ou seja, a produção do filme é totalmente exposta, mas isso não causa mais incômodo e sim é como um selo de veracidade dos fatos.

Apelo Realista e produção pós-dogma

O Dogma nasceu como um movimento anti-hegemônico e sem nenhuma pretensão comercial. Conseguiu, pelo menos com seus primeiros filmes como Festa de Família e o polêmico Os Idiotas (1998) de Lars von Trier, repercussão internacional justamente em um momento crucial da evolução do audiovisual, o momento em que o digital começava a despontar. No entanto, como será enfatizado por Feldman, na contemporaneidade audiovisual se firmou um apelo realista que está inserido na produção hegemônica em Hollywood, na televisão e na internet. Filmes de gênero hoje utilizam sem moderação o efeito de real que tem se mostrado uma técnica bastante eficaz.

A começar pelo já clássico Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, 1999) que bem poderia enquadrar-se em uma produção do Dogma a julgar pela sua estética – câmera na mão, iluminação precária, proximidade com o registro documental, etc – no entanto é claramente um filme de gênero, um filme de terror. Sucesso absoluto de público, outras produções foram atrás do que se tornou um apelo. Dentro do gênero terror, é o caso do Cloverfield – Monstro (Cloverfield, Matt Reeves, 2008) e de Atividade Paranormal (Paranormal Activity, Oren Peli, 2007), apenas para citar os que fizeram maior bilheteria. O medo, nesses casos, é explorado não mais com efeitos especiais, com monstros horripilantes, mas simplesmente com o uso do efeito de real, com o dispositivo assumido, o medo vindo da possibilidade de serem verdade os fatos filmados, ou seja, sem a intermediação de uma linguagem cinematográfica. Esse viés do medo explorado através do temor causado pelo efeito do real é bastante interessante, porém, cabe aqui comentar o quanto foram eficazes essas experiências, de modo que foram apropriadas pelo audiovisual mainstream e por diversas mídias.

O expectador contemporâneo está conectado, recebe vídeos compartilhados, participa da experiência de um mundo virtual. O apelo realista é uma realidade do audiovisual nesse sentido. Não apenas nos filmes de horror citados, mas existem filmes de outros gêneros que se apropriaram desse artifício. Além disso, os vídeos na internet, no Youtube, por exemplo, reafirmam cada vez mais a tendência de que “o que  importa é o que parece ser real”. O expectador contemporâneo se interessa por isso, pela intimidade do outro. Vídeos de sexo amador, de situações constrangedoras, de pequenos feitos espetaculares, de situações engraçadas, tecem crônicas de pequenos dramas íntimos, privados e públicos ao mesmo tempo. Nunca antes essas duas esferas se confundiram tanto. Feldman é crítica quanto a isso,

Em um momento histórico marcado pela saturação midiática, pela hipertrofia dos campos da comunicação e do audiovisual, pelo contínuo incremento de uma convergência de mídias e pela paulatina indistinção das fronteiras que modernamente demarcavam os âmbitos do público e do privado, do real e do ficcional, da pessoa e do personagem, da democracia e da tirania,  o apelo realista das cada vez mais hibridizadas e renovadas narrativas do espetáculo (FELDMAN, 2008, 62)

Dessa forma, existe uma transformação em espetáculo daquilo que por princípio é a negação deste. É a negação da linguagem para a afirmação de um real. O interessante nesse ponto é a problematizarão dessa questão ambígua. O movimento Dogma, em especial o filme Festa de Família, manifestos totalmente contra o espetacularização do cinema, é um exemplo primordial do trabalho com o efeito do real em contraposição ao apelo realista que ocorre na atualidade nas mídias.

Considerações finais

Festa de Família, primeiro filme do Dogma, é um exemplo do começo de um trabalho no cinema contemporâneo com a questão do efeito do real, além de ter fortes características realistas. Sendo uma proposta contra um cinema hegemônico e comercial, o filme de Thomas Vinterberg ganha força e é reconhecido justamente pelo efeito do real gerado pela sua proposta. A trama desenvolve-se como filmada por um membro da família (quiçá até a própria irmã suicida, por que não?) de modo que a intimidade de cada um se expõe de modo bastante frágil. Seguindo a risca as regras super-restritivas do manifesto Dogma #95, Festen antecipa o que não muito tempo depois vai ser um apelo da produção audiovisual, não o realismo, mas sim esse efeito de veracidade, de realidade.

O efeito do real é apropriado pelo audiovisual contemporâneo em um movimento no qual a ideia de transparência está ligada a ideia de não haver mais uma mediação, não haver mais uma linguagem, e sim a captação “direta” de eventos. Esse movimento liga-se na atualidade com o digital, o fácil e rápido compartilhamento de informações e imagens, as novas mídias que incentivam e se apropriam desse efeito a fim de causar impactos na mistura do público e privado, do real e da ficção. Acontecendo assim um apelo realista, como Feldman questiona.

*Fernanda Sales Rocha Santos é graduanda do curso de Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e editora geral da Revista Universitária do Audiovisual (RUA).

Bibliografia

FELDMAN, Ilana. “O apelo realista”, Revista Famecos, Porto Alegre, No. 36, agosto de 2008, PP 61-68.

POTENZA, Rafael. “Quão utópico e quão revolucionário”, Revista Cineplayers, 12 de Julho de 2008. Link: http://www.cineplayers.com/artigo.php?id=55

Filmografia

Festa de Família (Festen, Thomas Vinterberg, 1998)

Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, 1999)

Mostro de Cloverfield (Cloverfield, Matt Reeves ,2008)

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