A crítica de Ismail Xavier: dos jornais aos estudos acadêmicos

A formação do crítico cinematográfico brasileiro se alterou no Brasil a partir do momento em que as Universidades adotaram cursos ligados ao estudo do audiovisual. Anteriormente, a formação cinematográfica dentro do país era apenas prática. Ismail Xavier faz parte deste momento de transição da crítica cinematográfica: é integrante da primeira turma de cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo [ECA- USP] iniciada em 1967, possuindo assim formação prática e teórica de cinema dentro do ambiente acadêmico.

Em meados de 1968, Ismail Xavier e alguns de seus colegas, como Djalma Batista, assumem uma coluna de cinema no Diário de S. Paulo. Tratam tanto de filmes em cartaz quanto daqueles que estavam sendo reprisados nos cinemas da cidade de São Paulo. O jornal Diário de S. Paulo possuía matérias sobre o Maio de 1968  francês, a Revolução Cultural Chinesa, uma publicação em série do diário de Che Guevara. Sobre cultura havia muitas matérias. Sobre cinema, destinava-se uma média diária de uma página, que trazia cotações dos filmes em cartaz e a coluna. No entanto, em dezembro de 1968 é instaurado o AI-5, que institucionaliza a censura pelo regime militar. Ocorrem profundas alterações na linha editorial. A parte cultural perde espaço para ocorrências policiais, aumenta-se a quantidade de notícias sobre esportes e o suplemento feminino ganha mais espaço aos domingos. A coluna de cinema passa a ser escassa. Há momentos em que nem a cotação dos filmes em cartaz se faz presente. É dentro deste novo panorama que em junho de 1970, Ismail encerra a sua colaboração na coluna de cinema do Diário de S. Paulo.

É inserido nessa conjuntura ditatorial, de ebulição e mudanças das idéias do Cinema Novo que se encontra o primeiro momento da experiência crítica de Ismail Xavier, compreendido entre julho de 1968 a junho de 1970.

É possível observar que Ismail trata nas resenhas para o Diário de S. Paulo de temas que posteriormente farão parte de sua trajetória como pesquisador acadêmico. As críticas negativas ao cinema realizado em moldes industriais se faz presente bem como a defesa de um cinema mais autoral. A maioria dos filmes que Ismail utiliza como objeto de suas críticas não faz parte do Cinema Novo, no entanto, observa-se que o estudante parte das propostas desta estética para produzir suas análises.

Ainda na crítica ao cinema industrial, Ismail apresenta duas possíveis características destas realizações, utilizando-se  das expressões: “cinema de espetáculo” e “cinema de repertório”.

O “cinema de espetáculo” é algo recorrente na crítica de Ismail Xavier. A idéia aparece nas resenhas escritas no fim dos anos de 1960 e também é trabalhada em Sertão Mar, só que sem essa nomeação. Na resenha de Cidadão Kane, o crítico afirma que a obra-prima de Orson Welles:

(…) é uma das mais importantes da história do cinema, de assistência obrigatória a todos, não só aos que se interessam particularmente pelo cinema, mas também àqueles que gostam do bom espetáculo ou se preocupam com os problemas humanos da sociedade moderna.[1]

O “espetáculo” pode se referir a uma forma de ver cinema, como algo a ser contemplado. Neste trecho Ismail cita motivos que levam as pessoas a irem ao cinema: um deles é para aqueles que gostam do bom espetáculo[2]. Por apresentar de uma maneira positiva o que pode levar os indivíduos a se interessarem por Cidadão Kane, pode-se observar que nem todos os espetáculos são condenáveis. Existe o “bom espetáculo”, no qual se encaixam filmes que devem ser contemplados em todos os seus aspectos, tanto no conteúdo quanto na forma. No entanto, a concepção de ‘cinema espetáculo’ que pretendemos abordar está ligada a realizações cujo pilar de sustentação é a forma para criar produtos simplesmente para agradar o espectador, sem preocupações com o conteúdo. Ao longo de sua incursão crítica no jornal Diário de S. Paulo, muitos filmes se encaixarão nessa denominação.

Na resenha “Lar doce lar” é  apresentada aos leitores a expressão “cinema espetáculo” juntamente com uma definição sobre tal conceito, ao comentar as fitas O vale das bonecas e A praia dos desejos:

Ambas (fortes e chocantes) estão dentro da linha do cinema espetáculo: bem cuidado na fotografia, grandes ambientes e atores trabalhando dentro do estilo estereotipado dos “Actor’s Studio”. Estes elementos, aliados à pseudomodernidade, ao efeito de choque artificialmente criado e à diluição de todos os problemas esboçados num universo MUITO MAIS MISTIFICADOR DO QUE CRÍTICO [grifo do texto], garantem um fácil consumo por parte do grande público. Sim, porque o filme não aprofunda nada, não analisa especificamente nenhum problema. (Tramadol) [3]

Aborda-se o fato de que essas produções fazem sucesso com o grande público e para Ismail esse êxito existe porque o filme não traz nenhum questionamento, são somente belas paisagens. Também se atenta para o fato do universo explorado no filme: muito mais mistificador do que crítico. Essa é uma das características que envolvem o conteúdo dos filmes que se encaixam na idéia de “cinema espetáculo”. Um filme trabalhado por Ismail Xavier tanto nas resenhas quanto na sua crítica acadêmica em Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome e que se encaixa no “cinema espetáculo” é O cangaceiro (1953), dirigido por Lima Barreto. A idéia central do filme é usar a forma do western dentro de uma realidade brasileira. Não há qualquer teor crítico no filme, é moldado um universo místico em torno da figura do cangaceiro. Em Sertão Mar, Ismail não se utiliza da expressão “cinema de espetáculo”, mas implicitamente apresenta as noções de espetáculo presentes no filme de Lima Barreto. Na resenha “Maria Bonita: garota moderna”, Ismail escreve sobre uma das tendências da época no cinema brasileiro, os nordesterns:

Demorou alguns anos, mas finalmente surgiu um nordestern com o nome de Maria Bonita. Se o filme sobre Lampião o intitulava Rei do Cangaço, nada mais lógico do que atribuir a Maria o título de Rainha. A antiga Vera Cruz produziu, em 1951, o filme de Lima Barreto, O Cangaceiro, muito mistificado, mas apenas um transplante de fórmulas milhares de vezes utilizadas pelos faroestes americanos, sem nenhuma preocupação mais séria de estudo ou análise do homem nordestino, particularmente do problema do cangaço. Esta data significa o lançamento de um novo campo de exploração para o cinema brasileiro e foi este o único serviço prestado pelo filme de Lima Barreto ao nosso cinema, já que sua visão do Nordeste limitava-se a uma valorização dos efeitos fotográficos que sua paisagem e seu homem proporcionavam, o que levou à procura do exótico e do espetacular, e não do específico e do real. Pois bem, a partir daí, o suposto tema do cangaço serviu para uma série de explorações comerciais, cujo único tema real era a aventura, a violência e os aspectos “pitorescos” deste fenômeno. A preocupação com o cangaço como um problema, como um fato social  que exige análise, só se manifestou em uma ou outra obra, com o Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha) e Memórias do Cangaço (Paulo Gil Soares). No mais, o que temos é uma série de filmes de aventuras muito mal feitas, tais como A Morte Comanda o Cangaço, Lampião Rei do Cangaço, Cangaceiros de Lampião, Riacho de Sangue e outros.[4]

Por este fragmento se revela que, segundo Ismail Xavier, Lima Barreto usou a figura do cangaceiro não para discutir, e sim para fazer um faroeste nacional. A partir deste ponto, tudo é inventado a fim de seguir os princípios dos filmes de aventuras. A grande valorização da fotografia, das paisagens, cria uma tonalidade de grande produção em O cangaceiro. A predileção pela técnica gera grandes problemas no conteúdo.

Já a expressão”cinema de repertório” é colocada na resenha “Disseram que o cinema não tem mais repertório”:

Os Paqueras é mais um exemplar do cinema de repertório, cujo lema: “As fórmulas estão aí, use e abuse sem fazer força”, encontra eco em todos os cantos do mundo; é o ponto de encontro entre o cinema industrial (o produzido em série) e o cinema independente (produzido fora dos grandes esquemas). Portanto, hoje em dia, as telas oferecem pouca coisa além deste tipo de cinema, seja ele “de arte” ou simplesmente “cinema”.(…) Cada plano, cada seqüência, uma fórmula de arquivo. E o arquivo existe. O repertório é um fato, embora muita gente prefira ver na ausência de repertório (entendido como um conjunto de unidades-signos significativos codificados) uma característica essencial do cinema (Pasolini em A poesia do cinema novo). Para escrever, o escritor tem à disposição um conjunto de signos codificados (palavras). Também o diretor de cinema tem hoje um repertório. E não me refiro apenas a uma coletânea estratificada de imagens e sons, mas há um repertório de situações e combinações. Para sintetizar, um repertório de estruturas (devidamente compendiadas).[5]

Neste excerto, Ismail traz duas definições: a primeira é sobre o que é cinema industrial, aquele ‘produzido em série’ e a segunda revelando o que é cinema de repertório, que segundo ele, baseia-se em situações e combinações já totalmente digeridas pelo espectador. Afirma-se que o repertório é a ‘cartilha de signos’ do cinema. Todavia, essa coletânea de signos da linguagem cinematográfica produz um repertório de estruturas que se faz constante na produção industrial.

Outro aspecto fundamental exposto no fragmento é que o cinema de repertório é a fronteira entre a produção industrial e a independente. Essa diferença está na forma com que cada linha cinematográfica trabalha com os signos da linguagem cinematográfica. Enquanto que no cinema independente se busca a criação de novas relações entre esses signos, a indústria criou uma série de elementos fixos, ‘fórmulas’, como denomina Ismail, a partir do que já foi oferecido. É no cinema de repertório que está uma das diferenças primordiais entre o cinema independente e o industrial, uma vez que o primeiro se empenha em produzir novas formas de trabalhar com os signos dispostos no cinema, o segundo se estagna em fórmulas já comumente utilizadas.

Em relação ao Cinema Novo, tratado de forma direta em sua obra acadêmica e que é o alicerce da análise de sua produção no jornal, observa-se a influência desta estética na resenha “Tragédia grega”, que trata do filme O dia em que os peixes saíram d’água, de Michael Cacoyannis. Ismail discute aspectos do filme baseado nos princípios cinemanovistas:

O filme peca pela irregularidade. Tocando em um conjunto de problemas, não os analisa com profundidade. Prefere um tipo de advertência de cuja eficiência duvidamos muito. O caminho de Cacoyannis para se realizar como artista que se pretende útil à humanidade está longe de ser este; a solução é voltar para a sua Grécia e colocar na tela o seu povo e seu país, como personagens, como um problema, não como paisagem.[6]

O primeiro ponto ressaltado por Ismail é que o filme não analisa nenhum problema da sociedade, o que se propõe a fazer. A análise profunda acerca da realidade, como já foi afirmado anteriormente, faz parte do objetivo do Cinema Novo, que é levar os problemas sociais, a realidade para o cinema e discuti-la propondo inclusive soluções para a resolução destes. O que Cacoyannis realiza em seu filme é somente atirar problemas sem suscitar o debate e sem mostrar caminhos que mostrem uma solução.  O segundo ponto é a colocação do povo e do país não como ‘paisagem’, e sim como meio de gerar discussões em torno da realidade. Ismail acredita que o cineasta só será útil à sociedade se promover discussão de problemas do seu país e do próprio cinema.

Percebe-se que Ismail se interessa pelo que é feito nos países ditos terceiro mundistas. Atenta para o cinema grego através do filme de Cacoyannis e escreve também um artigo intitulado “Aceitação do cinema tcheco” em que discorre acerca do sistema de produção, distribuição e recepção por parte do público dessa cinematografia. Analisa o caminho que o cinema desses países trilha em relação ao cinema comercial. Neste quesito ocorre uma comparação com o cinema polonês. O destino do cinema tcheco se difere do cinema polonês. O primeiro cedeu às ‘exigências’ do mercado internacional, mais propriamente do norte americano, provocou alterações grandes na maneira de fazer cinema: os filmes foram descaracterizados, aderindo a um padrão já conhecido e estabelecido pela grande indústria. Já em relação à produção da Polônia, esta não conseguiu tantos prêmios pelo mundo quanto a Checoslováquia uma vez que não cedeu aos esquemas impostos e continuou com a sua polêmica produção. Abordando este tema, Ismail Xavier provoca uma comparação implícita com o próprio cinema nacional, também em condições próximas a essas duas cinematografias em seu início. A questão é: compensa se enquadrar a esquemas dos cinemas dominantes para ser reconhecido internacionalmente ou vale mais manter as características próprias do cinema, mesmo que isso não traga o sucesso mundial? A resposta é a manutenção do cinema, uma vez que, no caso dos tchecos, este foi descaracterizado, caiu no senso comum do cinema proposto pela grande indústria e nada tem de novo a acrescentar. Isso mostra o destino, segundo Ismail Xavier, que deve seguir o cinema brasileiro: não adianta se enquadrar dentro da produção em larga escala, não se pode descaracterizar a produção uma vez que pode vir a ocorrer o que aconteceu com o cinema tcheco; este já foi saturado por respeitar determinadas fórmulas. Esse caminho negativo estava sendo o trilhado pelos tchecos, que aceitaram as imposições externas em detrimento das propostas de sua cinematografia.

Dentro de uma postura militante é que Ismail parte para a análise dos filmes em suas resenhas críticas para o jornal. E nessa relação diante da obra há a maior mudança do crítico nos dois períodos. Observa-se esse fato em Barravento (1961), de Glauber Rocha. Em Sertão Mar, o estudo deste filme é revisto por Ismail que acredita que sua análise anterior reduzia a significação política, social e estética que há na obra. No livro, parte do que o discurso fílmico possui para buscar o que a obra pretende ao invés de tirar as significações de sua militância e usá-las para analisar o filme.

Nota-se que as posições fundamentais adotadas diante dos temas esboçados nas resenhas críticas, tais como o cinema autoral, o produzido em escala industrial e o Cinema Novo, por exemplo, são mantidas na pesquisa acadêmica de Ismail Xavier. A grande diferença observada é a forma de se colocar diante do objeto fílmico do qual se pretende tratar: se em seu primeiro momento Ismail parte de questionamentos políticos e sociais para analisar uma obra, posteriormente busca partir de dentro do discurso fílmico para buscar uma significação maior daquilo que um filme pode oferecer. Essa inversão de postura diante de uma obra é a maior diferença entre o Ismail estudante e o pesquisador acadêmico.

Em suma, o que se deve observar na trajetória crítica de Ismail Xavier é a manutenção de uma temática e de uma postura diante dela: a defesa de um cinema mais autoral em relação ao produzido em moldes industriais bem como ter as propostas do Cinema Novo no alicerce de suas análises.

Isabella Mitiko Ikawa Bellinger é graduanda em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)


[1] Diário de São Paulo. São Paulo,17/07/1968. “Cidadão Kane”.

[2] idem

[3] Diário de São Paulo. São Paulo, sem data, “Lar doce lar”.

[4] Diário de São Paulo. São Paulo, 21/08/1968. “Maria bonita: garota moderna”.

[5] Diário de São Paulo. São Paulo, 03/06/1969. “Disseram que o cinema não tem mais repertório”.

[6] Diário de São Paulo. São Paulo, 24/07/1968. “A tragédia grega”.

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Este post tem um comentário

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    Louize Nascimento

    Gostei muito deste texto, bem completo e informativo!
    É sempre bom conhecer melhor a trajetória de críticos e pesquisadores que conhecemos somente através dos livros que escrevem.
    Parabéns!

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